* Por Raimundo Neto *

O absurdo

Eugène Ionesco, francês, autor do livro O rinoceronte, escrito em 1960, que inspirou a peça “Canto para rinocerontes e homens”, é conhecido por tratar absurdos.

O livro foi adaptado para uma São Paulo de 2016 inflamada por uma selvageria absurda: o amor e a compreensão arremessados pela janela quando as panelas tornaram-se tambores concordantes com opressões sofridas pelas minorias maiores do País. A estética que extravasa a montagem é um ato político, reflexivo e catártico. A montagem torna-se um mundo próprio de significados e reflexões impossíveis de serem deixadas de lado.

Permitir-se a experiência que é ver/ouvir/morder/lamber/sorver a montagem, (com direção de Rogério Tarifa e o grupo de atores da Escola de Arte Dramática da USP) ajuda-nos a compreender como o espetáculo é, no mínimo, original. Se original não é a palavra apropriada, devo tentar: diferente, poético, forte, valente, firme, afiado e mordaz.

Nunca havia visto o absurdo de Ionesco em palco, muito menos a elegância visceral do organismo formado por Rogério Tarifa, Jonathan Silva, William Guedes, Guilherme Carrasco, Murillo Basso, Luísa Valente, Rubens Alexandre, Viviane Almeida e Gabriela Gonçalves.

A peça é um coração guerreiro, cuja força está na poesia de aceitar simplicidades, gestos miúdos, redentores, e deixar correr algum tipo de vida musicada, sangue limpo, de nascentes infinitas. De todo canto de um sonho inalcançável brota alguma esperança. De lá vem o que nos torna rinocerontes ou homens?

As partes do monstro:

I – A razão embrutece aos goles da sanidade

Na cena que abre o galopar do embrutecimento, Jean e Bérenger estão num boteco, em São Paulo: núcleo de absurdos. Berénger e Jean filosofam seus paradigmas, suas cegueiras cotidianas: a razão petulante de Jean desdenha da displicência embriagada, cortês e poeticamente produtiva de Berénger.

Berénger é uma alma vivamente embriagada. Jean um corpo dormente nas repetições de trabalho-casa-produz-quem-lucra-não-sou-eu-não-tenho-tempo-a-perder-preciso-vencer.

Ambos traçam caminhos numa discussão aparentemente infrutífera, quando um estrondo anuncia um rinoceronte descendo pelas ruas de São Paulo. Poeira e incerteza levantam-se, rompendo a lógica das coisas.

Outro Ato, e a discussão segue para uma repartição pública onde funcionários refletem sobre a passagem do rinoceronte e o surgimento de outros muitos. Eles existem ou não existem? Concretos ou abstratos? Possíveis? Fato ou alucinação? É um absurdo um rinoceronte passar por um lugar desses? São Paulo aceita ter sua ordem invadida sem planejamento prévio?

O palco está repleto de miniaturas de outros palcos, plateia e rinocerontes. As mínimas peçam se movem com ajuda dos atores. Estamos dentro e fora do palco. Ali, na representação, somos convidados a integrar, interagir. Mas mesmo que não tivéssemos sido convidados a tal, seríamos parte daquilo. Quem não é chamado a tentar viver outra vida todo dia?

II – A esperança emagrece aos golpes de vaidade

 Fui enganado, sou filho desse sistema. Não sei cantar, não sei sonhar, não sei fazer poema.”

No espetáculo, a palavra é cantada. A música é uma marcação de resistência. Poetizar-se para não embrutecer.

Os atos abrem-se com reflexões de Saramago, Mujica e Eduardo Galeano sobre a cegueira da insensibilidade, a lírica apologia da sobriedade humilde e cuidadosa, sobre os caminhos que as utopias revelam:

Jean e Bérenger discutem sobre o tempo e o trabalho. Jean não tem tempo para ler poesia, visitar a tia, beber cerveja.  A rotulada insanidade de Bérenger é atacada pela lógica cega de Jean. É o álcool ou o sonho que transforma Bérenger em um ser tido como cansado, sonolento, de ar negligente? Fora do boteco, a grande São Paulo vive uma epidemia que transforma homens em rinocerontes.

