* Por Luís Roberto Amabile *

Faz cem anos que um jovem e desconhecido estadunidense desembarcou em Paris com a intenção – e uma enorme ambição – de se tornar escritor.

Tinha 22 anos, não havia publicado nada nem escrito qualquer texto que impressionasse. Então por conselho de Sherwood Anderson – que o conhecia de Chicago e lhe deu cartas de apresentação – ele foi parar no coração do florescente modernismo europeu. Todos estavam indo para Paris na década de 1920. Como relata o historiador e jornalista William Wiser em Os anos loucos, a capital francesa atraía os principais escritores, pintores, músicos e bailarinos, muitos dos quais exilados da Rússia comunista e dos EUA sob a lei seca, o que originou um período único da história da cidade. Paris na década de 1920 mostrou-se o coração do modernismo, concentrando, segundo o crítico Malcolm Bradbury, um caldo cultural e artístico que incluía toda uma geração de autores com veia experimentalista. É nesse contexto que Ernest Hemingway viveu o período mais importante de sua trajetória. Paris mudou a vida do escritor. Para o melhor e para o pior, e sempre de maneira decisiva. Ali, como apontam Harold Bloom e Mike Gerrard em Bloom`s Literary Places: Paris, sua determinação de aprender a escrever textos literários sem adornos, construídos com frases simples e potentes, viraria o mundo das letras de cabeça para baixo.

Ernest Hemingway nasceu na pequena e (muito) puritana Oak Park, nos arredores de Chicago, em 21 de julho de 1899. Suicidou-se em 2 de julho de 1961. Entre essas duas datas, tornou-se o autor mais influente de sua época. Produziu clássicos como O sol também se levanta, Adeus às armas e O velho e o mar. Conjugou sucesso de público e de crítica. Recebeu o Prêmio Nobel de 1954. Analisando o prêmio num artigo de 30 janeiro de 1955, no Diário Carioca, Otto Maria Carpeaux comenta o “sucesso fabuloso e universal” de Hemingway, frisando como o escritor atingia, inclusive, os leitores incultos: “Seu caso é um dos raios em que a opinião da elite e a das massas coincidem”. O crítico ainda opina que, após tantos desacertos, a Academia Sueca se reabilitou ao premiar Hemingway, e não só porque ele era um grande escritor, dado que “outros grandes escritores também receberam, nos últimos anos, o Prêmio Nobel”.

O sucesso fabuloso e universal não seria possível sem Paris. Talvez nada fosse possível sem Paris. Quando chegou à capital francesa, em 22 de dezembro de 1921, era um garoto de 22 anos que, aos 18 anos, em vez de ir para a universidade, como desejavam seus pais, foi trabalhar de repórter-aprendiz em Kansas City. Queria escrever e o jornalismo lhe pareceu um atalho, e ainda fugia da vigilância familiar. Nos seis meses em que fez parte da equipe do Kansas City Star, então um dos maiores jornais do país, tomou lições de economia verbal que ajudariam a fomentar seu futuro estilo literário. Também já intuía que precisava ver o mundo, tocar a vida como ela era, sem palavras pelo meio, para depois reconstituí-lo com suas próprias palavras, numa ficção mais verdadeira do que a própria realidade. Dentro dessa perspectiva, alistou-se para dirigir ambulâncias nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, onde foi ferido e de onde voltou, no começo de 1919, com condecorações e a convicção, cada vez mais firme, de que seu caminho era nas letras. Não obstante, dois anos e meio depois, quando viabilizou uma maneira de retornar à Europa, ainda não havia publicado nenhum texto literário. Mais: apesar do ardente desejo, nunca havia finalizado uma história que valesse pena ser impressa. Não era uma questão de esforço. Ele tentava e tentava, mas faltava algo. Faltava Paris.

