* Por Krishnamurti Góes dos Anjos *

Heidegger afirmou com muito acerto que: “Nenhuma época acumulou conhecimentos tão numerosos e tão diversos sobre o homem como a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber acerca do homem sob uma forma que nos afete tanto. Nenhuma época conseguiu tornar esse saber tão facilmente acessível. Mas também, nenhuma época soube menos o que é o homem.” Com efeito; somos senhores de um patrimônio de conquistas tecnológicas e científicas, organizado para dentro de uma sociedade hedonista e egoísta onde coabitam os elementos mais desvairados e onde nos debatemos num espectro de passividade a assistir o esmaecimento/evanescimento de todos os valores e de todos os sentimentos. Neste início do Século XXI, o que Bauman chama de “entendimento natural” necessário à vida em comunidade parece ficar cada vez mais raro. O acesso à informação, a capacidade de visualização do universo mundial, por meio de mídias cada vez mais velozes, e a vida social cada vez mais competitiva levam o ser humano a uma solidão crônica.

Seria este o preço a pagar, já que tudo tem um preço em meio a tantos avanços tecnocientíficos e biotecnológicos? O homem vê-se saturado de modernidade e paga com a corporeidade e o sacrifício do ser, as consequências de sua utopia desenvolvimentista. Hoje estamos cada vez mais destituídos de pensar o futuro. Nesse mundo consumista, os seres humanos despem-se de si mesmos e veem-se em contínuo abismo identitário, temporal e espacial, onde muitos não sabem sequer aonde ir. Pior, o contemporâneo vive momentos em que o indizível cada vez mais encontra espaço no inconsciente humano. Como descrever tantas tragédias e acontecimentos inimagináveis, barbáries de mãos dadas com a corrupção sistêmica que matam mais no coletivo do que no individual? Como entender tanta matança sem compaixão? Tempo de dissolução marcado por desencanto e impossibilidades, eis o que fizemos de nós.

Lançado na cotidianidade com sua miséria, riqueza e complexidade, onde as coisas acontecem e não mais se concatenam num discurso totalizador, o homem se depara com a crueldade característica do momento que passa. Inevitavelmente, ele se põe a perscrutar a escuridão, a urdidura paranoica do existir frente à angústia do nada da existência. O que lhe é possível vislumbrar? Apenas as injunções, a vacuidade de ser, o vazio de sentidos.

Márwio Câmara um jovem escritor carioca de 28 anos escreveu Solidão e outras companhias” volume de contos reunindo 13 narrativas, a maioria delas bem curtas. A obra é dividida em três capítulos com os sugestivos títulos a combinar com o espírito da obra. Veja-se: “Nós”, com 4 contos, “Vós”, com 5 e “Sós” com mais 4 textos. Todos a retratar exatamente parte do que aponta uma das epígrafes do livro retirada de “O mundo do sexo” de Henry Miller: “A vida real começa quando estamos sozinhos, face a face com o nosso eu desconhecido.” E a aventura narrativa de Márwio se inicia num texto sem título, à guisa de prefácio, em que “um corpo estendido, entre a calçada e a rua, no meio da chuva”, é relacionado em uma bela metáfora com os planetas de nosso sistema solar. Pura poesia.

Mas esse estado lírico se desfaz parcialmente nos primeiros contos, para dar lugar a essa nossa contingência de dor, sofrimento e solidão. “Silêncio”, “Virgínia”, “Livros” e “Labirinto” são contos que funcionam como prólogo para o que virá no capítulo “Vós”. “A chuva que me lembra dela” o conto seguinte, em que pese a criatividade do autor na abordagem, valendo-se da intertextualidade com as mais diversos formas de arte na construção da narrativa, parece nos apresentar uma profundidade subjacente. É certo que entre o casal protagonista Amanda e Eduardo existe o “amor”, mas o que aflora, como retrato de nossas atuais relações, é a fusão dos corpos, além dos limites do realismo. É quase uma obsessão onde o erotismo avulta. O homo eroticus em cena, como acentua o sociólogo francês Michel Maffesoli, erotismo no sentido “social” essencialmente por sua relação com o outro. O corpo é entranha a ser penetrada, dela vaza a vida no limite, o apagamento de um si mesmo refletido no encontro de seus iguais, “náufragos desconhecidos” agarrados à boia da sexualidade pura e simples. Colocamos as coisas do amor nas categorias econômicas, entre apetites e necessidades.

Solidão e amor avultam em um conto também muito bem elaborado sob o ponto de vista ficcional. “Primeira sessão” é composto por uma única voz narrativa de uma mulher que está em uma sessão com seu analista. Há um trecho que traduz perfeitamente o desespero causado pelo naufragar dos mitos que tecemos em torno do que pensamos que seja o “amor”: “A maldita propaganda do amor, do casamento, da fidelidade. As palavras dos outros, nosso beijo, nosso sexo, nossas conversas e trocas de olhares, sorrisos, discussões, silêncios e rotinas diárias de uma vida a dois. Eu amava tudo isso e talvez continue amando… Sabe aquela canção da Billie, doutor, ‘I´m a fool to want you’? Meu marido ama Billie Holiday. Eu achava sofridas demais as canções dela, mas agora eu as amo. E tenho ouvido essa constantemente. Ele deixou um de seus discos lá em casa. Pensei que fosse buscar, porque ele ama a Billie. Mas não voltou. Por favor, doutor, me ajude. É porque eu sou frágil demais para entender que eu fui completamente abandonada. Talvez por minha culpa… Sim, por minha culpa. Eu me sinto culpada. Eu me deixei levar pelo deslumbre da utopia. Pelo teatro que passamos a protagonizar frente aos outros com máscaras de pura hipocrisia. E alimentava a propaganda. A propaganda me seduzia, era a minha zona de conforto. A ideia do casamento. De estar casada. Ser esposa. Ter um homem. Um esposo. Um lar que pudéssemos chamar de ‘nossa casa’. Há duas semanas ou teria sido há dois meses?”