No “solo de um coração perdido que sabe que é tempo de se decidir”,  o ator quer entender o próprio corpo através dos discursos de ódio de uma sociedade conservadora.  Ele berra uma verborragia inaceitável em qualquer tempo. De Hitler a Bolsonaro, clamando pela natureza salvadora da decência e das tradições, a irracionalidade bestial de homens moralizantes ofende, agride, arranca pedaços e enterra corpos. Deus fez o homem e a mulher para procriar e matar? O que escapa do modelo é bestial, inaceitável, merece uma boa surra, facas no peito, cordas no pescoço, bocas amordaçadas, palavras afiadas, merecem um enquadramento violento. O corpo nu banhado de redenção e pecado do ator grita bestialidade: Olha o rosto daquela travesti, parece uma mulher de verdade. Traveco imundo, bicha nojenta, pau no cu (no pior dos sentidos), eu vou te quebrar todo. E a transformação avança. Quando o homem cede à selvageria, e transforma-se em bicho.

Uma mulher reconhece que o amor do marido perdeu a sensibilidade, embruteceu, e ainda assim resolver montá-lo e seguir companheira, cedida, entregue, bicho feito.

O corpo branco da fêmea manchado de vermelho. É sangue pintando a maldade que a força a desistir e chorar. Ou talvez não seja desistência. Não é fácil resistir a tantos golpes forjados todos os dias. O corpo negro pintado de branco e sangue é todas as mulheres ameaçadas pelo trabalho, pelo machismo, pelas palavras afiadas das obrigações inventadas. Na tela, um rinoceronte morto escorre crueldade.

A professora enquadrada critica o modelo de escola atual (e o de sempre). Alunos produzidos em série. Transformados em rinocerontes modernos. Os sonhos viraram pó, de giz; se sonho tem carne e osso, ali, na professora representada, tem corpo esmagado e esperança estilhaçada. Ela reclama, chora, esbraveja, entende que o Sistema cria uma entidade psíquica que aprisiona e limita chances de sonhar. E transforma-se, cedida.

A mulher arranca a própria pele, entende o amor como uma fraqueza. E o coração humano para de bater. Perde as medidas do corpo, das ideias. Perde a medida do que é ser bonita. Acredita na beleza inventada dos outros. “Que beleza é essa que empondera, que poder é esse que embeleza?”

Um guru feliz e expansivo declara oficial a caça aos derrotados, para ensiná-los sobre sucesso, baseando-se no livro de autoajuda que ensina que “o segredo do sucesso é tornar-se rinoceronte”, tornar-se como os outros, escolher os amigos certos, associar-se àqueles que fazem acontecer, aos positivos, aos empreendedores, e você se tornará um rinoceronte. Amigos tristes, melancólicos, cheios de problemas resmungões, amigos de bagagens pesadas, incapazes de enxergar como o mundo é irremediavelmente bonito? O guru diz que não. Só tem sucesso quem é rinoceronte, quem avança esmagando. Digamos não às borboletas, aos passarinhos, aos veados. O otimismo alucinado já não é por si um sucesso apavorado?

A transformação de Jean é assustadora. O homem que só sabe trabalhar, dono de si, que não perde o equilibro, rompe a tal da sanidade dos homens resistentes, e lambuza-se com a monstruosidade inevitável do capital/trabalho/tempo. A pele engrossa, o tempo escorre, no solo do trabalhador “que não tem tempo de ser humano”. Pelo corpo, o tremor animal avança nas palavras do homem que não sabe se livrar do tempo que o engole. Talvez não haja uma saída. E as palavras cedem aos grunhidos. O vazio nascido da falta de sonhos inflama a consciência, que explode, e aos pedaços, abre caminho para a animalidade. A falta de sonhos lateja, toma conta, e a racionalidade de Jean explode. A transformação continua. O monstro veste a pele de um operário e segue tremendo. O homem vira rinoceronte ocupando o corpo do operário sem tempo, sem sonhos, sem vida.

III – É possível sonhar com palavra cantada, quando a poesia atravessa a verdade e inventa um mundo novo

Homens e mulheres aprendem desde cedo a desejar sucesso. É um desejo inventado. Precisam de um primeiro emprego. De um segundo emprego. De um terceiro emprego. Precisam de dinheiro, e glória também. Não apenas para sobreviver. Sucesso e dinheiro formam identidades (ou apenas identificações). Uma oferta generosa do Sistema. Uma ideologia que atravessa gerações e classes. Compramos o que queremos ser com tempo de vida, diria Mujica.

Homens e mulheres precisam ouvir seu nome ressoando nos cantos do mundo que os ensina a querer mais. Aprendem a precisar do bonito e rejeitar o diferente. Aprendem a admirar a norma, o padrão. Aceitam o sudeste, porque o nordeste é seco, carente, fraco. Aceitam a brancura das vitórias elitizadas. Porque o negro é derrota, sussurram. E querem a magreza definida do corpo, porque os outros corpos são ruínas. Transformam no sexo enquadrado. Porque é errado não ter a própria natureza aceita.