Hemingway foi morar na capital francesa acompanhado de sua primeira esposa, Hadley, com quem recém havia casado. Planejava manter-se como correspondente do jornal canadense Toronto Star, vivendo sem luxo, mas tendo a chance de viajar bastante e ler e escrever mais ainda. Hadley teve papel fundamental: acreditou no talento do marido, apoiando-o quando necessário, na parte emocional e também na financeira – havia recebido uma pequena herança, cujos rendimentos ajudariam a financiar a empreitada europeia. No centro de tudo, porém, está aquela Paris dos “anos loucos”, uma capital mais liberal e menos preconceituosa do que as outras, uma cidade que se refizera dos estragos provocados pelos bombardeios alemães e onde todos pareciam celebrar bebendo nos bares e cafés, dançando ao som do acordeão nos bals musettes, ouvindo jazz nos clubes noturnos. Uma esquina do mundo artístico, pela qual praticamente todos que chegaram a algum lugar passaram, nem que fosse para uma rápida visita, mesmo que apenas para dar uma espiada. Hemingway, ao contrário, sabia que precisava de tempo. Desde o primeiro momento, sentiu que havia muito a aprender – nem que fosse por osmose – daquela incrível movimentação criativa.

A osmose, com efeito, ocorre quando dois líquidos entram em contato e se misturam através de membrana porosa, por isso funciona, aqui, como metáfora: Hemingway e a diversidade parisiense se mesclaram e, de repente, ele se tornou parte daquilo. Respirando aquele ambiente de intensa criação, tendo convivido com grandes nomes das letras, amoldou sua formação literária. Mas a osmose é um fenômeno passivo. Não é tanto o caso de Hemingway. Em nenhum outro lugar, em nenhuma outra época, um aspirante a escritor poderia entrar em contato com a vanguarda de modo tão intenso e aprender com ela. Só que Hemingway fez mais. Ele se tornou a vanguarda, transformando-se no autor de uma prosa considerada revolucionária.

Uma vez na França, como observa John Gardner, em On becoming a novelist, Hemingway foi acolhido e pôde aprender com muitos dos melhores escritores de língua inglesa do período; tornou-se uma espécie de protegido do “maior teórico do período” (Ezra Pound) e de “uma das escritoras mais judiciosas e perspicazes” (Gertrude Stein), além de ter ficado amigo e recebido orientações de Scott Fitzgerald e convivido com James Joyce e Ford Madox Ford, entre outros.  O resultado é que em quatro anos (1922-1925) Hemingway tinha publicado, por editoras independentes comandadas por exilados, duas pequenas coletâneas de contos e poemas e um livro de contos por uma editora média estadunidense. Também havia escrito e estava em vias de publicar sua primeira obra por uma grande editora, o romance O sol também se levanta, que saiu em 1926 e o tornou aos 27 anos uma estrela do mundo literário – vide a resenha do The New York Times, edição de 31 de outubro de 1926, disponível online: “No amount of analysis can convey the quality of “The Sun Also Rises” It is a truly gripping story, told in a lean, hard, athletic narrative prose that puts more literary English to shame”.

Ressalte-se, por fim, que essa época foi eternizada por Hemingway em Paris é uma festa, um livro de “memórias ficcionais”, como afirma o crítico e biógrafo Carlos Baker. Isto é, o que Hemingway disse ter acontecido provavelmente aconteceu, embora nem sempre como ele contou. Ainda assim, a obra recupera a exuberância daquelas Paris dos loucos anos 20, assim como atesta o valor desse período formativo na carreira do escritor.

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Luís Roberto Amabile é escritor e professor na Escola de Humanidades da PUCRS. É autor, entre outros, de O amor é um lugar estranho (2012, finalista do Prêmio Açorianos) e O lado que não era visível para quem estava na estrada (2020, vencedor do Prêmio Minuano). Também colaborou com Luiz Antonio de Assis Brasil em Escrever ficção (2019). Em 2021 lançará A revolução francesa de Ernest Hemingway (ediPUCRS).

 

 

 

 

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