A cada romance que escreve, Miguel Sanches Neto anota em seu diário observações sobre a obra, desde a gênese. Em A bíblia de Che (Companhia  das Letras, 288 páginas), que lança agora, escreveu trechos que a São Paulo Review publica com exclusividade.

O livro traz a história do professor Carlos Eduardo, que viveu a última década em reclusão, distante das mulheres fatais e dos criminosos de sua última aventura. A paz é interrompida pela visita de um velho amigo que quer contratá-lo para uma missão insólita: localizar um exemplar da bíblia que teria pertencido a Che Guevara e que estaria cheia de anotações feitas durante uma passagem pelo Brasil.

A busca colocará o professor no centro de um furacão político que assola o País. Entre empreiteiros corruptos, políticos escusos e damas fatais, ele precisa navegar num labirinto de mentiras e intrigas que pode significar a sua própria morte.  

Leia abaixo o diário do escritor:

1º de setembro de 2014 – segunda-feira :: Che em Curitiba

Surgiu um novo projeto de narrativa. Em 1966, Che Guevara teria estado em Curitiba, a caminho da Bolívia, onde morreria. Participou de uma reunião com o MR8, para dar instruções sobre a guerrilha. Até aí eu já conhecia esta lenda urbana. Conversando com o médico F., que na juventude transitou neste meio revolucionário, soube que Guevara mantinha uma bíblia e que a lia anotando trechos. F. ficou algum tempo com este exemplar deixado à família que acolheu Che. Penso em uma novela em que o comandante esteja perturbado e leia a bíblia se imaginando um novo Cristo.

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13 de setembro de 2014 – sábado :: Sonhos com Che Guevara

Tenho pensado no romance sobre Guevara. Não pode ser uma narrativa histórica; deve ser policial. Vou ressuscitar o personagem de A primeira mulher. O Professor Pessoa volta para tratar de um caso de desaparecimento da bíblia que Che leu e anotou em sua estada em Curitiba. Um político muito rico quer este objeto de culto. Pessoa está morando no Edifício Asa, numa sala comercial, e é procurado para cuidar do caso. Esta mudança de perspectiva torna mais atual o livro, afastando-o da biografia de Guevara e permitindo que eu trate de temas que me interessam. Poderia se chamar A Bíblia de Guevara. Vou sonhar melhor este livro. Sonhar acordado, como sempre faço.

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20 de outubro de 2014 – segunda-feira :: É agora

Na caminhada hoje à tarde, veio-me a primeira cena de A Bíblia do Che. Em casa, depois de lavar a louça da janta, peguei um caderno que me aguardava havia meses e comecei a escrever o novo romance. Nada vai me deter agora.

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21 de outubro de 2014 – terça-feira :: Criando o manuscrito

Escrita à mão do novo romance. Caminhada. Feira. A partir de agora, todo tempo livre será dele. Dedos amassados de tanto escrever.

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28 de outubro de 2014 – terça-feira :: Para piorar a insônia

Dormi mal esta noite, pensando no romance do Che. Não pude pegar nele nos últimos dias, e minha vontade era dedicar esta semana ao projeto. Ninguém imagina a luta de um romancista contra as mil tarefas da vida profissional e doméstica.

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30 de outubro de 2014 – quinta-feira :: Disponibilidade

Sigo escrevendo o romance, com muitos planos. O enredo cresce sozinho, tomando caminhos próprios. É preciso apenas uma disponibilidade de alma para o conjunto de tensões dramáticas que ele evoca.

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31 de outubro de 2014 – sexta-feira :: Estranho agora

Dia destinado alegremente à escrita de A Bíblia do Che. O romance não depende diretamente da vida do guerrilheiro. Vai explorar mais o mito. Será um romance sobre a pós-utopia, quando os valores que moveram a geração de 1960 viraram meras lembranças. O anticonsumista Carlos Eduardo Pessoa nega este estranho agora. Che é apenas um contraponto no romance. Interessa-me o mecanismo de seu culto. O maior herói contra a sociedade de consumo é um objeto vastamente consumido.