Na vida como no amor, se o homem não consegue uma cumplicidade, uma mutualidade com outra pessoa, se essa outra pessoa não faz com que a própria essência do seu ser adquira contornos reais, ele é tragado pelo silêncio opaco, pesado, obscuro, enigmático, labiríntico. É a diáspora desarticulada em partículas elementares. O ser amado acaba por se dissolver, e o que sobra é esse lamento perdido no vazio vertiginoso, evaporado no nada silencioso. E um último registro. O conto que se chama justamente “Solidão”, positivamente o melhor de todo o volume, Márwio Câmara cria a personagem Madame Bovary, um travesti que assume publicamente esse nome de guerra. Madame Bovary é o retrato perfeito da exclusão social de gênero. Aqueles que são forçados a criar seus mundos particulares para “dar à própria existência uma sensação mais única.” Todavia a Madame Bovary, travesti da Lapa no Rio, não suporta a solidão a que vê submetida a sua existência. Veja-se a pungência desse trecho quando o protagonista do conto, amigo da travesti retorna para casa depois de ver a amiga morta: “Saio do elevador. O maldito corredor de lâmpadas amarelas que acendem e apagam na medida em que se anda. O molho de chaves. A porta. Vou direto à gaveta da cômoda. A cartela do paraíso. Jogo dois comprimidos para dentro a seco. Sigo para a cozinha e bebo um copo com água. Respiro fundo e fecho os olhos. E logo me vêm os olhos fantasmagóricos de Madame Bovary, prostrados, sem vida, na calçada de seu edifício. Havia sangue nos olhos e na cabeça. Seu corpo era como uma anomalia luxuriosa. Sinto um forte enjoo.”

Márwio Câmara não empresta sua voz a sujeitos centrados. Pelo contrário, é o homem comum que o interessa. Como representante da escrita do tempo presente, ele faz questão de trazer, nessa sua obra de estreia como ficcionista, seres solitários. Entretanto isto não é um convite ao leitor para uma atenção desavisada, muito ao contrário: é preciso investigar brechas que a linguagem acena. O leitor deve recompor através das imagens em palavras o cenário, perscrutar a cena, acompanhar o narrador, decifrar ambiguidades, observar o avesso das personagens e do mundo como um grande teatro em que os narradores transitam em desordem, pois levam sempre o leitor a uma anarquia latente, justamente como somos na grosseria da vida real.

O que transparece, a grosso modo, nos textos de Câmara (pena que tenha sido um livro com tão poucos contos), é que nos dias atuais o homem não passa de uma subjetividade impotente diante da força das coisas, uma consciência cujo ser foi jogado no mundo dos processos violentos de subjetivação capitalista. Como afirma Bolle: “o desenvolvimento acelerado dos recursos técnicos — longe de promover um uso racional, emancipador, em prol de uma ordem econômico-social mais justa para a humanidade — está efetivamente a serviço de forças míticas destruidoras.”

Mas há aí um outro viés que deve ser também pensado. Aquele no qual nos valemos de Montaigne: a solidão libertadora, pela qual o homem estaria apto a alcançar também a autossuficiência (claro está e se sabe que a ausência de relações, de amigos, de amores, que é o estado normal para o homem, acaba resultando sempre em sofrimento e dor). Mas há aquele “outro lado” a ser perscrutado: “…Temos uma alma que pode se recurvar em si mesma; ela pode se fazer companhia; tem como atacar e como defender, como receber e como dar; não tenhamos receio de que nessa solidão nos estagnemos em tediosa ociosidade.” A solidão pode apresentar facetas de encantamentos inigualáveis. Seria desejável que o homem ousasse passar da causalidade à finalidade de si próprio. Ser só, mônada (unidade orgânica diminuta e muito simples), mas consciente das suas infinitas probabilidades de conexões, construindo uma teia infindável de relações profícuas. Mônada interferindo em outras mônadas e se permitindo interferências. Do movimento em direção ao outro, a humanidade pode conquistar uma outra redenção, fruto deste devir de intensidade.

Que essa consciência mais aprofundada sirva de alerta aos leitores da literatura da contemporaneidade. É preciso conceber a literatura como arte produtora de pensamento interior para apresentar reflexões sobre o tempo e o contexto atual, já o disseram; é preciso estar atento aos mínimos abalos, continuar participando e produzindo, até que algo se revele – ou não – como essência de um coletivo, como possibilidade de transformação efetiva do homem e do planeta em que vive.

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Solidão e outras companhias, de Márwio Câmara (Editora Oito e Meio, 94 págs.)

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Krishnamurti Góes dos Anjos é escritor, pesquisador e crítico literário. É autor de Il crime dei caminho novo, Gato de telhado, Um novo século, entre outros.