* Por Itamar Vieira Junior *

O incêndio que destruiu o Museu Nacional, na última segunda-feira, deixou parte do País num estado de perplexidade que tem sido cada vez mais frequente. O assassinato da vereadora Marielle Franco, em março, e a tragédia de Mariana, em novembro de 2015, são outros exemplos de eventos que provocaram igual comoção. Sem a distância necessária no tempo, torna-se difícil avaliar e refletir sobre os impactos desses acontecimentos para nossa história. Talvez no futuro, com livros e museus preservados das chamas, nós possamos entender o que hoje parece incompreensível. Desde a redemocratização, os últimos anos parecem ter sido de crises sem precedentes: uma grande operação contra a corrupção que levou o País à lona com repercussão direta na economia, criando uma legião de desempregados; a criminalização dos partidos que culminou no impeachment de uma presidenta eleita, num processo controverso, e na escalada do fascismo, que parecia estar sepultado nos livros de história. Hoje, um candidato de extrema-direita tem chances reais de vencer o pleito. O incêndio não parece ter consumido apenas o Museu Nacional. Parece estar consumindo a nós todos.

O que se perde com a destruição do Museu Nacional é incalculável para a história brasileira, do continente americano e do mundo. E dentre tantas relíquias que foram reduzidas às cinzas – o sarcófago da múmia Sha-amun-em-su, os esqueletos de dinossauros, coleções de vertebrados e invertebrados –permaneceu, de forma insistente em minha lembrança, a icônica imagem de Luzia. Não a do seu crânio, que poderá ser ou não recuperado sob os escombros do Museu, mas a da reprodução em três dimensões em que podíamos ver a face humana da mulher que habitou o nosso continente há 11 mil anos, possibilitando novas interpretações sobre o povoamento da América. A reprodução do seu rosto só foi possível porque existiu um crânio preservado pela natureza, e, por um tempo, pelos profissionais do Museu, e também porque a ciência evoluiu a tal ponto de poder reproduzir imagens tridimensionais a partir de cálculos sofisticados.  Mas antes de lamentar a perda desse patrimônio, Luzia me levou até Alma, a personagem-título do conto que abre A oração do carrasco, ou a Mariinha Rodrigues, que foi sua fonte de inspiração.

Há dez anos eu estive por algumas vezes na comunidade quilombola de Tijuaçu, no sertão baiano. O povoado existe há duzentos ou trezentos anos, segundo a história oral de seus moradores. Hoje, com uma população que ultrapassa dois mil habitantes, a comunidade trava uma batalha hercúlea contra a burocracia do Estado para ter o domínio de seu território. E no centro do direito ao território se ergue uma história antiga para justificar sua presença no local. A ancestralidade negra é evocada a partir de uma personagem quase mítica, Mariinha Rodrigues, uma mulher escravizada que deixou a capital para fundar um povoado a quatrocentos quilômetros de distância, no coração do sertão baiano. Essa história foi contada inúmeras vezes por seus descendentes, e uma das interlocutoras a recontá-la foi a antropóloga Patrícia Navarro, que escreveu um belíssimo relato para o processo que trata da regularização da terra de Tijuaçu.

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Uma comunidade quilombola nos rincões do país faz da memória e da oralidade o seu patrimônio mais poderoso, enquanto nós depositamos nossa história em museus, arquivos e bibliotecas. Suas narrativas de vida e morte são passadas aos descendentes, certamente, com uma rica e vigorosa imaginação, que acrescenta ou suprime informações ao sabor do tempo e das necessidades. A história de Alma surgiu da lacuna dessa jornada sobre-humana empreendida por Mariinha Rodrigues e sobre a qual não se tem muitas informações. Se fala sobre sua condição de escravizada antes de deixar a capital, sobre a travessia a pé até o Sertão e a fundação do povoado que resiste até nossos dias. Mas ninguém narra sobre o que motivou Mariinha a realizar aquela viagem sem rumo, o que encontrou pelo caminho e o que poderia ter sentido em seu íntimo enquanto caminhava.

A ficção pode ser apenas uma das faces da realidade. A magia da literatura está no poder de nos transferir ao lugar do outro. Mergulhando anos e anos nessas narrativas, com as cadências e repetições próprias dos muitos falares por onde andei, e transcrevendo relatos, Alma foi se moldando, não com o sofisticado cálculo matemático e conhecimento arqueológico que tornou possível reproduzir o rosto tridimensional de Luzia, mas com as imagens que só a literatura pode nos dar com profundidade e propriedade. O êxito maior de qualquer história, seja a de Luzia, a de Mariinha, ou a de Alma, é comunicar a experiência humana. E na imersão dessas histórias desenvolvemos como autor, leitor ou espectador a compaixão pelo outro.

Mariinha e Alma atravessaram a paisagem hostil do semiárido numa jornada de sobrevivência para fugir do horror da escravidão. Em pleno século XXI, homens e mulheres escravizados são resgatados em fazendas e fábricas de diversas regiões do Brasil e do mundo. A presença de Luzia na gruta da Lapa Vermelha, em Minas Gerais, é capaz de nos confrontar com o dado de que a migração é parte da nossa trajetória humana. Que as fronteiras, quando pensamos na escala da história da humanidade, são recentes. Atualmente, nos deparamos com o drama dos imigrantes que atravessam o Mediterrâneo, a fronteira dos Estados Unidos ou Pacaraima, em Roraima, na mesma medida em que a xenofobia cresce por todos os cantos.

E por que precisamos preservar a memória? Seja no museu, numa biblioteca ou nas histórias transmitidas de pais para filhos pelos que não tem outros meios de fazê-lo? Por que precisamos conhecer a face de Luzia e preservá-la para as gerações futuras? Por que saber sobre Mariinha por documentos, ou sobre Alma por seu peregrinar na literatura, vidas tão remotas, pode ser necessário ao nosso tempo? Por que é necessário escrever sobre a luta de Marielle Franco, com a esperança de que não morra novamente sob a sombra da impunidade e do descaso?  Para nos protegermos dos “incêndios” dos discursos fáceis, das retóricas vazias, que podem devastar em anos os séculos que levamos para alcançar a consciência de que é preciso preservar a nossa história, a fim de examiná-la exaustivamente sempre que necessário. Para que possamos traçar novos caminhos que nos permitam sobreviver. Para saber que, se almejamos um futuro, é preciso compreender de onde viemos, por quais dores nossos ancestrais passaram em suas trajetórias, com a motivação de não repetir os erros que poderiam ter significado a falência da espécie humana. Para compreender que a Terra é nossa morada e que não estamos sós nela. Que para sermos plenos precisamos do Rio Doce, da Amazônia, dos venezuelanos, das vozes de muitas Marielles, do rosto de Luzia e do caminhar que significou a liberdade para a alma de Mariinha Rodrigues.

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Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia. É autor dos livros de contos Dias (Caramurê, 2012) e A oração do carrasco (Mondrongo, 2017)

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Imagem: Mariinha Rodrigues, 2018 – Eli de Castro

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