* Por Raimundo Neto *

Na recepção, o sangue de Jesus e a luz de sua verdade são entregues gentilmente: Jesus avisa ao espectador quando beber o vinho e acender a vela. Jesus chega pelas beiradas, dirige-se ao centro. Entra a atriz Renata Carvalho. A atriz no centro do palco com o coração aberto, no altar, e iniciam-se os sermões de libertação. Assim  começa a peça “O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu”, censurada em Jundiaí, SP, por trazer uma transsexual no papel de Jesus Cristo.

Jesus voltou para pregar, fora de uma igreja. No centro do palco, em uma esquina qualquer. Sabe aquelas esquinas imundas que abrigam muitas travestis e suas quedas? Jesus quer dividir a luz de sua sabedoria divina com homens e mulheres. Jesus voltou e não é aceito numa igreja. Jesus travesti. Onde está escrito que não?

Jesus, no palco, está nua, a pele ferida de verdade, arriscando a vida ressuscitada para sobreviver a doutrinas e alianças às quais o Jesus (o real, o histórico ou o ficcionado) contado na bíblia nunca aceitou. Ela, a travesti, conta algumas parábolas bíblicas, que são revisitadas com temas nos quais os gêneros de homens e mulheres pulam do armário, abandonam a própria casa, dançam funk, embriagam-se de fugas mundanas, e retornam ao lar, depois de muita dor, perdoadas. A boa filha a casa torna e ajuda a vida de um homem bêbado condenado pelos Homens da Lei.

Os apóstolos contados por Jesus, na peça, são homens e mulheres, no dia a dia, pisoteados pelo caos dos Homens de Bem, esses, sim, apenas homens, protegidos em templos faraônicos, pedindo todo o tempo que o nosso dinheiro pode pagar, e mais, mais dinheiro. Onde está escrito que o Jesus histórico cobrava por milagres? Jesus disse alguma vez que Deus precisava de dinheiro e uma multidão de bichas e travestis e lésbicas e transexuais mortas e esquartejadas?

A Jesus do palco, a travesti, não precisa perdoar ninguém, nem a si; cada um sabe o que é. E ela tem nome: Renata Carvalho.

Renata, no palco, inventa o céu: acende algumas velas e veste as estrelas que acabou de conceber. Fez-se a luz, depois a escuridão, e antes foi noite absoluta, e depois dia de novo. Talvez na vida da Renata seja assim: essa costura de alegria e sacrifício, catar estrela caída depois dos desaforos gritados em pleno dia. Renata expõe os verbos, as gírias que seu coração aprendeu na rua, e desconstrói a ideia de um Jesus másculo e doce, abre as portas do armário e mostra os vestidos, o salto alto e o casaco branco que cairia muito bem no corpo da filha da Rainha do Céu, que é Deus, que é mulher, que é o que ela quiser.

O corpo da atriz é o lugar da fé: entregue ao público desde o início, sermões afiados, parábolas reinventadas, os deboches discretos; um templo simples, longe da arquitetura portentosa das casas de Salomão que cobram riqueza e prometem um céu de mentira. O corpo de Renata traz consigo uma salvação que é bondade e talento. Eu vi a verdade e a vida nos olhos da Jesus de Renata. Nos seios de Renata, Sol e Lua, a reinvenção do mundo, o corpo de Cristo.

Comi o pão do corpo de Renata, bebi seu sangue. Aquele sangue que centenas de travestis veem escorrer pelas paredes surradas da pele, depois dos golpes de ódio, nas ruas. Renata é a Jesus que abraça a marginalidade das putas, dos doentes, dos órfãos, dos estrangeiros, dos pobres, dos famintos, dos gays e lésbicas, das transexuais, os indefesos. Não era isso que o Jesus histórico, aquele que mora na bíblia, pregava?

Sexo, para a Jesus de Renata, é comunhão, um dos muitos possíveis atos para se encontrar o sagrado no humano. E salva. Redime. As palavras da Jesus, no palco, no altar, apontam redirecionamentos: não se trata de céu ou inferno, mas sim se manter honesto com o que se pensa sobre si: se me sinto mulher, me falo mulher, me mostro mulher, me digo mulher, me narro mulher; e santa, mesmo puta; e boa, mesmo condenada; amorosa, mesmo detestada. Depois de Renata, eu quero ter o corpo de Cristo transformado em mim, antes de morrer no meio da rua, agonizando.

O que a encenação apresenta é um elemento de força no palco: Viver Jesus travesti ao mesmo tempo em que fere o corpo de crenças dos espectadores apegados, principalmente, talvez, ao Cristianismo e suas ideias de salvação e pecado, também apresenta os sacrifícios diários de uma travesti que quer a sua verdade, e não a que lhe enfiam goela abaixo, e faz sangrar.

A peça cutuca, com cajado curto, homens e mulheres apegados a ficções do corpo[1], cujos entrelaçamentos com suas identidades, em sua maioria, são vividos como invenções. O que é dos homens, o bicho não come. E o que é da mulher e da bicha, da travesti, da transexual, da lésbica, eles fazem o quê? Invadem, tomam posse, roubam pedaços, escondem o corpo e condenam, depois vão a público falar de um deus macho com voz sonora e catastrófica, sem corpo, que se repete há séculos através de múltiplas interpretações. Seres crentes amarrados a ideias nada mais que humanas mantêm-se apegados ao sagrado como evento ficcional, que ao longo da História (e põe Estória nisso), não se permitiram questionamentos ponderados sobre contradições presentes nos textos bíblicos.

