* Por Isabella Luiz *

“Quantas lágrimas cabem num sorriso? Quantas palavras cabem no silêncio? ”

Da janela do décimo segundo andar, olhava as pessoas do prédio da frente em suas caixas de sapato cimentadas. Estava ali de passagem, nunca morei em apartamento. Duas mãos de tinta foram necessárias para as paredes, alguns reparos nos cômodos e dali a poucas semanas estaria tudo pronto para a chegada do novo inquilino.

Meu pai olhava o lugar tentando se concentrar no acabamento do banheiro, nas instalações elétricas, mas eu sabia que ele sentia o mesmo que eu, o aroma do perfume francês de minha avó, que resistiu ao insuportável cheiro de duas mãos de tinta cor branco-gelo. Continuava a olhar para a janela aberta, não queria encontrar os olhos dele, não queria que percebesse que naquele dia eu não estava com rinite alérgica. Se fechasse os olhos era possível imaginar minha avó sentada na cadeira de balanço de madeira em frente à TV.

-Vó, por que a senhora não mora lá em casa?

Gargalhava alto e eu acompanhava, porque ela tinha a risada mais gostosa do mundo. Sabia que ela preferia morar só, mas mesmo assim insistia. Era vencida da mesma maneira que meu pai. Ela mudava de assunto, me falava da gaveta cheia de cartas que eu escrevia quando era menor.

-Você amava escrever cartinhas, fazer envelopes. Colocava na caixa do correio quando me visitava na casa antiga e quando ia embora me pedia pra olhar a correspondência.

Eu lembrava. Lembrei também o motivo de parar de escrever aquelas cartas. A última que escrevi foi no último dia que vi meu avô. Ele não se movia mais, mas podia escutar. Derrotei a timidez e li em voz alta no quarto dele, que foi adaptado para acomodá-lo. Uma cama de hospital, um monte de aparelhos que eu não sabia a utilidade, um tubo colocado no pescoço, um enfermeiro que ficava checando tudo de tempos em tempos. Meus pais haviam relutado por semanas, mas eu queria vê-lo, queria ler para ele, queria dizer algo. Depois desse dia o correio da antiga casa de meus avós ficou vazio. Vovó vendeu a casa, comprou um apartamento no mesmo bairro que o nosso.

Agora, estávamos mais uma vez dando adeus, mas não pude ler nada para minha avó. Foi encontrada na cadeira de balanço por meu pai, que ia todas as manhãs ver como ela estava. Alguns meses depois do enterro ele ainda estava acabado, mas tinha que resolver umas papeladas e a situação do apartamento. Não tínhamos condição de mantê-lo, seria preciso alugar para alguém. No meio da limpeza, das caixas de papelão com as coisas de minha avó, encontrei uma cheia de papéis e desenhos. Eram as minhas cartas, todas elas, uma pilha.

-Às vezes eu sento e releio todas elas.

-E sobre o que eu falava, vovó?

-Você fazia declarações de amor.

Abri os olhos e o apartamento não tinha um único móvel sequer, estava silencioso, frio como a cor escolhida para o lugar. Meu pai deu uma última conferida também, me falou como o tempo passava rápido, que um dia fora criança e minha avó uma mulher jovem e forte. Quis perguntar se ele também escrevia para ela, mas o ar ao redor dele estava tão frágil que temi que caísse em prantos.

-As paredes ficaram boas.

Foi a única coisa que consegui dizer.

*

Isabella Luiz é roteirista, escritora, ilustradora e fotografa e mistura tudo com poesia.  Conheça mais do trabalho em trabalho: medium.com/@isabellaluiz

 

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