Diários da Índia

* Por Krishna Monteiro *

 Goa, Sul da Índia, 20 de agosto de 2015

– Consegue ver os pássaros? É difícil percebê-los, já vão longe. Tempos atrás eles teriam menos pressa, ficariam até o início da noite. Mas agora levantam voo com o dia ainda claro. Não os culpo. São prudentes.

“Daqui a pouco virá a treva. Ela tem chegado cada vez mais cedo. Agora a treva é tão espessa e rápida ao cobrir tudo em Goa. Não é a mesma da infância, minha e dela, treva. Eu descia estas escadas da varanda, corria até o portão pelo qual você passou há instantes, recebia meu pai, puxando sua mão enorme, tentando abarcá-la entre meus dedos de menina. Lenta, leve era aquela época, sua treva e pássaros. No percurso pela escada, meu pai me contava como havia sido o dia nos campos. Enquanto isso, as aves permaneciam no parapeito, pacientes, velando-nos como estátuas, apesar de saberem que a noite já queria seu lugar. Meu pai limpava as botas. Afrouxava o cinto. Gritava para a cozinha. Somente aí eu libertava sua mão, corria outra vez para a varanda, batendo braços-asas como um deles, e dizia: ‘Pronto. Estão livres pra partir’. Somente aí voavam, pássaros. Sim. Somente aí. Hoje, sequer aguardam o fim da tarde. Não me reconhecem.

“Havia corvos. Havia garças. Não os culpo, tenho lutado para manter de pé a casa, porém me fogem forças, que fazer? Este forro de madrepérola entre as telhas da varanda, por exemplo: sua missão era deixar passar a luz numa época em que não se conhecia o vidro. O forro ainda é o mesmo. Possui alma e matéria idênticas às que o constituíram faz trezentos anos. Foi um dos nossos, dos Alfaia-Toledo, que mandou trazê-lo do Brasil, nossa colônia, ex-colônia, não é de lá que você vem?

“Fiquei surpresa ao ver-te passar pelo portão. No início, confesso que tive um pressentimento ruim. Que logo alvoreceu numa alegria, pois ouvi tua fala, teu ‘Boa tarde’ em português, língua hoje praticamente morta, aqui. Este forro de madrepérola, como disse. Veio em arcas no fundo de navios, na rota Porto-Rio de Janeiro-Goa. Entre escalas nos Açores, nas Canárias, impulsos tomados no Golfo da Guiné, na boca de ventos da África, que sopravam a nau até a tua costa e país, onde se recolhiam víveres, alinhavam-se sextantes e bússolas, como dizendo aos instrumentos: ‘Pronto. Estão livres pra partir. Até o Cabo da Boa Esperança, e de lá para a Índia’.

“Havia gaivotas. Albatrozes. Do alto, contemplavam aquele casco elíptico que tanto recordava o dorso de uma ave marinha, e no interior do qual, ombro a ombro, a madrepérola disputava espaço junto a ferramentas com que na Índia nos enraizamos: mosquetes, pistolas, espadas e bombardas, charruas e sabres e arados, foices de duas lâminas para a infantaria e aquelas de manejo curto só para os pescoços das hastes de cana-de-açúcar, e também sementes, mudas de amaranto, de cajus e maracujás, de pimenta e sálvia, e homens de gengivas corroídas de escorbuto indo e vindo em procissões pelo convés à noite, sob a luz de tochas, Pai, velai por nós, tal como fazíamos no pátio desta casa.

