* Por Raimundo Neto *

  1. Algoritmos e engrenagens perversas

Já escrevi textos, no passado, sobre livros, peças de teatro, exposições artísticas, filmes. Há algum tempo não escrevo mais tais textos. O mundo literário especificamente (ou parte dele) tornou-se uma máquina neoliberal gigante de moer textos longos e inventar produções-rápidas-de-30-segundos, de inventar grandes nomes, engolir miudezas, num sistema quase infinito de figuras que se repetem, trocas de favores e conquistas, uma grande rede de poderes; uma máquina de compra-e-venda de textos encomendados produzindo sucessos, fracassos, polêmicas e vendas, e suas divulgações em vídeos de quinze segundos. Não tenho mais corpo para isso. Os algoritmos não têm tempo para grandes jornadas. Muitas palavras não cabem em quinze segundos.

  1. Amigos, ficção e as novas famílias

Há muito tempo eu não me apegava tanto a um personagem e a um livro. Não quis largar o livro muitas vezes; precisei colocá-lo de lado para deixar o choro respirar fundo. Por isso tive que inventar vontade para escrever algo sobre “Uma vida pequena” (Hanya Yanagihara,781 páginas, Editora Record, tradução Roberto Muggiati), um romance que, para mim, foi um espelho estilhaçado: reflexo e reconhecimento, ainda assim objeto cortante; e, apesar disso, levou-me a crer que aquilo que faz adoecer é maior do que supõe a nossa (minha?) subalternidade.

O romance é sobre quatro amigos (Jude, JB, Malcolm e Willem) tornando-se família, em Nova York. A personagem principal, na minha leitura, é a relação afetiva entre eles. Depois vem Jude: para onde tudo converge. A terceira personagem mais importante é a vulnerabilidade de Jude. Ele é uma vida que se apequena (“o que em sua vida não estava ligado a outra história maior e mais triste?” p. 456); não é uma personagem que goza na dor e reitera revitimizacões deliberada e cinicamente. Jude foi vítima, e é isso que Hanya aprofunda. A autora retrata a amizade entre homens gays e bissexuais, muito bem sucedidos, que seguem um fluxo de realizações e conquistas. Tudo isso numa Nova York crua, vibrante, monstro-metrópole que ainda oferta acolhimento, contraditoriamente compassiva.

É um livro imenso sobre uma infância reiteradamente violentada de modo individual e institucional, e como essas violências deixam marcas indeléveis; também é sobre outras formas de parentesco, para além das relações biológicas; sobre amizade e generosidade. Impossível, para mim, ler o romance e não refletir sobre famílias construídas para além das naturalizações de vínculos baseados na biologia e outras tradições.

  1. Vida psíquica do poder, a visão de arte de Sontag, e os piores anos de qualquer infância

Jude foi abandonado pelos pais; depois acolhido num mosteiro, depois em um orfanato. O Estado não cuidou de Jude. O Orfanato e a Igreja expuseram sua infância a gravíssimos abusos físicos e sexuais. Jude cresceu, desenvolveu adoecimentos complexos. O corpo de Jude é transformado, física e psiquicamente; ele passa a apoiar parte de seus movimentos numa cadeira de rodas e muletas (depois próteses); acompanhado de perto por um médico-amigo e por outros amigos. Tudo em Jude é uma imensa fratura causada pelo Estado e pela Igreja, e pelo Homem-Instituição. Jude não consegue – e não sabe como – enfrentar o Estado e os homens que incorporaram o Poder: “nunca pensou em desafiá-los” (p.607). Ele conviveu com consequências permanentes e tão profundas das violências sofridas que todo cuidado e afeto encontrados nas relações (dos amigos, família adotiva, e intervenções profissionais) ainda tinham “um impacto limitado” (p.623). Restou-lhe o corpo e um tipo de sujeição (apesar da beleza, da inteligência e muitos talentos, apesar do sucesso profissional); é uma sobra o corpo de Jude.

