Por Evandro Affonso Ferreira *

Décadas atrás escrevi miniconto em que coelho se recusa a sair da cartola do mágico: cenouras cada vez mais rareadas no circo.

Às vezes, no auge da rabugice, concluo que viver é empreitada fútil. Não é por obra do acaso que inquietudes espocam amiúde aqui, acolá. Vivo carecendo dos gestos filantrópicos da resignação. Reconheço meu desleixo: desarvoramento é congênito em mim. Viver é tropeçar tempo todo em hieróglifos – vivo enxovalhado pelas ambiguidades e suas operações alquímicas. Seja como for, mesmo aos quase setenta anos de existência, ainda não aprendi a me desprender do mundo objetivo: niilismo predomina – substancioso. Inveja danada daqueles que se elevam à contemplação intelectual das idéias, alcançando-a numa espécie de êxtase que não dura mais que um piscar de olhos. Etienne Gilson disse que Platão e Plotino alcançaram.

Posso jeito nenhum deixar minhas palavras se fazerem sinuosas feito as ruas por onde ando.

Não sou escritor digno de respeito: ainda não fui plagiado.

Não caminho pelas ruas desta metrópole apressurada procurando sintomas ou indícios ou signos para detectar as malvadezas das deusas da derrocada in totum – inútil procurar entender o pathos dessa obsessiva perseguição: vivem dilapidando minha esperança feito eles pretendentes dilapidaram a casa de Penélope; sempre tramando desatinos contra mim – sofro reveses a mancheias. Às vezes caminho para perpetuar o abstraimento; ou para trapacear a monotonia; ou para frustrar a lassitude; ou para esquecer que vivo a três centímetros do desvario in totum – meus passos protelam o delírio. Sei também que é difícil, impossível, me esconder apagando os próprios rastros: elas deusas tem entrepostos em todas as esquinas do mundo. Seja como for gosto de caminhar comigo e meu solipsismo gótico. (Não sei exatamente o que pretendi dizer com esta expressão, mas gostei de escrever solipsismo gótico). Sei que caminho resignante também para esbarrar a qualquer momento numa esquina indeterminada com umas delas Parcas – não gostaria que essa fiandeira do destino me surpreendesse em casa, naquele quarto parco bolorento claustro-confirmação dele meu malogro. Sei também que Afrodite e Eros não acolhem meus lamentos.

Tudo o que é ruim pra vida é bom pra literatura.

Sem ela me sinto toupeira capenga impossibilitado de abrir caminho debaixo da terra para receber a luz do sol; acanhado diante da vida; navego por estimativas, sem bússola; sonâmbulo caminhando para o abismo. Ao lado dela conseguia suprimir a desesperança: seu otimismo nunca foi moeda de quilate duvidoso. Juntos, cultivávamos o sense of fun – o gosto pela brincadeira à semelhança dos adeptos do Bloomsbury. Ao lado da amada me sentia menos inseguro: suor de sua mão tinha o poder balsâmico de aplicar minhas digamos inseguranças coronarianas. Ausência dela entorpece a possibilidade do contentamento. Sei que esperança de reaver amor perdido vai se definhando lentamente. Mas não renunciarei aos meus desejos:  orgulhoso, não voltarei demonstrando subserviência: regressarei rosnando. Perdão, leitor: quando falo de amor luto a duras penas para que meu texto seja desprovido de maneirismos – nunca consigo.

Existiria algo mais estoico do que carta-suicida com pós-escrito?

Acordei com vontade de rabiscar projeto de novo livro de ficção. Título provisório: Romance léxico que Freud não escreveu. Acho que vai começar assim: Quando algemei poeta revelhusco aquele corpo todo dele tremelicava que só vendo; estava deitado no sofá rompendo em soluços; dizia ad nauseam alto-bom-som: flagelação fustigação mereço ser levado ao cadafalso matei cortei teia da vida dela deusa-jambo. Tempo todo nela viatura mesmo estribilho matei cortei teia da vida dela deusa-jambo. Vez em quando cantos plangentes brados lamentosos escandindo seus pecados; rosto macilento prorrompendo em choro. Sujeito ao cometer transgressão está procurando satisfação masoquista a ser obtida através de punição. Sim: comentário dele psicanalista vienense aquele acostumado a adivinhar coisas secretas ocultas a partir de aspectos menosprezados, inobservados. Assassinos todos iguais encarados por qualquer prisma; coincidem em toda a extensão; descendo a particularidade cito sem errar conceito remorso; inquietação infindável da consciência; talvez seja esta a única por assim dizer desafronta da vítima. Sim: viveza de imaginação tinham os gregos que criaram os deuses para se escaparem incólumes dele sentimento de culpa. Olhar do poeta revelhusco aquele às vezes parecia transcender limites; noutros momentos alheados; frases quase sempre desorientadas: avanços recuos tibieza de ânimo. Dito marcante nunca mais saiu dela minha cachimônia: logo-logo minha amada você-eu juntos no terceiro ciclo dos eleitos. Entendi: poeta revelhusco prestando tributo rendendo preito àquele ilustre florentino. Sei dizer que confessava-se culpado tempo todo pedindo misericórdia perdão. Questão fatídica para ele mestre austríaco aquele é saber até que ponto nosso desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de nossa vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição; sentimento de culpa quando grande demais exige de si mesmo sacrifício expiatório; mas ferida cicatriza nunca; próprio culpado se indulgencia jamais; sentimento de culpa exige punição. Quem mata a amada morre. Sim: eterno zumbi; dias meses anos trevosos – será seu próprio inimigo ad eternum.

Curioso lembrar agora daquele isqueiro prateado dela minha juventude possivelmente esquecido num criado-mudo compondo decoração kitsch de inesquecível e longínquo bordel do interior mineiro, cujo lusco-fusco de abajur lilás inspiraria intermináveis letras de tango.

Depois de velho, mais rabugento do que nunca, não vou conseguir aprender a arte de preservar afetos. Meus defeitos esfervilham aos centos. Seja como for, não vivo reivindicando a paternidade dela versão melhorada da patetice humana – sei apenas que somos todos irmãos siameses da estultícia. Todos capazes de atitudes de extrema mesquinharia. Levasse seriamente nossa própria pequenez viveríamos às escondidas disfarçando nosso constante ruborescimento.

Eu? Escondo-me atrás dos vocábulos.

Quase sempre sou dominado pela patetice lamurienta, cujos traços são bem-proporcionados, se assim posso dizer, motivo pelo qual fico impossibilitado de me esquivar dela palermice digamos sedutora. Sim: sou vítima contumaz dessa irmã siamesa da estultice. Nasci predestinado ao niilismo lírico – pessimista que toca lira à semelhança de Schopenhauer. Inútil negar: sou afetuoso com a própria tarouquice. Acho que faço do lirismo meu cativeiro, minha proteção à descrença in totum. Quando afirmo, por exemplo, que todo ser humano que se preza despreza a religião, pratico niilismo lírico, cujos traços são bem-proporcionados, graças, assim imagino, ingênuo talvez, à rima interna – arteirice linguística. Sei que é inútil querer deslindar mistérios, decifrar invisibilidades, traduzir o obscuro, principalmente paradoxos místicos-religiosos. Pratico niilismo lírico, desobrigado de exasperações de todos os naipes; um desacreditar munido de suavidade poética – desinteresse provido de altiveza. Kazantzákis também estava sendo niilista lírico quando disse que Deus é um vento erótico.

Dia hoje pelo jeito dependente dos humores da esvoaçante Thuíê, Senhora dos fortes ventos. Estou passando agora em frente ao necrotério central. Pensando nele meu epílogo, sussurro aos próprios botões: Não, sem autópsia: encontrarão muitos rancores nelas minhas entranhas.

Tente tudo duas vezes: uma vez é vez nenhuma – disse alguém que não conhece de jeito nenhum minha incapacidade de triunfar numa alcova.

Abrir comportas, deixar extravasar rancores represados nesta alma revelhusca. Ressentimentos a mancheias, todos, necessário dizer, canhestros, incidindo matizes igualmente angustiantes, provocando crueldades refinadas. Sim: abrir comportas para que todos eles, ódios profundos, não expressos,  irrompam a flux sem ordenamento hierárquico. É preciso jogar luz solar sobre esse ponto ensombrecido da alma, motivo delas inquietações indescritíveis. Preciso me livrar desses abalos móbile de rancores recolhidos pelo desgosto – reluzir quietudes, desassombrar a consciência, entorpecer angústias. Preciso caminhar, feito agora, pelas avenidas desta metrópole apressurada. Sim: para me mostrar a mim mesmo às claras libertando-me dos próprios esconderijo, dos próprios calabouços. Andejar para não doidejar, ou, para apaziguar atormentados rancores.

Em tempos remotos havia costume hindu segundo o qual viúva demonstrava devoção se cremando, ela também, na pira funerária do marido. Ainda bem que chegou séculos e séculos depois o feminismo para impedir que mulher nenhuma ponha (sequer) a mão no fogo por homem nenhum.

Não, não foram apenas minhas palavras: eu também caí em desuso.

