Por Sérgio Tavares *

Há uma passagem, logo nos primeiros capítulos de Os abraços perdidos, em que o personagem-narrador segura um álbum de retratos e rememora, do parapeito da vida adulta, toda sua história pregressa com o uso de poucas linhas. Não que João Chiodini seja um anti-Karl Ove Knausgård, escritor-sensação que precisou de quase 500 páginas para revisitar sua infância, mas o poder de ajustar à concisão narrativa um enredo de espessas camadas é um dos méritos evidentes do autor catarinense, em seu primeiro romance.

O publicitário Pedro é quem comanda a história em dois cursos temporais. No presente, sob o monóculo da terceira pessoa, e no passado, num fluxo confessional que traz a lume ocasiões da sua meninice. Ambos os períodos estão interligados pela relação pai e filho. E, de fato, não há qualquer interesse que desmobilize esse tema. Chiodini constrói um monodrama. Complexo, ao se deter a um argumento simples.

Pedro namora Aline, que acaba de lhe informar estar grávida. Ele não se conforma, fica transtornado. Dispara até a farmácia mais próxima e retorna com todos os tipos de teste de gravidez que encontrou. A moça repete o exame e o resultado permanece positivo. Pedro perde as estribeiras e sugere o aborto. Aline quer o filho. A contenda termina com ele a escorraçando de seu apartamento.

O motivo de Pedro enlouquecer com a chance de ser pai está no sorvedouro da memória, quando esteve na condição impotente de filho. Seus pais se divorciaram muito cedo, de modo que alguns finais de semana eram destinados à guarda paterna. Essas estadias parceladas, o que acontecia quando estava no quarto-e-cozinha alugado ao fundo de uma oficina mecânica, serão suficientes para corromper toda sua infância. “Lembrando as coisas que passei com o meu pai, acho impossível encontrar algum momento de felicidade verdadeira”, é a frase que abre o livro.

A partir de então, Chiodini oferece ao leitor dois trânsitos da história, intercalados em capítulos: a solução de Pedro para a gravidez e as lembranças dos dias em que conviveu com seu pai. Antônio Carlos, um sujeito rude, cruel e pervertido. Motorista de caminhão insidioso, trafega por e atropela relacionamentos com a mesma inconsequência que trata o filho, que se afoga no alcoolismo.

Se acompanhar os passos de Pedro é um movimento de suspense, frequentar suas recordações é a certeza de um inescapável encontro com o terror. A série de relatos percorre cenas que evoluem para um choque, tal qual a vez em que o pai lhe comprou um cachorrinho e o matou no mesmo dia, ou quando o menino despertou e flagrou o homem, na cama que dividiam, assistindo uma fita pornô e se masturbando, ou no dia em que decidiu que era hora do filho perder a virgindade e o levou a um puteiro de beira de estrada, entregando-o ao trato de uma senhora deformada pela promiscuidade.

Mesmo os momentos em que há uma demonstração, ainda que transversa, de afeto, a carga emocional sobrepesa a violência psicológica, num dos piores dilemas para uma criança: esforçar-se para enxergar na imagem do pai um herói, com este se comportando de maneira vilanesca. É a essa pena que está condenado, a impossibilidade de se livrar das próprias lembranças. “Quanto tempo dura uma memória?”, se questiona.

A resposta está no mistério de, mesmo independente, com vida própria e financeiramente estável, Pedro não conseguir se libertar do pai. Envelhecido e doente por conta do vício, Antônio Carlos segue a rotina dos bares, de cair pelas sarjetas ou nos leitos dos prontos-socorros. Esse fardo assombra o personagem diuturnamente, a insegurança de que seu pai precise de algo e não esteja presente para ajudá-lo. Pedro ainda é o menino com medo.

“Quando saía da cidade, ia cedinho e voltava antes de anoitecer. Parecia ser minha obrigação de filho, meu fardo. Não conseguia me desligar. Não sei por qual motivo. Simplesmente, não conseguia. Talvez, inconscientemente, não quisesse que, no futuro, restasse algum tipo de peso. Pior que aquela função desgastante e desgostosa seria passar a vida se culpando por não ter ajudado aquele pobre diabo”, reflete sem convicção, dominado por um sentimento anônimo que toma emprestado traços de comiseração e de fraqueza.

Chiodini se vale de uma prosa seca e cortante, cujo único propósito é contar sua história de maneira direta. Trazer a proscênio a figura paterna e apresentá-la como ator de contundência, de sequelas emocionais, de desarranjo familiar. Os despojos dessa relação é o que Pedro levará consigo para projetar o pai que poderá ser e quais as chances de seu filho escapar de ser o filho que foi. Tudo depende de uma decisão imediata que está no passado.

Os abraços perdidos é um trabalho superior de ficção, habitado por personagens com contornos tão bem definidos, viscerais, que parecem prestes a romper a fronteira entre verdade e invenção. Uma leitura inquietante, que ecoa além de suas páginas.

*

Os abraços perdidos, de João Chiodini [Editora da Casa, 121 págs.]

Avaliação: _pena-01_pena-01 [muito bom]

*

Sérgio Tavares é autor de Queda da própria altura e Cavala

Tags: