Leia trecho do livro Cinco anos em Lyon, em que o jornalista americano Bill Buford conta sua experiência como cozinheiro na França. A obra de 2020 acaba de ser publicada no Brasil pela Companhia das ,Letras. 

Em uma tarde fria e ensolarada do outono de 2007, conheci o chef Michel Richard, um homem que mudaria minha vida — e a vida da minha mulher, Jessica Green, e de nossos filhos gêmeos de dois anos — sem que eu soubesse direito quem era; eu estava certo apenas de que, quem quer que fosse, era alguém que eu jamais veria outra vez. Minha mulher e eu tínhamos acabado de comemorar nosso aniversário de cinco anos de casados e éramos os primeiros de uma fila na estação ferroviária Union Station de Washington, à espera de embarcar de volta para Nova York. No último minuto, o homem que eu não sabia ser Michel Richard surgiu pela lateral. Ele vinha ofegante, era de um tamanho considerável, não alto, mas rechonchudo, e impossível de passar despercebido. Tinha uma barba branca discreta e usava uma camisa preta volumosa para fora da calça preta folgada. (Uma calça folgada de chef, reconheço agora.) Dei uma olhada nele e pensei: esse homem não me é estranho… Claro que não me era estranho! Que algoritmo da memória e da inteligência me havia feito não reconhecê-lo? Ele tinha escrito um livro, Happy in the Kitchen, que, por coincidência, eu havia ganhado de presente de amigos duas vezes, e seis meses antes ele tinha recebido, em Nova York, a “dobradinha” do prêmio James Beard Foundation nas categorias Melhor serviço de vinhos e Melhor chef dos Estados Unidos — comigo na plateia. Além do mais, bem naquele momento minha cabeça pensava em chefs franceses (por motivos que eu estava prestes a explicar para a minha mulher), e de repente surge um deles, considerado por muitos uma das mentes culinárias mais encantadoramente inventivas do hemisfério norte. Para ser justo, ele não tinha uma aparência nem encantadora nem inventiva e, indiscutivelmente, cheirava a vinho tinto, a suor também, e desconfiei que a camisa preta esconde-manchas dele, se alguém olhasse de perto, revelaria um impressionante resumo da história bacteriana. Então, por esses e outros motivos, concluí que, não, aquele homem não podia ser alguém de quem eu me lembrasse e, quem quer que ele fosse, estava definitivamente querendo furar a fila e, em busca de uma brecha, havia se postado à frente da minha mulher. O portão se abriria a qualquer momento. Esperei, me perguntando se eu devia me aborrecer. Quanto mais eu esperava, mais incomodado me sentia, até que finalmente o portão se abriu e eu fiz uma coisa feia. Quando o homem se precipitou para a frente, passei por ele rápido e, bam, trombamos um contra o outro. Trombamos com tanta força que perdi o equilíbrio e desmoronei desajeitadamente sobre a barriga dele, que de alguma forma me impediu de cair, até que, sem nem sequer perceber como, fui parar em seus braços. Nós nos encaramos. Estávamos tão perto um do outro que poderíamos nos beijar. Seus olhos se alternavam entre meu nariz e meus lábios. Então ele deu uma risada. Um riso leve e desinibido. Foi mais uma risadinha do que uma gargalhada. Poderia ter sido o som de um menino sentindo cócegas. Eu aprenderia a reconhecer esse riso, agudo e às vezes incontrolável, e a amá-lo. A fila avançou. Ele sumiu. Eu o avistei ao longe, descendo uma plataforma. Seguimos em frente devagar, minha mulher e eu, e, no que me diz respeito, eu estava um tanto boquiaberto. No último vagão, eu e ela encontramos lugares de frente um para o outro, com uma mesa no meio. Coloquei nossas malas no bagageiro e parei. A janela, a luz oblíqua de outubro… eu já havia estado ali antes, no mesmo dia do calendário 

Cinco anos antes, depois de celebrarmos nossa condição de recém-casados com uma improvisada lua de mel de duas noites em Little Washington, uma vila no interior da Virgínia, embarcamos nesse mesmo trem, de volta para Nova York. Naquele momento, eu estava prestes a sugerir à minha mulher, com quem eu estava casado havia 48 horas, que comemorássemos o casamento pedindo demissão de nossos empregos. Nós dois trabalhávamos como editores. Eu na The New Yorker. Ela na Harper’s Bazaar. Eu havia preparado um discurso sobre nos mudarmos para a Itália, o primeiro passo em direção ao resto de nossa vida. Eu queria aprender com os italianos a fazer a comida deles e escrever sobre isso. Poderíamos ir juntos? Não era exatamente uma pergunta. Jessica vivia em busca de uma chance de fazer as malas e tinha um dom para línguas que, convenientemente, incluía aquela falada na Itália, da qual, por acaso, eu não falava uma palavra. Nunca mais voltamos a ser editores. Moramos na Toscana por um ano e, não sei como, meio que virei um nativo. Para meu espanto contínuo, quando abria a boca e expressava um pensamento, ele saía (mais ou menos) em italiano. Na sequência, eu queria “fazer” a França. Não que fosse o próximo na lista (no sentido de “Depois a gente ‘faz’ o Japão!”).  

 Era secretamente o lugar onde eu queria passar o resto da minha vida adulta: numa cozinha francesa, conseguindo me virar, tendo sido “treinado na França” (a magia eterna dessa expressão). Mas eu não conseguia nem imaginar como isso poderia acontecer. Nosso período na Itália, no entanto, tinha me mostrado que não era preciso de muita imaginação — era só conseguir ir até lá e depois você daria um jeito. Além disso, o dom para línguas de Jessica incluía, convenientemente, a falada na França, que, por outra coincidência, eu também não falava. 

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Cinco anos em Lyon, de Bill Buford (Companhia das Letras, 541 págs.)

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