A experiência manuscrita

O enredo vai surgindo sem esforço, como deve ser um romance que se queira ágil. Exploro coincidências e experiências vividas. Cheguei à metade do primeiro caderno. A previsão é de três cadernos. Gastei uma caneta. Devo gastar mais umas cinco. Rascunhando o romance inteiro em cadernos, terei a chance de realmente reescrever na hora de passar a limpo. Essa é uma nova experiência.

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19 de novembro de 2014 – quarta-feira :: Questão de espaçamento I

Não trabalhei em A Bíblia do Che. Ontem, de tanto escrever, minha mão estava destruída. Gosto de criar feriados na escrita. Mas feriados de, no máximo, um final de semana prolongado. Não dar chance para a história esfriar.

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4 de dezembro de 2014 – quinta-feira :: Meu realismo

Porto das Dunas, Ceará. Praia, banhos de mar, comidas litorâneas. Mas a cabeça não deixa de remoer o novo romance. O hiperfoco é um transtorno psicológico que me ajuda na conclusão de tarefas mais longas. Continuo preso a esta história do Che, nascida de uma conversa casual. Seguindo meu método, dou a personagens traços de pessoas conhecidas. Assim, quando escrevo sobre um personagem, vejo pessoas reais em cena. A autenticidade é obtida como artifício. Pratico uma espécie de hiper-realismo mentido.

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8 de dezembro de 2014 – segunda-feira :: Sujeira como religião

Desde sábado, em Canoa Quebrada, velha praia hippie. Há ainda um clima dos anos 1970. Muitos malucos, droga à luz do dia, feira de produtos artesanais, restaurantes alternativos, moradores de vários países numa algaravia babélica. Dois ídolos alimentam a mitologia local: Bob Marley e Che Guevara. Aqui, uma população não-integrada continua tentando manter-se fiel aos sonhos de décadas atrás. Muito Reggae, uma sujeira cultivada como religião, bebida e vida comunitária.

Revolução como cenário

Canoa Quebrada continua um projeto que insiste em não acabar, apesar da morte das ideologias. Para que se mantenha vivo na cabeça de alguns, faz-se necessária a mecânica mercantil do turismo. É mais um museu da revolução, e me ajuda a compreender o que estou explorando em A Bíblia do Che. Embora não programada, a vinda para cá foi providencial. Talvez não use nada na história, mas o clima reforça a tese do livro. Só isso já justifica a viagem, que até aqui tinha sido meio fútil.

A tese: as revoluções só sobrevivem como nostalgia, aplacada por viagens turísticas. Celina, a personagem de meu livro, vai tentar tornar reais aqueles velhos tempos.

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24 de dezembro de 2014 – quarta-feira :: De olho nas páginas em branco

Trabalhei a tarde toda em A Bíblia do Che, inaugurando o segundo caderno. Seis páginas manuscritas de uma cena na qual eu não havia pensado antes. Estou com a mão doendo de tanto escrever. Mas a escrita de um romance inteiro em cadernos é algo que sempre quis tentar. Neste processo, dato as partes, o que vai permitir acompanhar a escrita quase sem rasuras. Algum desocupado poderá ver as mudanças que fiz na hora de digitar. Embora mais trabalhosa, a escrita à mão de um romance talvez produza alterações na estrutura e na linguagem. As cenas vão ficando para trás, não volto a elas, tão preso ao que está sendo narrado. Atraem-me mais as páginas em branco que tenho pela frente do que as já preenchidas. No computador, parece que o texto digitado tem um peso maior e queremos sempre melhorar o que já foi escrito.

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31 de dezembro de 2014 – quarta-feira :: Esticar a borracha

Preparei uma planta baixa de seis últimos blocos do romance. Mas não quero avançar no meio das confusões de fim de ano. Um romance precisa ser escrito com tempo, numa lenta evolução, ampliando cada episódio que surge. É como esticar uma borracha. Não podemos fazer isso abruptamente.

