Por Roberto Bahiense *

Humberto Eco diz que a internet é perigosa para o ignorante e útil para o sábio porque ela não filtra o conhecimento e congestiona a memória do usuário.

A internet é um esgoto a céu aberto.

A internet não seleciona a informação. Há de tudo por lá. A internet é um mundo selvagem e perigoso. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais.

Pensar nas principais, nas melhores, maiores, mais modernas, mais bonitas, mais fascinantes, mais importantes e mais inovadoras bibliotecas do mundo confronta‑se com o que está por vir, inexoravelmente, pois não será mais possível, ao estar em uma biblioteca, sentir o silêncio quase absoluto, como o de um templo, onde deuses vocabulares, peças históricas, com suas páginas amareladas, com seus escritos arcaicos habitam.

É preciso desconstruir a origem grega do nome, considerar a palavra biblíon (livro) e desconsiderar téké – li isso em algum lugar –, pois os significados caixa e/ou depósito reduzem e manietam o novo e ainda desconcertante papel das bibliotecas.

​​As bibliotecas físicas transformar‑se‑ão em espaços simbólicos. O leitor, mesmo o leitor bissexto ou em processo de formação, é quem vai ditar o futuro das bibliotecas.

O mais importante não é o sistema de disponibilização do conhecimento, mas o usuário da informação.

Seus motivos, razões, anseios e necessidades.

65% das unidades de ensino do País, públicas e privadas, não têm bibliotecas. Os números, alarmantes, mostram que, desde 2010, quando entrou em vigor a lei 12.244 — que obriga todos os gestores a providenciar, até 2020, espaços estruturados de leitura em suas unidades educacionais —, a situação praticamente não evoluiu.

O País vive uma triste dicotomia: escolas do século XIX, professores com recursos do século XX e alunos conectados com o século XXI.

Na contramão desta realidade perversa, o Brasil terminou Julho/2015 com 281,7 milhões de celulares e 137,1 cel/100 habitantes.

Nos últimos dois meses do ano passado, o mercado brasileiro de tablets vendeu 20% a mais do que o mesmo período de 2013, totalizando pouco mais de 9 milhões de tablets.

Esqueçamos a história de que os celulares e tablets são a ‘segunda tela’ de quem está assistindo TV. O público brasileiro rebaixou as televisões para a segunda divisão, dando mais atenção aos gadgets mobile do que a tela compartilhada na sala de casa. Em contrapartida, os livros digitais estão cada vez mais presentes na cadeia produtiva do livro em nosso País.

A questão de ordem não é oferecer, disponibilizar livros através de tablets, smartphones ou web, mas fazê‑lo consequentemente.

O digital não inviabiliza ou inutiliza o impresso. Eles se complementam e permitem às poucas bibliotecas existentes no país oferecer mais opções de conteúdo ao usuário, com variação de suporte, formato etc. A tendência é de acervos híbridos, com os ajustes que cada tipo de documento exige.

Contudo, a realidade impõe solução transformadora, radical, na forma de um efetivo instrumento de democratização de acesso ao conhecimento.

Daí, a necessidade urgente de criação de um novo canal de distribuição, em ambiente livre.

Moralmente livre.

Segundo Bergson, há duas espécies de moral, a moral fechada e a moral aberta.

A moral fechada é obscurantista e se move dentro do mesmo círculo, como um cão correndo atrás do próprio rabo.

A moral aberta não é fixa, mas essencialmente progressiva e criadora. Dionisíaca. E aberta no sentido que abarca a vida inteira no amor, proporciona o sentimento da liberdade e coincide com o próprio sentido da vida.

Há, sobretudo, que encarar a biblioteca, em outros suportes, menos como coleção de livros devidamente catalogados e classificados, ou muito bem administrados, mas sim como uma assembleia de usuários do conhecimento, não importa quem sejam ou onde estejam.

Neste contexto, de uma sociedade jovem e em transformação, surge a Biblioteca Virtual Nuvem de Livros.

Não uma livraria digital, mas uma biblioteca digital.

Não há intenção alguma de, a partir de uma determinado banco de dados, comercializar barracas de camping, eletrodomésticos, bilhetes aéreos.