Sei que vida toda nasci despreparado para domar a exuberância belicosa das deusas da derrocada in totum, marionetistas do meu destino, cujas intenções obstinadamente ocultas são ainda desconhecidas. Sei que vivem untando suas setas de ponta de bronze com veneno mortífero; abusiva insolência; vida toda assediei sem querer(?) o infortúnio. Elas? Jesus às avessas: multiplicam a fome. Seja como for acho que me acostumei com a bancarrotice; com esses inúmeros dias de perspectivas parcas; que vou dar jamais guinada de 180 graus nessa minha vida desprovida de enlevos heróicos – caso contrário não viveria exagerando nele meu digamos laudatio funebris. Sim: depois dos setenta fica muito cansativo carregar os próprios despojos. A grande vingança do artista é viver – mesmo não gostando da vida.

Sobrinha de cinco anos dela minha amada perguntou outro dia: Por que eu existo?

Às vezes me alimento dia inteiro de pequenas conversas kafkianas. Fascinatio nugacitatis – fascinação de bagatela, diria Pascal. Sei que satisfaço minha pulsão homicida matando o tempo. Nem sempre há raciocínio suficientemente zombeteiro que dê conta de certas obscuridades impenetráveis – me obstinarei tentando. Ontem, cavalheiro de terno, gravata, caminhou ao meu lado numa calçada da Avenida Paulista. Falava com alguém no celular. Diálogo por assim dizer bíblico-mercantil: Oi, irmão, Deus te abençõe. Olha, consiga terreno bom perto da Represa que eu compro. Sim: para vender logo em seguida para amigo acrescentando, claro, quarenta, cinquenta por cento sobre o valor. Obrigado, irmão, Deus te abençõe. Sim: também tenho Jesus no coração. Preciso reler Lucrécio, aquele que dominou a arte de desprezar as ações humanas.

De seis em seis meses releio Bruno Schulz: jeito masoquista de ratificar minhas garatujas ou garafunhas – tanto faz.

Outro dia ouvi palestra da professora NJ que lançava livro sobre sua progenitora, sobrevivente de campo de concentração. Ambas estavam no palco respondendo perguntas da platéia. A mãe, que, além de continuar a existir depois de tanta crueldade, não perdeu o humor judaico contando que uma vez jovem perguntou motivo daquela tatuagem numérica no braço. Resposta: Ah, é meu número de telefone. Essa altiva senhora sabe mais do que ninguém que o chiste é uma rebelião contra a autoridade.

 

Agora aqui, neste café da Avenida Paulista, entregue às reminiscências. Diversão septuagenária, sim, olhar tempo todo para espelho retrovisor. Jovem, dezenove anos, se tanto, num bordel de cidade do interior mineiro. Leia meu horóscopo, querido, não sei ler. Eu? Inventava futuro promissor para ela. Astrólogo ficcionista. Acho que biraia aquela percebia minhas invencionices: impossível caber tantas palavras em página tão pequena. Já praticava literatura sem saber. Sei que éramos afetuosos um com o outro – intercâmbio de gentilezas pressagiosas: lia entre aspas horóscopo dela que lia minha mão.Vamos ver… Ah você vai ser um médico muito famoso. Quase acertou: cirurgião cardíaco muito famoso abriu meu peito trinta anos depois. Eu? Dizia que fazendeiro rico iria tirá-la daquele lugar. Fui para a capital – nunca mais soube notícias dela minha zabaneira cigana. Acho que sabíamos cada um à sua maneira, da impossibilidade de esculpir futuros mútuos.

Entendo seu desprezo: também não morro de amores por mim.

Há uma atração fatal entre mim e as deusas da derrocada, cujas investidas hiperbólicas parecem infinitas. Chegando quase no átrio delas minhas sete décadas de existência concluo que só existem duas etnias diferentes: a dos vencedores e dos vencidos – na qual me encaixo naturalmente. Acho que adquiri com o tempo prazer frívolo em contemplar a própria debacle. Sim: quem vida toda se associou à bancarrota não consegue abrir mão de suas lamúrias lacrimosas – vive recaindo em seu patamar autocomiserativo habitual.

Insuportável essa timidez de Deus que há quase setenta anos insiste em não aparecer para mim – ou ele é surdo, ou rezo baixo demais.

É assombroso o aumento a flux de pessoas idiotas em vários assuntos.

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Evandro Affonso Ferreira é escritor, autor da Trilogia do Desespero e ganhador de diversos prêmios, entre eles, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) em 2011 por Minha mãe se matou sem dizer adeus, primeiro livro da trilogia

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