* Por​ ​Ana​ ​Rüsche *

“Conselhos para quem escreve” é um ciclo de conversas na livraria Tapera Taperá, em São Paulo. A ideia da atividade é mostrar o cotidiano dos participantes  e dar dicas para quem quer seguir na empreitada da escrita. No encontro que narro aqui, prosa e poesia se encontram, com a poeta Francesca Cricelli e o romancista Julián Fuks.

Além do português, eles possuem outro idioma em sua vivência, respectivamente, o  italiano e o espanhol. Os dois se valem de trabalhos na área de tradução em seu cotidiano, um bom ponto de partida para começar a falar sobre o ato de escrever: a escolha. Embora Francesca e Julián consigam escrever literatura perfeitamente nos seus idiomas natais, optaram por escrever suas obras em língua portuguesa.

Francesca começou a fazer poesia em italiano. Aprendeu português em casa, longe do Brasil, com a mãe. Escreve em língua portuguesa,  sem abandonar o italiano e o inglês, idiomas que a acompanham desde a infância. “Sempre alguma coisa vai soar um pouco estranho em português, alguma construção, alguma sintaxe, porque não consigo me livrar completamente da outra estrutura e cheguei a um ponto que também não quero me livrar dela”. Aproveita-se do bilinguismo para se afirmar num não-lugar, utilizar a dúvida a seu favor. A escolha pela língua portuguesa, diz a poeta, traz tradições típicas da poesia italiana. 

Julián concorda a respeito do estranhamento que causa o atrito de dois idiomas. Filho de argentinos exilados no Brasil, sentiu estranhamento na infância em relação aos dois idiomas. “Um distanciamento como seu eu fosse estrangeiro ao espanhol e ao português, nenhuma delas era propriamente a minha.” Ele tem uma habilidade rara que compartilha com Francesca: “A Resistência”, seu romance mais recente, será publicado na Argentina, em breve, e, o tradutor será o próprio autor. 

Conselho: observar os usos do próprio idioma, distanciar-se do texto

Fuks fala de algo que qualquer outro escritor irá reconhecer – a necessidade de observar os usos da língua. Aqui, o conselho para quem escreve seria o seguinte: há que se conseguir contemplar o próprio idioma com uma certa distância. Para Julián, deve se manter o “perguntar-se”, constantemente, a respeito da forma das palavras, variações de sentido. Enxergar palavras e analisar estruturas como alguém que aprende uma vez mais a própria língua.

Cricelli aponta outro aspecto benéfico dessa visão mais distanciada. A importância de ler em voz alta, verificar se o poema ou um parágrafo de sua tese está bem escrito aos ouvidos. Escutar outra pessoa imaginária lendo o seu texto. É crucial desenvolver a capacidade de agir como seu próprio editor: “A escrita também é ter essa percepção que vai nos dois sentidos, que é descrever, mas ter a capacidade de olhar para o seu texto e com um certo desapego”. Abrir mão de frases. Abrir mão de parágrafos. Selecionar. Aprimorar.

Reparar nas urgências do mundo e lidar com obsessões

Na conversa, um tema que surgiu mais de uma vez foi o pêndulo entre distanciar-se e aproximar-se. Como conjugar o mergulho no texto e o afastamento crítico necessário para aprimorar a escrita?

A poeta responde certeira: repare na urgência. Uma de suas paixões mais recentes em estudos, o trabalho da poeta italiana Jolanda Insana (1937-2016). Jolanda não menciona inspiração, mas “fala sobre uma urgência de uma coisa que tem que ser contada.  Então, é isso que sinto, não é muito uma inspiração, mas é uma urgência. Ela fala que existe uma coisa, tipo uma obsessão, que é quase aquele começo de uma paixão: quando você se apaixona por alguém, você fica obcecado, fica pensando. A escrita tem um pouco isso. Quando você se livra dessa obsessão, você sente um vazio, você tá pronto pra se apaixonar e se relacionar com outro tema que você ainda precisa tirar de dentro de você mesmo e do mundo”.

Da plateia, Fabio Mariano Pereira elaborou uma ótima questão a Julián: como seria este apaixonar-se quando se escreve uma narrativa longa? Fuks declara que “a escrita do romance pressupõe fidelidade. (risos) Eu sou plenamente fiel às minhas paixões.” Ao responder a pergunta de Breno Jonta Barreto sobre como foi descobrir sua própria voz como escritor, revela uma técnica interessante para lidar com obsessões. Em “História, Literatura e Cegueira”, realizou uma imersão máxima na obra de James Joyce, João Cabral de Melo Neto e Jorge Luis Borges, de modo a “deixar aquela voz me habitar e habitar minha própria voz e que ali houvesse algum retrato não da vida desses autores mas também da construção literária de cada um deles”. Contrasta este livro com “A Resistência”, publicado oito anos depois, em que procura se libertar de técnicas anteriores nas quais era fixado – como reparar excessivamente no uso de repetições de palavras (“maníaco do crtl+L”) – procurando então mais observar onde palavras repetidas aparecem, onde podem reaparecer, aparecer reinventadas, direcionando a obsessão formal para permitir que a noção de resistência surja no livro de diferentes maneiras.

