Cá em Lisboa

* Por Flavio Cafiero *

17.04

Seguindo as recomendações usuais, começarei pelo início. E o início é Lisboa, Primavera de 2016. Ou um pouco antes, em fevereiro, ao receber a notícia de que havia sido contemplado com uma bolsa para escrever o próximo livro em Portugal. Ou até antes, em dezembro, quando elaborei um projeto para transformar um conto não-publicado em romance. Agora, dada a partida. Lisboa. Terceiro dia, aquele em que o gajo ressuscita. Já saí pros copos e reencontrei amigos. Copos sujos, cá estou. E é ótimo, cá estar. Ou estar cá. E será um desafio, aprender, até o último dia dos próximos quatro meses, como os lisboetas usam o , esse estilhaço de palavra, tão encantador quanto difícil de encaixar no lugar do meu aqui brasileiro.

18.04

A Raquel, uma amiga de Lisboa, que me dá aulas sobre como usar o , disse que, para eu me sentir minimamente português, tenho que fazer a casa. Fazer a casa é ir ao supermercado e abastecer a despensa. Etapa cumprida. Primeira ida ao supermercado. O brasileiro em Portugal traz azeite bom, pão bom, queijo bom, presunto bom e vinho muito bom, porque aí embaixo essas coisas, quando realmente boas, são também caras. Aqui não, ou nem tanto. Então não tem arroz, nem macarrão, nem ovo. Fiz a casa, mas a casa está mais para um piquenique. Bem-vindo, Flavio. É o que Lisboa parece querer dizer.

19.04

Tem essa parte, claro, que é começar a escrever. Breve sinopse do conto. Um homem acaba de perder a mãe e vem a Portugal atrás de uma cidade que ela disse ter visitado. Mas há um detalhe, essa mãe contou sobre a viagem em estado de delírio, já envenenada pela medicação, e, segundo se sabia, ela jamais teria saído do Brasil. Pois bem, o protagonista do livro vem a Portugal curioso para encontrar essa cidade, possivelmente fictícia. Suspense. Alerta de spoiler: a mãe não fez uma viagem astral nem viveu outras vidas em terras lusas, sinto muito frustrar as expectativas espiritualistas de alguém, quando eu for escrever um livro espírita prometo usar um codinome exótico, tipo Ronan de Montalcino ou Ana Clara das Galveias, essas pessoas que viram escritor depois de mortas, não é o caso, não haverá revelações em mesas brancas no final. Bem, o conto é mais ou menos sobre isso que contei, e agora tenho que transformar esse conto em romance. Ficarei, para isso, sediado em Lisboa, embebido na língua e nos costumes, para depois viajar um pouco a alguns cantos do país. Essas viagens funcionarão como uma pesquisa de locação, comum no cinema e na TV, para eleger que cidade será essa, falsa ou verdadeiramente visitada pela mãe. E a primeira decisão, do primeiro dia de escrita, em primeira mão. Dessas coisas que acontecem enquanto você está escrevendo. É assim, você vai escrever sul mas, vai saber o porquê, sai norte. E a mãe virou avó. Fui escrever mãe e saiu . Mentira, o motivo real é o fato de ter tido, nos meus dois primeiros romances (um deles ainda inédito), mães muito presentes. Chega de mãe, pois. O romance novo será das avós. Ah, e já ia me esquecendo. Assisti pela internet à sessão histórica da Câmara, com nossos deputados votando o processo de afastamento da Dilma, enfim… Vocês já sabem o que rolou naquela casa. Só vou dizer que as pessoas aqui têm me olhado com uma cara meio de pesar. Não só os amigos, mas também o pessoal do Restaurante Glória, onde às vezes almoço. Não tá fácil ser brasileiro aqui. Imagino aí. Na televisão, o comentário do Ricardo Araújo Pereira, um sujeito muito engraçado que participa de um programa chamado Governo Sombra: o Brasil conseguiu, em uma noite, fazer do parlamento português um lugar decente.

21.04

Problema um. Começou um festival de cinema indie aqui em Lisboa. Isso quer dizer o seguinte. De manhã, que é mesmo a hora que costumo escrever, eu escrevo. À tarde será do cinema. Isso quer dizer o seguinte. Tenho um romance feito mas que precisa ser revisado, tenho duas peças de teatro encomendadas, tenho esse diário que o Alexandre Staut pediu, tenho textos para corrigir. Turma linda aí do Brasil, você vão esperar um tiquinho. Minha prioridade essa semana, depois do livro novo, é saber em profundidade como os portugueses se comportam em salas de exibição do circuito alternativo de cinema. Vai que meu protagonista aparece numa dessas. Isso é pesquisa. Falando sério, agora, para que ninguém me julgue um vagabundo, como andam chamando os artistas aí no Brasil de Temer e Dilma. Sério, faz parte da pesquisa. É sério. Mesmo.

23.04

Bom, como ninguém acreditou na minha teoria de pesquisa em salas de exibição, nem vou me dar ao trabalho de falar muito sobre os filmes que assisti. Boi neon, filme pernambucano comentadíssimo por aqui, estava na mostra. Mas eu já tinha visto no Brasil. Aliás, recomendo muito. Vi um filme chinês incrível, de mais de quatro horas de duração. Ainda bem que era incrível. Teve Dinamarca, Venezuela e Holanda. Da Holanda, aliás, o primeiro filme do Paul Verhoeven, ótimo. Mas não é para falar de cinema que estamos aqui. Notícias do livro. A cidade visitada pela avó, a ex-mãe, agora são várias. E o protagonista ganhou nome, que não revelo, e também profissão. É bom demais escrever, juro, nenhuma dessas coisas estavam definidas, a gente define enquanto escreve. É o fluxo. Alguns autores dizem que são os personagens tomando posse da história, e é uma boa imagem, a sensação é essa, de que o livro vai se escrevendo, mas no fundo é mesmo fluxo. É uma sensação deliciosa. Recomendo. Dá trabalho mais para frente, esse fluxo define umas enrascadas também, mas estamos aí pra isso. E, sobre a profissão do meu personagem, ele é editor e ilustrador de livros infantis. Mas essa profissão é a oficial. Tem uma outra atividade, que é dessas de vagabundo, coisa de artista. Mas não conto qual. Só digo que ele não é escritor.