Será preciso trabalhar duro, inventar horas a mais, endurecer a coragem. Acordar cedo, cedinho. Cortar os sonhos pela metade, em picadinho, e os pulsos, para temperar as conquistas. Será preciso enfrentar o mundo lotado de gente que não sabe mais sonhar. E suar. E sacrificar a saúde. E será preciso ainda amar o que é bonito, magro, bem-sucedido no outro, vitorioso, livre de dores, sem bagagens pesadas.

Nasce uma doença plantada pelo Sistema. Não vem de dentro; não corre nas veias. Vem de fora. E transforma homens e mulheres em bichos violentos.

A transformação em rinoceronte é uma revolta também, numa vida de muitos rumos: selvageria casca-grossa que perde a sanidade (se é que ela existe) e avança com a potência alucinada da moral e todos os costumes, todas as regras que definem homem/mulher, preto/branco, rico/pobre, patrão/empregado, heto/homo/bi/trans e tanto mais.

Escolhemos não enxergar o outro. A pressa nos impede. Precisamos acumular tempo e tantas vitórias. Não há espaço para música, poesia, um abraço amigo, um amor companheiro. O tempo precisa ser alimentado por conquistas: corpo, beleza, dinheiro, status, títulos, elogios, curtidas.

Regimes absolutistas e absurdos avançam e devoram qualquer sonho. As ideologias corruptoras de perspectivas embrutecem homens e mulheres, primeiro na superfície, e avançam pelas ideias e significados, até o núcleo: a palavra. Tudo se transforma em sons extravagantes e ruminações desesperançadas. Em Kafka (que influencia diretamente a obra de Ionesco), a metamorfose de Samsa é o abandono de sonhos e desejos. Um homem acorda inseto e casca-grossa, assustador, mas sua preocupação é o horário do trabalho. É o que somos: uns, rinocerontes; outros são insetos; alguém esmaga sempre alguém. Mas cegos e selvagens, palavras vazias e ruminações violentas, e todos despedaçados no final.

IV –  “Todo ato de amor é sem volta”

Todos os homens e mulheres em cena transmutam-se. Cada um com uma violência assujeitada, impossível de ser vencida: exigências, padrões inalcançáveis, discursos de ódio, violências de gêneros, raça, classe, etnia.

Foi impossível, para mim, não absorver todas as palavras cantadas e choradas. Li o livro de Ionesco, mas foi a peça que metamorfoseou algumas dores recentes, algumas tristezas latentes e minhas incertezas absurdas.

A peça é uma comédia escancarada que se transforma o tempo todo. É um drama-navalha abrindo a carne da palavra e deixando escapar poesia. Em muitas cenas, é a gargalhada que atiça os atos seguintes. O que faz rir é, pouco a pouco, passo a passo, engolido pelo drama. Não sei quantas vezes chorei. Não sei quantas vezes eu disse “Que foda!”

Como não se submeter ao sistema produtor de sujeitos deslumbrados (alunos, professores, mulheres, homens, gays, travestis, negros, brancos; classes que ralam e não extraem vitórias e glórias; vaidades gourmets integrais e sem glúten quebradas ao meio; belezas impossíveis e sem forma; glórias desgraçadas, títulos patéticos) que produz rinocerontes: brutos, um tanto cegos, avançando sobre a delicadeza do mundo?

O fim

No coração restará ecos de uma saída” 

O fim do espetáculo avança, escorre para fora dos espectadores. As três horas de todas as impressões líricas grudadas no corpo precisam escapar.

O espetáculo precisa mesmo acontecer fora de nós e inundar São Paulo. Fazê-la acordar. Cutucar este monstro incansável com vara curta. Falar de poesia, de amor, carinho, amizade, companheirismo, respeito, humanidade, sonhos e simplicidade.

O canto dos humanos, credos e crentes em utopias que ensinam a caminhar e seguir, ecoa pela rua quase adormecida. São Paulo precisa acordar.

Eu só não quero me tornar rinoceronte.

Eu só não quero me tornar rinoceronte.

Eu não posso me tornar rinoceronte.

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A peça será reapresentada no Itaú Cultural, entre os dias 15 e 17. Mais informações sobre a temporada, aqui.

(As frases entre aspas são excertos da peça)

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Raimundo Neto é escritor

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