Não.

Joana Monteleone, titular da Editora Alameda, sediada em São Paulo, e parceira de primeira hora da Nuvem de Livros, afirma que uma livraria vive muito dos livros da estação, que os leitores habituais – os readers heavy users – querem ler; uma biblioteca é útil quando sua coleção é representativa, seja pela especificidade, seja pela variedade. Uma livraria não deve ignorar a bibliodiversidade (muitos autores, editores, públicos e coleções diferentes), se quer manter um público cativo; uma biblioteca simplesmente não pode fazê‑lo.

Os editores independentes, boa parte deles reunidos na Libre – Liga Brasileira de Editoras , mas não apenas, representam o maior e mais diversificado acervo de livros comprados pelas melhores bibliotecas públicas e privadas. Qualquer modelo de livraria digital sério tem de reconhecer este valor, dialogar com esses editores e remunerá‑los pela qualidade e importância de seus catálogos. Quem privilegiar apenas os grandes grupos se parecerá com um catálogo de best sellers, não com uma biblioteca.

Livraria não é mídia, é ponto de venda. Biblioteca não é ponto de venda, é espaço de consulta e estudo, muito mais do que de lazer. E isso é bom, afirma Joana.

Quando a Nuvem de Livros foi lançada, houve justificada reatividade por parte dos editores, indistintamente.

H​orizontalizou-se no imaginário coletivo dos editores um forte temor em relação à disponibilização dos conteúdos em suportes digitais.

Motivos:

  •  O iTunes havia transformado o mercado fonográfico em terra arrasada;
  •  Estabeleceu‑se uma espécie de Síndrome do DRM;
  •  O modelo de remuneração.

Tempos difíceis.

Meses, meses, meses e meses de tratativas com o trade, auscultando o mercado, entendendo suas aspirações e anseios; palestras, presença nas feiras, festivais e bienais do livro; desenvolvimento de soluções tecnológicas proprietárias com garantia cartorial de proteção dos conteúdos; estabelecimento de pacto em relação à monetização, de forma elegante, respeitosa e atrativa; implantação de um modelo único de curadoria, exercitando seletividade e rigor na análise e avaliação do conteúdos.

Três anos após o seu lançamento, a Nuvem de Livros se impõe no conjunto dos seus atributos.

Mantém um acervo pluralista, substantivo, contemporâneo, com mais de 15 mil conteúdos.

Tem 2.5 milhões de assinantes regulares, pagando preço justo para uso ilimitado da plataforma.

Reúne todos os gêneros de produção literária, o que lhe confere pluralidade.

Oferece ao conjunto da sociedade brasileira os clássicos, os contemporâneos, os novos e os novíssimos.

Opõe‑se ao self publiching, na contramão de uma tendência crescente do mercado que provoca estarrecimento.

Entende que o editor é parte fundamental na construção de uma obra literária.

Livro sem editor é, muitas vezes, um solitário e pleonástico exercício de onanismo.

Há no Brasil, hoje, uma nova classe média, reunindo cerca de 50 milhões de indivíduos, homens e mulheres, que saíram nos últimos anos, na esteira das conquistas sociais, da pobreza absoluta para o admirável mundo novo.

50 milhões de pessoas que migraram da idade paleolítica para a idade contemporânea em um piscar de olhos, cumprindo o rito de passagem para a sociedade de consumo. Estes indivíduos querem, agora, de forma determinada, obstinada e legítima, dar aos seus familiares aquilo que a sociedade brasileira não pôde ou não soube lhes dar: o acesso ao conhecimento.

Este é, estruturalmente, o target prioritário da Biblioteca Digital Nuvem de Livros, contrariamente às livrarias digitais que se dirigem​, míopes,​ para a elite, para aqueles que têm hábitos regulares de leitura.

A Nuvem de Livros está, agora, sendo lançada em outros países.

É essa a impregnação que ousa propor: um ambiente não ensimesmado, não onipresente, de não encapsulamento. ​

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Roberto Bahiense é Diretor de Relações Institucionais/CEO da Biblioteca Digital Nuvem de Livros

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