Por Marta Barbosa Stephens *

Aceitar a condição de não pertencimento, natural a um estrangeiro, é a melhor vingança quando a vida de rotina falha. Viajar (abrir-se ao desconhecido, negar-se à crença subjetiva de uma origem comum e admitir os fluxos da natureza, com temor, inclusive) é desde sempre uma maneira de recriar-se, ainda que estejamos fadados a ter o incerto como resposta. É por esse caminho que nos leva Tiago Novaes em seu Os amantes da fronteira (Dobra Literatura, 110 págs). No livro, Y é o personagem que tenta se desgarrar do passado, marcado pelo desamor, em uma viagem à Tailândia. Trata-se de um relato bem estruturado do que seria a primeira parte dessa jornada.

Não é a paisagem ou a cultura asiática o que salta à história. O enredo está pontuado pelas pessoas com quem Y cruza e por sua particular busca por conhecer a si próprio. O protagonista quer esquecer W e a dolorosa separação ocorrida no Brasil, mas é a sua obsessão por ela o que o mantém afastado de novos encontros. Ou, talvez, sua fixação não seja exatamente pelo ex-amor, mas sim pelo “tempo morto” que o fim traz, antes de terminar.

“Eu queria uma resposta que ela não daria. A resposta a uma pergunta que eu não fazia por despeito, por ter me esvaziado tanto. Antes de W interditar a minha presença eu já estava longe. Tentei recuperar o que sobrou, mas a história havia terminado e eu ocupava um tempo morto. Nada havia restado. Em minha fuga eu derrubava todas as coisas delicadas no caminho.” (pág. 78)

Enquanto foge, Y cruza com Ártemis, a personagem mais forte do livro. Como a deusa virgem da mitologia grega, Ártemis está à procura de uma interseção com o mundo selvagem, mas não exatamente o da caçadora que carrega arco e flecha e exibe o cervo capturado. Entre Ártemis e Y se estabelece uma relação de poucas palavras, sexo violento e desafeto, pendendo entre o humano e o desumano, entre prazer e dor. A amargura da personagem extrai o pior de Y, que aceita o jogo como não lhe restasse opção.

“Como um autômato, em algum momento ele passou a esbofeteá-la porque sentiu um impulso doente de ver até onde ela era capaz de chegar. Até onde permitiria que ele chegasse, até onde ele próprio aceitaria ir.” (pág. 91)

Em Os amantes da fronteira, o autor compõe uma instigante teia emocional, cercada de metáforas, meditações sobre a vida moderna e também relatos de viagem, no melhor estilo diário de um solitário. Trata-se de um livro sobre a impossível missão de encontrar-se, e a angústia de perceber-se à deriva, sem ponto de chegada, ainda que essa tenha sido a escolha.

*

Os amantes da fronteira, de Tiago Novaes (Dobra Literatura, 110 págs.)

Avaliação: pena-01   (bom)

*

Marta Barbosa Stephens é jornalista, crítica literária e escritora, autora de autora de Voo luminoso de alma sonhadora (Ed. Intermeios); vive na Inglaterra

Tags: