*Por Angelo Mendes Corrêa e Itamar Santos *

Gaúcho de Santo Antônio da Patrulha, Paulo César Rosa da Conceição é vigário da Paróquia Santa Teresinha do Menino Jesus, na cidade de Campo Bom, RS. Nascido na zona rural, nunca entendeu o fato dos animais serem criados para o abate, envolvendo sofrimento e suplício. Há alguns anos, tornou-se conhecido nas redes sociais por seu ativismo a favor de uma nova ética tratando das relações entre humanos e animais. Este ano, publicou o livro O despertar da compaixão – reflexões do Antigo Testamento sobre a compaixão animal e o veganismo.

Em que momento da vida surgiu o interesse em questionar a relação entre os homens e os animais? Assim como a maioria dos veganos com que tenho interagido, questiono tal relação desde criança. Hoje, com a facilidade de comunicação, temos visto muitos vídeos mostrando crianças que se negam a comer carne, por fazerem a ligação do consumo com a crueldade animal. Então, comigo foi assim, desde a infância. Nasci num meio rural, onde tínhamos animais domésticos e outros criados para a exploração. Sofria com o luto pela perda dos animais domésticos e sofria de igual forma quando matavam porcos e galinhas ou vendiam bovinos para os matadouros. Chocava-me, por exemplo, saber que os bezerros recém-nascidos se transformariam em salame. É um questionamento ético que me acompanha pela vida toda.

As religiões poderiam contribuir para uma nova ética a respeito de nossos companheiros de caminhada no planeta, os animais ditos irracionais? Com toda certeza. Eu sempre digo que o problema da indiferença para com o sofrimento animal não está nas religiões, mas sim nos religiosos. Eu despertei mais profundamente por ter contato com o budismo, pois onde eu morei e trabalhei como professor, Três Coroas, RS, há um grande mosteiro budista que eu visitava de vez em quando. Lá, eu via placas dizendo para cuidar e não pisar nas formigas e ouvia muito falar na palavra compaixão. Mas, como católico, fui buscar referências em minha religião para o respeito com as demais criaturas. Surpreendi-me ao encontrar um vasto material, principalmente na Bíblia Sagrada, nos documentos dos papas, nos escritos e testemunhos dos santos, de modo especial, São Francisco de Assis, protetor dos animais e da natureza. Na Europa, existe uma corrente teológica em defesa da libertação animal e logo chegará ao resto do mundo.

Por que razão é uma falácia dizer que é bíblico terem sido os animais criados para nossa alimentação? Pela má interpretação de textos tirados fora do seu contexto e atualidade. O cardeal Ratzinger, futuro Bento XVI, quando era Prefeito para a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, escreveu um documento da Comissão Bíblica Católica chamado “A interpretação da Bíblia na Igreja”. Neste documento, ele coloca que existem alguns textos bíblicos de difícil compreensão, obsoletos, caducos e incoerentes com a ética. Por exemplo: encontramos Deus ordenando a guerra, a vingança, a escravidão, o machismo, a xenofobia, os sacrifícios, etc. Muitas vezes, os seres humanos impõem leis absurdas e para serem acolhidas dizem que foram dadas por Deus. Creio que entra aqui a questão da dita permissão de Deus para explorar suas criaturas. Não é o que vemos no início do plano divino que temos no Gênesis. Encontramos inúmeras passagens bíblicas que manifestam a compaixão animal, o cuidado para com eles e que eles são reflexos da presença e da essência de Deus. Por que ignorar centenas dessas passagens e se apegar a outras poucas que falam em matanças e exploração? Além do mais, a palavra de Deus deve ser sempre atualizada para que tenha sentido e seja uma luz para a humanidade.

Frei Gilmar Zampieri, no prefácio de “O despertar da compaixão”, diz: “O papa Francisco deu início ao fim do sono especista antropocêntrico…” O papa estaria também preocupado com o direito à vida dos animais consumidos pelos humanos? Sem dúvida nenhuma. Concordo plenamente com meu amigo Frei Gilmar Zampieri. Aproveito também para agradecê-lo por todo empenho na mediação para publicação do meu livro. Não somente o papa Francisco, mas os outros papas anteriores, sempre transmitiram uma palavra de cuidado e compaixão para com a natureza, na qual estão inseridas todas as criaturas. O problema é que quase ninguém lê os documentos, as encíclicas e as catequeses dos papas. Porém, devido à grave crise ecológica que vivemos, o papa Francisco tem sido uma voz mais insistente nesse sentido. Desde a sua primeira encíclica, “Evangelli Gaudium” (“A alegria do Evangelho”) ele aponta nesta direção, ao dizer que não somos meros exploradores dos demais seres, mas sim seus guardiões. Na encíclica “Laudato Si’ (“Louvado sejas”), o papa trata de todos os problemas ambientais que estamos enfrentando e denuncia a destruição sistemática da “casa comum”, que é o nosso planeta. Na “Fratelli Tutti” (“Somos todos irmãos”), ele também não esquece dos demais seres, ao dizer que eles também são dignos de compaixão. Já fui questionado também que o papa não é vegano ou vegetariano. Parece que não é mesmo. Mas não podemos negar que ele tem apoiado muito quem escolhe este caminho ético-moral. Eu entendi que ele não assume o veganismo por já ter muitos embates internos na igreja e seria por demais desgastante fazer mais uma opção que fosse contra o império da morte que domina o mundo. Creio que ele age politicamente. Uma importante mensagem do papa Francisco é que a humanidade deve fazer uma conversão radical nos hábitos de produção e consumo. Como deixar a alimentação fora disso?

Num mundo culturalmente carnívoro, como é pregar em favor do direito dos animais à vida? É ter a consciência de que não seremos bem compreendidos. Receberemos alguns rótulos: radical, desequilibrado, chato, antissocial etc. É acreditar que um dia o mundo desperte e se torne vegano, mesmo que no momento atual isto pareça totalmente impossível. É ter paciência para com aqueles que não acatam a proposta vegana. Há vários grupos de opositores: os que debocham, os que agridem, os que são indiferentes e os que acolhem, mas dizem não conseguir fazer a transição. Optar pelo veganismo, aos olhos humanos, não é nada inteligente na questão social e até mesmo profissional. Por isso, a decisão pelo veganismo é alicerçada pela compaixão, sentimento que brota de corações extremamente humanos, corações de carne e de mente aberta ao novo que liberta. O ser humano que se torna vegano o faz por convicção. Jamais um vegano poderá ter a tentação de se sentir superior a quem não é, afinal, a grande maioria dos veganos também já comeu carne, tomou leite, usou acessórios de origem animal. Cada um tem um tempo para despertar e não é conforme a nossa vontade.

O senhor afirma em seu livro que os lucros gerados pela indústria agropecuária e farmacêutica favorecem a famosa “engrenagem da morte”. Como isso funciona? Sim, faço esta afirmação. Ouvi isso de um sacerdote e nunca mais esqueci. Engrenagem é a metáfora usada para entendermos que uma indústria movimenta a outra, estão interligadas. Poderíamos simbolizá-la assim: pecuária, que movimenta comércio e consumo de carne, que por sua vez provoca doenças, que por sua vez provoca a compra de remédios, que por tudo isto provoca a destruição do planeta e a morte. Tudo vem pela propaganda. Primeiro, colocar no inconsciente coletivo que não se vive sem carne, sem leite e sem ovos. Inclusive, setores da medicina pregam tal falácia. Os laboratórios fabricam remédios que não curam, mas perduram as doenças. A propaganda enganosa é a grande vilã. Há quanto tempo ouvimos, sistematicamente, que só a carne tem proteína, que só o leite tem cálcio e assim por diante? Vale lembrar a propaganda de cigarros, décadas atrás. Fumar era top, recomendável e elegante. Mas, no caso de consumo de animais para termos saúde, hoje temos inúmeros médicos nutrólogos, nutricionistas e terapeutas veganos que provam, por a+b, que tudo o que precisamos para nosso organismo está nas plantas, verduras, legumes, grãos e frutas. É preciso nos libertarmos da mentira que domina o inconsciente coletivo, cristalizada há décadas, de que não vivemos sem carne e derivados animais. Se fosse assim, não teríamos tantos doentes, hospitais lotados e farmácias amontoadas, umas sobre as outras.

Por que o  veganismo é uma forte maneira de mantermos a nossa comunhão com Deus? A razão é que o plano de Deus, exposto no Gênesis, é vegano. Vemos, claramente, na narrativa da criação, que os animais foram criados para glorificar a Deus e aos seres humanos, que vieram por último, foi dada a missão de guardar, conservar e cultivar a criação. No Jardim do Éden, todos eram veganos. O consumo de carne aparece após a queda do ser humano, sendo expulso do paraíso e, em consequência, quebrando a comunhão com Deus. No capítulo 11 de Isaías, temos a criação renovada e nela encontramos todos os animais vivendo em plena harmonia. Jesus Cristo nasceu entre os animais, pois, se nascesse entre os seres humanos, seria morto. São Paulo, na Carta aos Romanos, capítulo 8, diz que toda criação geme, como em dores de parto, à espera da manifestação dos filhos de Deus, para também ela (a criação) ser liberta do pecado e da morte. Por tudo isso e muito mais, reafirmo: o plano de Deus é vegano. Enquanto a humanidade não viver este plano, nunca terá comunhão plena com Deus e o mundo sempre estará mais configurado a uma situação de inferno, de ausência de Deus, do que um lugar sadio para se viver. As profecias bíblicas apontam para uma reconciliação entre a criatura (ser humano) e o criador. Os animais não humanos jamais saíram do Plano de Deus. Jesus ressuscitado, ao ser identificado como um jardineiro para Maria Madalena, nos remete ao Jardim do Éden, onde está o verdadeiro papel do ser humano no mundo: ser à imagem e semelhança de Deus.

