* Da redação *

A versão alemã do livro de crônicas Está (quase) tudo bem, da jornalista e escritora Luciana Rangel – publicado no Brasil pela Folhas de Relva Edições -, acaba de ganhar o prêmio “Bayerns Beste Independent Bücher” (Melhores livros de editoras independentes da Baviera).

Publicada na Alemanha pela editora Hagebutte, a obra foi selecionada pelo Ministério da Ciência e Artes do Estado da Baviera. Além do selo dourado na capa, o livro de crônicas sobre imigração será levado pelo estado da Baviera para as principais livrarias e feiras literárias do país.

Conforme o jornalista Flávio Tavares, o livro de Luciana é uma sucessão de surpresas. “No início, parecem memórias brotando como cogumelos após a chuva. Logo, personagens irrequietos, inconformados com a geografia, pulam de um continente a outro, da cidade à floresta, no ir e vir do drama da imigração, que desconhece até a casa natal. O pai é o ponto de partida e de chegada, mas nos leva além do familiar. Toda ficção parte de algo vivido, retratado em personagens e situações inventadas, mas vindas do real. E a escrita surge como uma câmera de fotos, até porque – como diz Luciana – ‘as ideias do coração são difíceis de explicar’”.

Novo livro no ano que vem

A autora mora na Alemanha desde 2005. Em sua trajetória, soma experiência na imprensa internacional e nacional. Suas produções sobre história, política e cultura foram premiadas pela União Europeia e TV Globo. Recebeu também o Prêmio Petrobras pelo documentário Brasil: País da saudade. Como autora, participou da antologia bilíngue Saudade é uma palavra estragada (Bübül Verlag), de Escrever Berlim (Nós) e do Salão de Outono do Teatro Maxim-Gorki de Berlim. É doutoranda do Instituto Latino-Americano da Universidade de Bielefeld.

Ano que vem, no primeiro semestre, a autora terá outra obra publicada pela Folhas de Relva. Trata-se de Ruth contra Hitler, tese de doutorado na Alice Salomon Universidade de Ciências Aplicadas, que será transformada em livro-reportagem. O tema é a jornalista Ruth Andreas-Friedrich, que trabalhava para a imprensa nazista do país e escondia famílias judaicas em sua casa, tendo salvado dezenas delas do holocausto.

Link do livro no site da Folhas de Relva: https://www.editorafolhasderelva.com.br/esta-quase-tudo-bem

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Leia uma crônica do livro:

Deslocamento

Levei meus filhos até a creche e arrastei o corpo até em casa. Meu voo era a uma da tarde, precisava pegar as malas. A lembrança do dia cinzento aperta o peito ainda hoje. Deixar os filhos e, sem olhar para trás, pegar um avião com a perspectiva de voltar a vê-los em três meses foi algo que gostaria que a memória, ao longo dos anos, apagasse. O desespero era um não querer mais ir. Desisti naquele dia dos meses que iria viver. O futuro que me aguardava seria um futuro-passado ruim, visto que o presente se fazia miserável. Três amigos carregaram-me para dentro de um táxi e para o segundo mais feio aeroporto do mundo, Berlim Schönefeld. O primeiro é, sem dúvida, o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, o Galeão. Em todo o trajeto, a confusão de pensamentos embaçava o vidro do carro. Nove anos que tentava fazer caber em três malas. Como embalar a história da nossa vida? Como empacotar amigos e momentos tão importantes? Pensar em objetos, roupas e adereços em um momento como esse é fuga. Fugir da dor do adeus. Dizer “Tchau, até daqui a pouco” é até bom. Dizer “Tchau, um dia a gente se vê” petrifica o coração. Acredito, sinceramente, que se possa morrer de saudade. 

As horas que antecederam o voo foram ásperas. Os amigos ligaram para o meu pai, apelaram para discursos bem elaborados para explicar o medo que eu deveria enfrentar. Não há argumento que convença uma mãe a abandonar suas duas criancinhas num país. Mesmo assim, sabe-se lá como, em estado apático, entrei no avião. Soa dramático e confuso, mas se tenta viver a vida sem mácula. Cheguei a Lisboa e só no dia seguinte voaria para o Rio. Em Portugal, na saída do aeroporto, peguei um translado para o hotel. Já telefonava para mãe, pai, irmã, marido. Eu não dormi. Deixei as horas escorregarem entre as roupas que tirei, na tentativa de tomar um banho e lavar minhas ideias. Queria voltar para casa. Às oito da manhã liguei para a agência de viagem. Se corresse para o aeroporto, ainda conseguiria retirar as minhas malas do avião. Meu celular parou de funcionar. Era como uma espécie de jogo em que as etapas se tornam cada vez mais difíceis. Mas a vontade é a grande patrocinadora da inteligência. No aeroporto de Lisboa eu era um corpo oco. O coração ficou em Berlim. Era como em um transplante. O corpo aguarda aflito pela chegada do órgão. Liguei o computador e entrei na internet. Encontrei minha irmã e Ana, uma amiga; e elas, entendendo ou não o que estava a acontecer, ajudaram-me a comprar um voo de volta para Berlim. 