“Entre. Não convém ficar de porta aberta a esta hora. Em caso de perigo, há as fendas na parede. Ainda se lembra delas? Desculpe, você me recorda um dos retratos que eu mantinha no aparador mas que resolvi trancar pra sempre, por conta da lembrança doída de sangue ao vê-lo, ver-te. As fendas, eu dizia. Aberturas escavadas com o tamanho exato pra se enfiar canos das armas. Furos na pedra e tijolos através dos quais os Alfaia-Toledo fizeram fogo, defenderam-se. Pois os outros atacavam sem aviso. Lembro de um dos jantares de meu pai: mesas alinhadas em sequência embaixo dos lustres, pernas dos garçons se perdendo lá no alto, passando por mim, que caminhava entre elas, dobrava para o teto os olhos, seguindo meu reflexo na base das bandejas. E então, os outros; alguém deu o alarme: eles chegavam; logo no dia escolhido por meu pai e tios para celebrar o lançamento do primeiro jornal de Goa; ou talvez por isso, exatamente, por estarmos todos aqui. Foi no fundo escuro do pátio que os descobrimos; através das fendas, vimos como corriam em círculos, fechavam-se ao redor da casa, incapazes de se esconderem no interior da noite por mais que o desejassem, tamanhas eram as cores transbordadas de suas roupas; e então o grito, brotado da cabeça de um de nós rente à parede, com um olho de guarda na fenda; e quando tua cabeça saltou pra trás, teu olho era também agora só uma fenda de sangue em redemoinhos, crostas já ensaiando se emoldurar em torno; por isso retirei o teu retrato há pouco dias, peço que me compreenda, queria apagar a memória de teu corpo repuxando contorções nos tacos, de tuas mãos em desespero, tentando preencher a fenda no crânio com os restos da massa que um dia havia sido olho; de meu pai gritando Armem-se!, e fuzis de mão em mão passados, e juízes, fazendeiros, comerciantes, editores do primeiro jornal de Goa e até o padre, cada um postado em frente à sua fenda na parede, tal qual ameias de castelos na terra que abandonamos, longe, ao decidir aqui nos transplantar, por qual razão?

“Havia abutres. Eles riam ao devorar seu pasto no corpo de vacas que tombaram de doenças; levantavam o pescoço, nacos de carne pendendo dos bicos, e eu sabia que riam de mim, me chamavam traidora. Diziam que me aliei aos outros; que estes, quando se viram incapazes de entrar na casa de Alfaia-Toledo pelas armas, usaram de outras estratégias; que eu sucumbi a elas; que, ao tomar no fim das tardes na varanda o café servido por uma deles, eu aceitava pedaços de gengibre colocados na minha xícara em segredo, só para mim; que comia, meu pai nunca poderia saber, a comida deles, de cócoras no terreiro com minhas coxas rentes às das crianças deles, deixando de lado talheres e em lugar disso manuseando pedaços de pão finos, recém-nascidos, pulsando, translúcidos, ainda quentes; que inseri em minha fala palavras irmãs daqueles pães e especiarias; que nunca confessei ter aprendido e dominado como poucos o jogo deles, aquele no qual se simulam num tabuleiro batalhas e mortes, e que manejava com maestria o rei, as torres, a dama, os cavalos, e por ter compreendido como lidar com estas e outras peças fui eleita, aos trinta anos, representante de Goa no parlamento português, compareci à primeira sessão envergando o Sari de gala das mulheres deles, os outros, e ao dar a mão a Salazar, contar-lhe minha história, deveria ter dito (acusam os abutres), mas nunca disse: ‘Hoje é a primeira vez que piso em Portugal, pois na verdade nasci numa casa entre mangueiras, à beira da praia, no Sul da Índia’. Acusam-me; de até mesmo agora, nestes anos que me restam, acusam-me de aproveitar o fato de ser a última aqui sobrevivente, de ter trancado em armários estátuas de Nossa Senhora, de São Francisco, e até mesmo aquela sangrando em pés e mãos de cravos transpassadas, e de, após renegá-las, curvar descaradamente este corpo que é só ruína diante dos deuses deles, em especial o que possui cabeça de elefante, tronco e membros de homem: Ele, o que abre portas, desobstrui caminhos e obstáculos, e em breve me receberá.

“Entre. Lembra-se da biblioteca? Sim, ela ainda existe. No fim da ala esquerda. Próxima a teu quarto, que em algum lugar destes corredores, tenho certeza, também existe. Mas só amanhã cedo te darei a chave dela. Agora é tempo de descansar, tomar um banho para tirar o pó, e então comer”.

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Krishna Monteiro é jornalista e escritor, trabalhando atualmente da embaixada do Brasil na Índia. Foi finalista do Prêmio Jabuti – 2016, na categoria Contos e Crônicas. Seu segundo livro e primeiro romance será publicado em 2018 pela Tordesilhas

Foto: Nione Cristina Claudino

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