* Por Sérgio Tavares *

No momento em que se inicia Escalpo, romance de Ronaldo Bressane (editora Reformatório), o protagonista, Ian Negromonte, encontra-se em maus bocados. Concomitante a uma recente separação, o jovem quadrinista se vê às voltas com uma demolidora acusação de plágio referente a seu último trabalho.

Enquanto se vira num sofá-cama no apartamento de um amigo, Ian perambula pelas ruas de São Paulo, em busca de um imóvel para alugar. Numa dessas visitações, conhece Miguel Ángel Flores, velho chileno, autor de livros policiais, cuja rotina se resume a cuidar de dois papagaios e resistir aos efeitos de um câncer agressivo.

O acordo pelo aluguel não vinga, mas essa não será a única vez que os caminhos deles se cruzarão. Ao participar de uma manifestação de rua, desses que pulularam nos anos últimos anos, o quadrinista tem os ossos dos dedos esmigalhados pelo cassetete de um PM, deixando sequelas que o impossibilitarão de desenhar por um longo período.

Ainda no hospital, recebe a notícia do amigo que terão de sair do apartamento e um telefonema imprevisto de Ángel Flores. Em fluxos mentais que assaltam a estrutura principal, descobrimos que o chileno veio ao Brasil em fuga da ditadura Pinochet. Naquele tempo, além do envolvimento em luta política, relacionava-se, de forma simultânea, com duas jovens, as quais engravidou. O velho, desse modo, faz uma proposta a Ian de que desvende o paradeiro de seus filhos, como uma espécie de último desejo.

O quadrinista, então, torna-se um dublê de detetive, lançando-se por alguns países da América do Sul, a princípio no encalço das antigas namoradas de Ángel Flores. A única pista disponível é que cada uma publicou um livro e depois desapareceu. Ian ilumina essas trevas do passado, circulando ele próprio por lugares obscuros e por uma fauna singular de onde alinha partes para a solução desse enigma e vivencia encontros extemporâneos que lhe fornecem ora prazeres juvenis ora massa de maturidade.

Bressane atrai para sua escrita a sedução do thriller policial, valendo-se de nuances extraídas do gênero para configurar um tráfego de referências que corre, em seu plano secundário, pela literatura hispano-americana. A investigação é inconfundivelmente o fio condutor, contudo temas como a ditadura militar, as desigualdades sociais e a violência que assolam tanto a nós quanto aos nossos vizinhos de continente fazem parte desse achamento geográfico, na mesma medida que são materiais inesgotáveis para a ficção de uma soma de autores latinos colocados no livro de maneira explícita ou evocativa.

O objeto de tributo é, sem dúvida, Roberto Bolaño. Do estilo à apreensão temática, Bressane toma emprestado a dinâmica errante e o flerte com a tensão detetivesca muito presente nos romances do escritor chileno, em particular em sua obra mais celebrada, Os detetives selvagens. Um olhar mais aguçado, porém, irá clarear conexões diretas, a exemplo do nome dos papagaios (Lautaro é o nome de um dos filhos de Bolaño) e o uso de uma graça corrosiva para se perpetrar apontamentos acerca do cenário intelectual de sua geração, comprometida com simulacros, premiações e feiras literárias.

Por falar nisso, o terço final do romance é passado em Paraty. E aqui cabe um parêntese: o livro foi escrito como consequência de uma residência literária, na qual o autor viveu alguns meses na cidade. Essa experiência in loco possibilitou uma percepção abrangente da realidade local, que muito foge dos cartões-postais e do charme produzido pela Flip. Bressane desnuda um pequeno território marcado pela violência do tráfico de drogas e de problemas de ordem básica, que coadunam com o mundo corrompido em que se reconhecem seus personagens, deslocados ao epicentro de seus temores mais remotos e de fechos que não garantem a estabilidade no futuro.

Escalpo, portanto, avulta-se por ser um palco de construção imaginativa ao mesmo tempo que um reflexo da realidade. Um livro com linguagem ágil e de alto teor magnético, cujo motor advém de elementos sensoriais e timbres eróticos, avançando por um curso sinuoso, mas que nunca se perde em função de o autor estabelecer marcos nos quais a história vai ganhando naturalmente recapitulações. Isso garante densas camadas aos personagens e às suas intenções, apontadas para se desanuviar um passado fantasmal.

Ao fim, funciona bem para o mistério que impõe e a forma de resolvê-lo, ainda que o mérito não esteja no propósito, e sim na condução. Bressane constrói uma jornada que, de uma dimensão particular, chama atenção e projeta o leitor ao encontro de uma literatura gigante que nos faz fronteira e que ainda não conseguimos compactuar adequadamente, para a qual relutamos olhar feito as mazelas que se escondem por detrás de uma cidade que transpira glamour por apenas quatro dias no ano.

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Escalpo, de Ronaldo Bressane (editora Reformatório, 248 págs.)

 

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Sérgio Tavares é escritor e crítico literário

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