Abrir a lojinha e refletir sobre a arquitetura de seus escritos

Como ambos exercem o ofício de tradução e escrita com regularidade, perguntei como faziam para cultivar o hábito de escrever. Julián contou-nos uma parábola ótima, que escutou do israelense Amós Oz (1939): “Ele encarava o ato de escrita como uma profissão como outra qualquer. O cara tem que abrir a loja, ele é um vendedor. Se vender algo, nesse dia, foi um bom dia; se não vender nada, a loja esteve aberta e, pelo menos, o profissional estive ali. De certa forma é respeitar esse enquadramento (…) se eu conseguir escrever um parágrafo ou uma frase nesse dia, ótimo! Nesse dia, vou dormir tranquilo; se eu não conseguir escrever, tudo bem! Pelo menos, fiz a tentativa. Noo dia seguinte, você tenta de novo, abre a lojinha de novo.”

Francesca mencionou algo também muito relevante a respeito de hábito e planejamento, que é a etapa de rever poemas e pensar na ideia de livro. Como é entender um conjunto de poemas e os entender formadores de uma unidade? O conselho é olhar para os textos e procurar descobrir qual é a narrativa: existe uma dramaturgia? Existe uma narrativa? Existem coisas em comum? A partir deste raciocínio, reflete a respeito da posição que cada poema ocupa no livro, não é nada por causalidade. “O título, o título do poema e o título do livro; as seções, quantas são? Então tudo isso é muito trabalhado. Isso, acho que é tão importante quanto o trabalho do poema, né?”. Alcançar essa arquitetura final.

A repercussão do “Conselhos para quem escreve”

O ciclo de entrevistas “Conselhos para quem escreve” trouxe a experiência de oito escritores a respeito do ato de criar textos. Além da transmissão ao vivo pelo Facebook, o projeto teve público presente em carne e osso e boas perguntas. A audiência foi significativa, com média de mil visualizações por entrevista. Recebemos perguntas inbox, selfies de pessoas assistindo e até uma charge! Pessoas de muitas cidades brasileiras e mesmo gente que compreende português e mora fora. Aqui vão dois depoimentos:

Renato Carvalho, de Uberaba, reuniu um grupo de amigos para assistirem às transmissões. “Apesar de alguns atropelos locais, típicos de um sábado à tarde, acompanhamos as entrevistas com atenção e prazer, pois, afinal de contas, a literatura, a escrita e a leitura se entrelaçam com muita emoção.

Lucas Moura, escritor de Curitiba, enviou o seguinte depoimento: “Assisti a autores dividindo o que têm de melhor ao conversar sobre temas espertamente trazidos por Ana Rüsche. O escritor precisa se mexer? Correr riscos é preciso? Como é trabalhar com poesia no Brasil? E prosa na internet? Quais seus hábitos? Precisa publicar livro? Tem que viver da escrita? Quanta coisa contida em 4 horas de conversas. Em uma palavra, “Conselhos Para Quem Escreve” me ofereceu riqueza. Assim, sem pedir nada em troca.”

Os vídeos estão disponíveis na página da Tapera, https://www.facebook.com/taperataperah). As entrevistas foram transcritas e preparadas por Vitória Lima para este texto publicado agora na São Paulo Review.

Sobre Francesca Cricelli e Julián Fuks

Francesca Cricelli é autora de “Repátria” (Selo Demônio Negro, 2015), “Tudo que toca o olhar” (Casa Impressora Almería, 2013). Em seu trabalho de tradução, destaca-se as cartas de Giuseppe Ungaretti e Edoardo Bizzarri.

Julián Fuks é escritor e crítico literário brasileiro, filho de pais argentinos. “A Resistência” (Companhia das Letras, 2015, Prêmio Jabuti), “Procura do romance” (Record, 2012, finalista do Prêmio Jabuti) e “Histórias de literatura e cegueira (Record, 2007) são alguns de seus livros.

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Ana Rüsche é escritora, formada em Direito e em Letras. Doutora em Letras na área de Estudos Literários e Linguísticos em Inglês com a tese “Utopia, feminismo e resignação”, é autora do romance “Acordados” (Demônio Negro, 2007) e do livro de poesia “Furiosa” (edição de autora, 2016), entre outros .

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