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05 de janeiro de 2015 :: Não tomar partido

Domingos Pellegrini e esposa passaram o final de semana em casa. Dinho e eu conversamos sem parar por muitas horas. Está escrevendo um romance autoficcional sobre seu envolvimento com a guerrilha. Quando soube de A Bíblia do Che, falou que teremos livros parecidos. Não creio. Meu romance não tem crenças, não quer explicar historicamente o país. Nunca desejo isso ao imaginar uma história. Um romance é a radiografia de tensões existenciais, onde até mesmo o mais perverso dos personagens tem uma humanidade a ser considerada.

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18 de janeiro de 2015 :: Contínuo narrativo

Escrevi mais um bloco de A Bíblia do Che. Cada bloco tem em média 6 /7 páginas. Pela previsão inicial, teria que escrever mais um – mas isso pode mudar – antes de fazer a viagem para a Bolívia, que entrará no romance. Na volta, escreverei o capítulo de fechamento. Para mim, é extremamente importante seguir o plano da narração. A escrita no caderno está me ajudando a ver o romance como um contínuo narrativo. Não sairá cheio de pedaços. Terá um capítulo atrás do outro, na ordem em que foi escrito, e talvez o leitor reconheça nele uma energia que não se interrompe nem se desvia. Isso está dando ao livro uma naturalização de estrutura. O fato de eu usar, na parte final, a lógica de um diário de viagem também reforçará esta ordenação sequencial. Espero que tudo que discuto aqui seja confirmado pelo romance, no momento em que eu o ler.

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13 de fevereiro de 2015 – sexta-feira :: Escrever no temporal

Semana de tumulto. Greve dos professores e funcionários estaduais do Paraná. Reuniões, debates, conversas. A ficção se torna um grande desafio. Deixar de lado todos os problemas e criar horários vagos para habitar o mundo da imaginação. Por mais difícil que seja, esta é uma provação necessária. Ou escrevemos mesmo quando o temporal destrói nossa casa ou não somos de fato escritores.

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21 de fevereiro de 2015 – sábado :: Pensar o romance

Escrevi três páginas de A Bíblia do Che, que se encaminha para o fim. Este é um momento mais de pensar o livro do que de escrevê-lo. Deixar tudo bem amarrado, pois um romance que incorpora a gramática do policial deve ser uma máquina bem ajustada.

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1º de março de 2015 – domingo :: Recuo tecnológico

Levantei de madrugada e comecei a digitar A Bíblia do Che. É uma experiência nova, vivida antes apenas com um ou outro conto. Nada mais antiquado do que passar a limpo um romance inteiro. Este recuo tecnológico é uma afirmação de linguagem.

No ato de digitar não há mais a tensão de extrair da imaginação uma história. Desativamos a parte imaginativa do cérebro para usar, de forma mais intensa, a do policiamento crítico. A digitação se faz limpeza, poda, testagem do material. Trabalho mais intelectual depois das explosões criativas, sempre sem paciência. Agora, escrever relendo, relendo muito. O livro inteiro vai passar novamente por mim, a partir de meus olhos e meus dedos.

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3 de março de 2015 – terça-feira :: Copiando o romance

O melhor método para digitar os manuscritos é ler o parágrafo antes e ver se precisa ou não de melhoria. Geralmente precisa. Daí vou copiando com alterações. É comum ter que voltar à solução primeira, pois logo descubro que para aquele trecho fazer sentido preciso de uma palavra que apaguei ou troquei.

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30 de março de 2015 – segunda-feira :: Leitor de si mesmo

Mais um capítulo digitado e revisado. O novo romance me tomará ainda uns 15 dias de trabalho. Já me desprendi das cenas escritas, então é uma surpresa ler os capítulos aos quais eu não tinha voltado. Faço este trabalho como alguém totalmente externo ao livro. Fico aguardando o que vai acontecer na narrativa que escrevi. E isto dá um prazer de leitura que eu não conhecia nesta intensidade.

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Miguel Sanches Neto é escritor, professor universitário e crítico literário; escreveu Chove sobre minha infância, Herdando uma biblioteca, e Um amor anarquista, entre outros

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