Ao voltear pelo teatro, Renata convida a plateia, desde a entrada do corpo de cristo no palco, até o fim, a purificar seus apegos. O feminino é resgatado pela palavra e pelo afeto. Eu vi o coração da atriz rebolar nu, eu vi o coração da atriz ascender ao céu e derramar bênçãos. Eu orei. Pedi perdão por não ser outro ou outra. Por ser o mesmo, mesmo que recomeçando, com a boca cheia do corpo de Cristo. Pedi perdão à Rainha do Céu, numa oração nova. Cuspi a igreja que tentou inventar minhas ladainhas. Aceitei Renata sagradamente puta, de vestido de paetê, abençoando gente bêbada, de língua ferida que não sabe pedir socorro, e morre.

A atriz Renata Carvalho dá flor e fruto. Não está em cena para oferecer maçã de pecado, nem para ser veneno e condenação. Renata oferece um fruto sagrado: tem vida mais sagrada que essa que ela salva todos os dias, desviando das ofensas, dos maus tratos, xingamentos, chutes, cuspes, mãos pesadas sobre os ombros, as palavras que insistem em chamá-la de homem? Tem aspecto mais divino numa mulher como Renata que salvar-se todos os dias? Jesus faria mais e melhor? Aliás, ele fez mais e melhor, segundo a bíblia?

Trago dois aspectos lembrados por mim ao assistir à encenação:

  1. O Rabino Nilton Bonder, no livro A alma Imoral, não entende como pecado quando nos permitimos repensar as histórias bíblicas. Para o rabino, faz parte da natureza da alma questionar-se para evoluir. Afinal de contas, quem hoje estaria salvo se estivéssemos nos Tempos da Lei do Antigo Testamento? Ler a bíblia e encarar as religiões como detentoras de um poder sobre-humano através do qual se grita, armado de propostas assassinas, é manter-se numa tradição canonizante da ideia de família imaculada que restringe e ameaça nossa sobrevivência. Trair e transgredir tradições intocadas é permitir o surgimento de um mundo que irá além da tolerância, “um mundo de apreciação”, segundo o rabino: “Nesse novo mundo, no entanto, não haverá crucificações.”
  2. Em março de 2016, o ator Silvero Pereira (autor e ator da peça BR-Trans) fala em entrevista a Aderbal Freire-Filho, no Canal Brasil, que pensa o seu trabalho no teatro de uma forma estética e que interessa-lhe também a questão política dessa atuação.

Assim, não sei se esta foi a intenção da diretora Natalia Mallo (que traduziu e adaptou o texto da dramaturga Jo Clifford) e da atriz Renata Carvalho: transgredir, ficcionar, poetizar o corpo e o gênero, hastear bandeiras, cutucar, politizar o palco através de poesia. Mas foi a isso que Natalia, Renata, Jo, Gabi, Anna, Juliana Augusta, Jimmy, Maria do Desterro, Fabrício e Gisele, Patrícia Antoniazi, Dalia, Patrícia Cividanes, Ligia e Lilian chegaram, pelo menos na minha perspectiva: uma proposta estética e política, uma “militância poética”.[2]

Para entender esse espetáculo é preciso abrir o peito, permitir-se reinterpretar as estórias contadas sobre Jesus que não necessariamente representam o “Jesus histórico”[3]. Para receber esse espetáculo no corpo é preciso ouvir a história de Renata, ouvir as histórias/estórias de Jo Clifford, ouvir seus enfrentamentos, mergulhar nos olhos profundos da Jesus de Renata. É preciso permitir-se as tentativas de salvar as multidões de mortes que começam todos os dias, na rua, das travestis e transexuais, em sua maioria, sem nome. E qualquer uma delas não seria salva por Jesus? E qualquer uma delas não poderia ser dita Jesus?

Não é mais possível ler a bíblia sem uma apurada e madura capacidade interpretativa. Como não é mais possível julgar a encenação de “O evangelho segundo…” sem despir-se dos apegos condenados de aspectos ficcionais e simbólicos da bíblia, mesmo que tenham sido supostamente verdadeiros.

Deus tem custado muito caro atualmente, para algumas pessoas frequentadoras de algumas igrejas; um milagre muitas vezes sai pelo preço da própria vida. E o que Renata ensina é a ser mulher e poesia, detalhes redentores que, hoje em dia, salvam.

Pecado é servir uma ordem que julga e condena sem antes abrir o peito para aceitação e respeito. E Renata Carvalho é um milagre em cena, entregue, corpo, alma e algumas bênçãos. O coração no altar.

E a arte de Renata e Natalia é uma veia aberta que não precisa de perdão, é uma veia aberta que não precisa sarar.

[1] Termo teorizado pela psicóloga Érika Figueiredo Reis a partir de estudos da obra de Foucault

[2] Expressão usada pela escritora Sheyla Smanioto em discussão sobre, dentre outros detalhes, sobre literatura e militância, em mesa compostas pelos finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura.

[3] Como nomeia o rabino Nilton Bonder

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Raimundo Neto é escritor e crítico literário

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