25.04

Feriado nacional. Comemora-se, hoje, a Revolução dos Cravos. Teve uma parada aqui perto, mas não assisti, só descobri que era feriado quando acordei. Foi o primeiro dia de calor e sol em Lisboa, os primeiros prenúncios de verão, e a cidade estava excitadíssima. Muita gente foi fazer praia, mas eu fui pra Alfama mesmo, o bairro de má fama, beber vinho e comer peixinhos da horta. Primeiro dia de bermudas na capital, fui lá eu, tropical e animadinho, esquecendo por um momento que as noites costumam ser frescas, mesmo no calor. Voltei pra casa tiritando e me meti num banho quente pra degelar. É assim que se aprende. Salve Portugal! Ditadura nunca mais, nem aqui nem aí, ok?

29.04

O livro vai indo bem, obrigado. Sou um pouco neurótico e faço planilhas de produtividade, resquícios dos tempos de corporação. São 350 palavras por dia de escrita, por enquanto, abaixo da minha média, mas não liguem pra isso, está subindo. A meta é voltar para o Brasil com o livro pronto, e parece possível. Depois do retorno, ainda terei um ano para finalizar, pelas regras da bolsa, mas ando com um sentimento de urgência, espero que não seja nada grave. Tenho ido bastante ao teatro, estou feliz com a cena teatral portuguesa, montagens bem contemporâneas, mesmo aquelas com textos clássicos, como O Misantropo, mas sem os excessos que às vezes vemos em Sampa, todo mundo doido para reinventar a roda a cada semestre, aquela afobação. Que fique claro que adoro o teatro paulistano, mas tem esse lado, não dá para negar. Queremos demais ser contemporâneos, sabe-se lá de quem. Bom, isso é outro papo. Confesso que não esperava um teatro tão pulsante por aqui. Há muita coisa para fazer na capital, muita oferta cultural, e, como não é uma cidade do tamanho das nossas, dá para conseguir ingresso para tudo, sem filas, sem duas horas de antecedência ou dedo a postos no teclado da internet. E as salas raramente enchem. Nos primeiros dias, ia lá eu, no festival de cinema, com antecedência, acostumado com a Mostra de São Paulo. O senhor quer comprar ingresso para a sessão de amanhã? Tudo bem, não há problema. Chegava no dia seguinte e tudo tranquilo, parecia que o cinema estava fechado. Os portugueses só chegavam dez minutos antes, e eu lá, olhando para o teto. Vou sentir falta dessa tranquilidade.

01.05

Passei o dia caminhando por lugares que turistas geralmente não caminham. Fui atrás da Avenida do Brasil. No conto, o protagonista se deparava com a Rua do Brasil, em Coimbra. Como no romance a história se passa mais em Lisboa, fui ver como era a daqui. É sem graça, mas tem um parque bem bonito no fim e a Universidade no começo. Ou vice-versa. A Universidade de Lisboa é igual à UFRJ e a USP, e também parecida com a parte mais nova da de Coimbra, tudo filhote de ditadura, espalhadas, sem comunicação entre as unidades, para dificultar as conspirações dos estudantes. Ditadura é tudo igual, democracias, sim, são diferentes. A nossa anda bem feia, mas paciência, estamos aprendendo a andar, e os tombos sempre parecem definitivos. Mas não são. Espero.

09.05

Minha primeira visita, o ator Leonardo Ventura, amigo de São Paulo que terminou um passeio pela Europa aqui em Lisboa. Ficou fascinado. E é compreensível. Lisboa é uma surpresa, para nós, pois crescemos cheios de preconceito em relação aos tugas, fazemos piada, dizemos que português não é europeu. E eles também acham, e isso não é ruim. Chegamos aqui e quebramos a cara. Os lisboetas fazem bem em ser discretos, ficam na deles. Mas essa fase de isolamento ibérico vai chegando ao fim, a cidade está enfestada de turistas, daqueles bem turistas, hordas de chineses e franceses, o mundo está descobrindo a última fronteira da Europa ocidental. E os portugueses andam experimentando um drama, pois gostam do isolamento, é perceptível, mas também gostam do lado cosmopolita de Lisboa, e daí a divisão. Por eles, continuavam cosmopolitas assim, à distância. É essa a impressão que tenho. Os portugueses, quando querem, vão. Como foram com as caravelas. Mas não necessariamente querem que os outros venham. A Baixa, a Alfama, o Chiado e o Bairro Alto vão deixando de ser lisboetas, vão ficando irritantemente Disney. Mas é o preço. O bom disso é que os portugueses são resistentes. Não vão deixar descambar, é o que sinceramente espero, mesmo com essa leva de dinheiro entrando. Em frente. Ah, Leo, obrigado pela visita. Dona Isaldina, aquela senhorinha que encontrávamos todos os dias no almoço, manda beijinhos.

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Flavio Cafiero é escritor, autor de Dez centímetros acima do chão, O capricórnio se aproxima, entre outros

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