 “O despertar da compaixão” é composto por 55 capítulos que propõem ao homem uma ação transformadora, um olhar de compaixão para os animais não humanos. Podemos ter esperança que um dia essa transformação aconteça? Sim. Com certeza. Apenas lamento constatar que esse processo de transição acontecerá pela dor. Não poderia fazer uma estatística exata, mas tudo demonstra que poucos despertarão pela questão ética e moral. A grande maioria despertará pela necessidade de sobrevivência. A prova disso é que já passamos por várias epidemias (praticamente todas originadas da exploração animal) e pouco de mudanças vimos nos hábitos e práticas humanas. Sempre uso a metáfora de que a água chegou ao nosso joelho, veio na cintura e agora só temos o nariz empinado se segurando pela ponta dos pés. Haverá um momento em que a humanidade terá que escolher: ou para de explorar os animais ou morre. O Coronavírus é o cartão de visitas do que está ainda por vir. Além das pandemias, aguardamos o colapso climático e a escassez de água, em pouco tempo. Mas, creio que a verdadeira revolução que fará a necessária transição para o veganismo está nas futuras gerações, nas crianças que estão vindo ao mundo a partir de agora. Elas encontram um mundo onde já nascem com problemas de saúde, tem que usar máscara e não podem ter muito contato com as pessoas. Elas irão se questionar sobre a razão disso tudo. A partir daí, vão querer mudar a realidade. Resumindo, acredito que o futuro é vegano pelas promessas bíblicas, pela necessidade de sobrevivência e pelo despertar das futuras gerações.

Um dos capítulos mais cruciais de seu livro é intitulado A agonia. O senhor visitou algum matadouro? Alguns capítulos realmente são tensos, mas é preciso relatar a realidade, fazer acordar do estado de torpeza coletiva. Nunca entrei num matadouro e nem pretendo entrar. Apenas passo na frente e vejo em fotos, nas redes sociais. Quando eu era criança, havia um pequeno açougue na comunidade que matava os animais num pequeno recinto, onde havia uma porta que permitia ver da estrada o animal sendo morto. Lembro-me de uma vez ver um boi amarrado e um homem à frente dele, com uma marreta nas mãos. Apressei o passo para não presenciar tal cena, quando estava vindo da escola. A palavra matadouro já diz tudo e está diretamente ligada ao quinto mandamento do Decálogo. O ambiente de um matadouro é pesado. Conheci funcionários que trabalhavam nesses locais por motivo de sobrevivência e tinham sérios transtornos psíquicos. Acredito que quem trabalha nesses locais sem sentir nada possui traços de psicopatia. Se Deus tivesse feito os animais para serem comidos pelos seres humanos, um matadouro deveria ser um templo, no entanto, é um puxadinho do inferno. Porém, é preciso dizer que aquele que consome animais, patrocina tal indústria e paga para alguém matar o animal, destruindo a vida do animal e do assassino.

Pode nos adiantar um pouco sobre os novos trabalhos que vem preparando, que darão continuidade ao tema tratado em “O despertar da compaixão”? “O Despertar da Compaixão” é o primeiro volume de uma coleção que pretendo lançar. Já fiz um levantamento de toda a Bíblia Sagrada e vi que precisarei escrever sete livros para perpassar toda ela (quatro sobre o Antigo Testamento e três sobre o Novo Testamento). No fim de tudo, pretendo lançar a Bíblia Vegana, contendo o texto sagrado e minhas reflexões. Outro projeto é realizar uma versão infantil de cada volume. Estou levando esse projeto no peito e na raça, usando minhas economias para a publicação. Por isso, a realização do projeto depende do apoio da sociedade, principalmente vegana. Fiz um propósito com São Francisco de Assis de reverter todo lucro, caso haja, a projetos animais e ajuda a protetores humildes. Para tanto, preciso de uma parceria para administrar tais ajudas. Por enquanto, não tenho apoio de nenhuma celebridade vegana, o que seria importante para a causa. Tenho contado com a ajuda de amigos e amigas das redes sociais que estão adquirindo meu livro pelos Correios, diretamente comigo. Falo isto pelo propósito que tenho de ser transparente para com aqueles que me apoiam no projeto.

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Paulo César 1

O despertar da compaixão, de Paulo César Rosa da Conceição (Editora Estef210 págs.)

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Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

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Na imagem ilustrativa, “Galo”, de Aldemir Martins. 

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