No romance, os Homens veem abjeção onde há infância. Jude inventa uma destruição porque acha que não há mais saída: impossível lutar contra algo tão grande. Resta-lhe uma vida pequena – “Jude deveria ter acabado… onde? Numa prisão, ou num hospital, ou morto, ou pior.” (P. 626). Embora ele tenha sobrevivido ao insobrevivível, ele é uma imensa fratura causada pelo Estado e pela Igreja, pelo Poder. Aqui, o discurso Homens para um lado e Mulheres para o outro não funciona. Se Jude é Homem, como pode ter sido tão violentado? (As descrições na narrativa são angustiantes!) É que Jude é uma infância pobre, vulnerável, esquisita, diferente, que fica à mercê de relações de poder abusivas e sistêmicas.

Anos depois, quando cria vínculos e relações afetivas com JB, Malcolm e Willem, Jude entende o que é família, e depois, já adulto, quando é adotado por Harold e Julia, segue um caminho possível, vivo. Mas há marcas fundas; o Estado e a Igreja entranhados no funcionamento de Jude, umas bestas famintas sussurrando sintomas, e Jude repetindo, e repetindo o que dói, e sangrando. Sangrando muito.

O que o narrador em terceira pessoa (e em trechos pontuais um narrador em primeira pessoa surge) conta – sobre a qualidade da relação entre os personagens, as descrições das violências, a vida adulta e o trabalho, uma NY até que acolhedora, os fluxos dos afetos, dos pensamentos e outros conteúdos internos das personagens – tem a função de criar outros sentidos para o contentamento, e dizer também, talvez, que existem outros modos de nos aparentarmos e sermos família, além das tradições e relações justificadas pela biologia; é como se o narrador apontasse para as Instituições e dissesse como são aterrorizantes e perversas, capazes de mutilar infâncias vulneráveis.

A leitura é conduzida de modo direto e indireto (as habilidades de Hanya com a escrita são notáveis), e há uma sutileza na construção da narrativa (imensa), com muitos flashbacks, digressões, nuances nas características das personagens e suas relações. Hanya compõe um tipo de intimidade-alteridade, e muita humanidade. Apesar do caminho longo, o romance não se torna cansativo ou labiríntico (e olha que gosto de livro-labirinto).

Li algumas poucas resenhas sobre esse livro (incluindo vídeos no Youtube). Algumas são críticas ao que chamam de exagero inverossímil apresentado na narrativa (“ninguém pode sofrer tanto assim na vida real”, disseram). Outras dizem que Hanya acentua estereótipos. Sobre isso tenho dois pontos complementares: Primeiro que verossimilhança não necessariamente precisa ter relação com um real exato (como uma aproximação fidedigna da realidade); como se uma ficção romanceada fosse uma imitação da representação única e particular de cada sentido produzido por quem lê. No ensaio “Contra a interpretação”, Susan Sontag escreve a respeito da natureza da nossa experiência com obras de arte (incluindo literatura) e os demais sentimentos e atos humanos, e remete-se a uma declaração de Nietzsche, em O nascimento da tragédia: “A arte não é uma imitação da natureza, mas seu suplemento metafísico, posta a seu lado para vencê-la”.  Segundo: como profissional que trabalha com garantia de direitos de crianças e adolescentes (e como pessoa que viveu inúmeros tipos de desproteções na infância e adolescência, tema que não gosto de falar publicamente =\) garanto que há muitas infâncias e adolescências cotidianamente torturadas no Brasil, submetidas a atrocidades inacreditáveis, como aquilo que sofreu Jude; infâncias que são vistas como abjetas, corpos expostos a um absurdo de gravidades, como se fossem não-sujeitos, à mercê dos desejos e fantasias de adultos, das Instituições (Família, Estado e Igreja) e de suas muitas práticas perversas; principalmente quando falamos de Homens-Masculinidades e as suas relações de Poder.