Há momentos em que a comunicação é telepática. A cabeça girava e eu não conseguia mais estar em lugar nenhum. Precisava me esforçar, pois as três malas de mais de 30 quilos não poderiam ir comigo no novo voo. Eu tinha duas horas para pensar na forma de mandá-las de volta a Berlim. “Moço, por favor, me ajuda.” E convenci um velhinho português com um táxi caindo aos pedaços a apoiar uma estranha e chorosa brasileira, com uma bagagem tão complicada quanto a história que contava. Saquei o dinheiro que consegui em um caixa automático e fomos atrás do galpão onde a empresa de carga se encarregaria de levar o peso daquela viagem até Berlim. Eram vários galpões. Por várias vezes precisei, junto do senhor septuagenário, arrastar as malas pesadas. Pesagem, muito caro. Tirei bombons, xampus, presentes. Pesagem, o.k., registro, envio. Aeroporto. Abracei o taxista. Agradeci calorosamente e dei-lhe o restante do meu dinheiro. Meu estômago lembrou-me do jejum e comprei um suco. Lisboa-Bruxelas-Berlim. Este era o percurso. Se troquei de avião ou comi algo no aeroporto? Não me lembro. Cheguei muito tarde no Tegel, em Berlim, e, procurando um abrigo neutro, decidi ir para a casa da Ana, em Potsdam. Queria chegar com calma e, antes de ver meus meninos, entender o que aconteceu. E precisava dar alguma satisfação ao ex-futuro chefe. Não havia o que dizer, mas era preciso falar. Não dá para fazer como os pássaros, nós humanos somos carregados de apegos. O deslocamento dos pássaros se dá de maneira intencional e voluntária. Faltaram-me a intenção e a vontade.  Era previsível um voo abortado. Para mim, acabara a possibilidade de voltar para o Brasil com um emprego razoável. Voltar para o Brasil. Quantas vezes sonhei que estava voltando com meus filhos, revendo amigos, abraçando a família. Inúmeras foram as vezes em que morri de saudades, antes de dormir, no banho ou quando me via sozinha. A saudade da família é latente, é cotidiana. Não me lembro quando, mas da mesma maneira que nos conformamos com um problema de saúde crônico, aceitei e incorporei a saudade na minha vida. E segui, dentro das limitações.

De manhã, acordei mais forte e quis resolver a situação. Telefonei para o emprego novo e, para minha surpresa, eles ainda queriam me contratar. Antes da fuga, a do avião, foram meses de sofrimento. Meses. Noites mal dormidas, dores de cabeça. Rio de Janeiro ou Berlim? Voltar a ter uma vida agitada, viver perto da família, dos amigos, ou ficar na minha vida “corda-bamba”, no picadeiro que é Berlim? Sentir calor o ano inteiro ou ter sempre uma meia no pé? Falar português todos os dias ou pensar em alemão? A dúvida é como uma alergia, incômoda. Depois da conversa, em que não houve respostas, e sim mais dúvidas, fui para casa de trem. Só há dois lugares no mundo, hoje, que me dão essa paz. Os meus filhos e o meu pai. Beijei minhas crianças e fiquei agarrada a elas no sofá. Se eu “requisesse”, o emprego era meu e poderia começar em três semanas. Aí seriam dois meses sem meus filhos. Passei dias com a sensação de viver na companhia de um disco arranhado. A música é boa, você quer escutá-la, mas o disco repete insistentemente a mesma canção. Para mudar para a próxima faixa, eu precisava levantar a agulha, soprar para tirar as poeirinhas e, com as mãos, mirar na linha. Quantas vezes fiz isto na minha adolescência. Mas e se a nova música fosse ruim? E se eu quisesse voltar a escutar a velha e não conseguisse mais mudar a posição da agulha e, pior, se ela quebrasse?

Três semanas depois, mudei a faixa.  Sem entender o porquê, com apenas uma mala e nova passagem, embarquei para o Rio de Janeiro.

Ao longo dos anos, ao pisar no Rio, literalmente eu tirava o casaco. Dessa vez, vesti um incômodo e imaginário sobretudo de medos e preocupações. Em quase dez anos, as cidades e as pessoas mudam muito. Enfrentar as mudanças do que era minha casa era ter que encarar no espelho minha imagem invertida, moldada para se adaptar ao frio, a sobriedade do inverno. A língua colada ao céu da boca, as camadas de tecido a esconder a pele e um apreço à solidão que antes morava em algum lugar subcutâneo. 

Era uma primavera chuvosa e o trânsito estava ruim. Demorei para chegar ao Leblon. Subi de elevador, apressada, batendo as malas nas minhas canelas. Depois de meses de agonia, dei um abraço no meu pai.

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Imagem ilustrativa de Vitor Rocha, que ilustra as versões em português e alemã da obra.

 

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