Ora, se uma obra de arte se funda numa distância da realidade vivida que é representada (Sontag, novamente), a mim parece quase impossível exigir de uma ficção uma semelhança quase palpável com as representações conscientes e inconscientes de quem lê o livro (e o compreende com seus atravessamentos particulares). Um romance é um objeto artístico, não uma imitação e/ou impressão da realidade (que são múltiplas). Mas, ok: cada qual com a sua leitura.

Na minha leitura, Hanya possui uma literatura demasiadamente humana; e também uma técnica capaz de articular precisamente aspectos internos das personagens e recortes mais amplos desses sofrimentos (e isso ela faz de um jeito seguro); uma escrita delicada e áspera. Minuciosa e complexa ela abre os cortes da história de Jude para contar algo muito maior: a estrutura do abuso sexual e físico contra infâncias vulneráveis, o sistema do poder, e os impacto indeléveis no desenvolvimento de uma infância precarizada e tida como subalterna e asujeitada. [Aliás, do longo e complexo conceito de asujeitamento (não existe essa palavra no texto da pessoa Butler) que Judith Butler elabora em “A vida psíquica do poder: Teorias da sujeição”, vale não apenas uma leitura; vale um aprofundado estudo, e é muito possível relacionar isso à construção da ideia de abjeção sobre o corpo de Jude.]

Mas para além dos aspectos técnicos e teóricos, Hanya Yanagihara trata da amizade como o fato/afeto/vivência mais importante na vida de qualquer pessoa; amigos são família, por escolha, vínculo; o afeto-saída capaz de amar, cuidar, proteger; uma resistência contra as práticas normativas e violentamente sistêmicas das Instituições (essas que dizem e validam como deve ser uma família, sempre biológica). Sempre me questiono (e busco pesquisar a respeito de narrativas como Uma vida pequena), e lamento não encontrar tantas quanto eu gostaria (talvez existam e não circulam, e/ou não chegam até a minha pessoa).

4. O corpo que (me) resta

O romance de Hanya Yanagihara é complexo e humano.

“Uma vida pequena” mobilizou demandas pessoais minhas; convivi com as personagens; refleti com intimidade durante dias, meses. Sinto que não larguei a mão de Jude.

Costumo mesmo assumir uma entrega genuína diante de produções artísticas (pinturas, fotografias, filmes, livros, danças). Nesse sentido, volto a Susan Sontag, que, ao escrever sobre obras de arte, disse: “frequentemente aplico à obra de arte a metáfora de um modo de alimentação. O envolvimento com a obra de arte acarreta, sem dúvida, a experiência de um afastamento do mundo. Mas a obra de arte em si é também um objeto vibrante, mágico e exemplar que nos devolve ao mundo mais abertos e enriquecidas. (…) O que uma obra de arte faz é nos levar a ver ou compreender algo singular, e não julgar nem generalizar. Esse ato de compreensão, acompanhado pela voluptuosidade, é o único fim válido e a justificação exclusiva e suficiente de uma obra de arte.”

Pensando sobre isso, entendo que ainda tenho tempo e corpo para me alimentar de livros assim, de grandes jornadas; livros longos; narrativas profundas, que me contam sobre a minha vulnerabilidade. Por isso inventei vontade.

Mais aberto e enriquecido, diante desse objeto vibrante, eu quis escrever algo sobre o romance. Andei com ele na mochila, senti o peso da leitura, a leveza da escrita, a enormidade do romance e suas personagens; vi as profundas cicatrizes de Jude, as minhas.

E nas marcas da alteridade e do reconhecimento do corpo que resta, eu quis abraçar Jude e agradecer à Hanya Yanagihara.

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Uma vida pequena, Hanya Yanagihara (Record, 781 págs., tradução Roberto Muggiati)

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Raimundo Neto é escritor.

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