* Por Corinne Klomp *

É a história de uma história. No começo ela é grande como uma semente. De gergelim ou de linhaça. Uma semente de nada. Ela cumpre sua função de semente, ela germina. Mais ou menos rápido. Mais ou menos bem. Na cabeça de alguém.

Um dia esse alguém, que aqui é “uma” alguém, se dá conta que ela abriga um embrião na sua cabeça. Um embrião de história. Isso a alegra, isso a empolga, isso a surpreende. Ainda. Sempre. Ela decide deixar o embrião sair. É aí que começam os problemas. A história se faz de difícil. Ela recusa abandonar a cabeça que a hospeda gratuitamente, certo, mas temporariamente, as regras do contrato eram claras. Escondida no sótão do cérebro, ela fica toda mole, sob o pretexto de se achar banal, sem interesse, e que já tem muitas como ela. A história cansa. Na verdade, ela enche o saco.

De repente, a dona da cabeça anfitriã da história que se tornou uma posseira levanta o tom. Ela ameaça. Ela vai usar a força se necessário mas vai expulsá-la! Agora mesmo. A história, longe de ser doida – contrariamente ao que ela gosta de fazer acreditar, por capricho – entende que ela abusou. Ela germinou, cresceu, agora tem que se abrir, é a idéia. OK, vamos pro trabalho de parto.

Em raras situações, ele se passa super bem.

A história salta de uma vez para fora da cabeça da sua criadora, que não consegue acreditar a facilidade desconcertante, até mesmo asquerosa, com a qual ela acabou de dar a luz. No dia seguinte ela volta a trabalhar, bem cedinho, sem que ninguém possa detectar nela nem um vestígio do transtorno do dia anterior. Os neurônios a céu aberto, de humor alegre, ela vai cortejar a inspiração em um parque, um bar, um museu, ou durante o seu sono. Logo ela sente que está pronta. Para espalhar outras pequenas sementes na sua cabecinha. Ela sorri, ela assobia, ela irrita.

Infelizmente, na maior parte do tempo, o parto se revela difícil, doloroso. Entre duas contrações fulgurantes do córtex pré-frontal, a mãe biológica, paralisada pelo esforço, se lamenta. Querer dar à luz a uma história, que idéia! Que bobagem! Ela tem razões para se queixar, isso não vai nada bem. A história chega sem pé nem cabeça, pelo avesso. Aquela cadelinha reluta em sair, ela mostra pouca vontade, não tem graça não, de jeito nenhum. No final, movida por um grito libertador, ela vai aterrissar de qualquer forma num teclado ou num caderno.  Amassada, machucada, inacabada, a história se parece com o inferno. Ela vai precisar de tempo, de benevolência e de muita coragem para crescer e voar. Já a mãe dela, exausta mas alegre, a contempla com o olhar de amor incondicional. É um bom começo. Ela jura que vai cuidar bem da sua recém-nascida. Todo dia ela a alimenta, nem que seja um pouquinho. Ela sabe bem que uma história abandonada, mesmo só por vinte e quatro horas, vai falecer em breve.

O grande dia chegou. Agora adolescente, a história se prepara para debutar timidamente no mundo. O mundo daqueles que vão decidir se ela merece mesmo viver, virar adulta para encontrar o amor de um outro, o amor do público.

A criadora dela, coração partido, a deixa sair do ninho macio do escritório. Seja como música, romance, conto, peça de teatro ou de radio, ou ainda como roteiro. Ela vai expedi-la para longe de si mesma, por e-mail ou, mais raramente nos nossos dias, pelo correio. Ora a dois passos de casa, ora fora do país. Seu « bebê », ele vai viajar o mundo, vai viver muitas aventuras!

Mais tarde, num tête à tête com seu computador, jogando jogos idiotas enquanto rói as unhas – ela sabe bem fazer os dois ao mesmo tempo, com um talento notável – a mãe oscila entre a confiança cega e a inquietude saudável. E se sua história encontrar pessoas erradas? Se ela for roubada, cortada, desfigurada? Ainda pior, se não lhe acontecer nada, nadinha mesmo? Se ninguém reparar nela nem quiser saber dela?

Ela afoga essas visões de pesadelo num velho copo de maturidade, engole a seco: se ela escolheu fazer histórias, é para deixá-las florescer ao ar livre, longe do colo protetor. Fora de questão se comportar de forma egoísta e guardá-las para ela, perto dela, nela. A criação, como a vida, tem sede de liberdade. Meio convencida pelo seu discurso interior, ela irrompe em lágrimas, depois passa horas e horas de peignoir flanando nas redes sociais, acariciando a esperança secreta de cruzar com um criador mais perdido do que ela.

Em outros momentos, ela se exalta na frente da caixa de e-mail ou do correio, tão vazias como o seu cérebro. Já faz dois meses que a sua bebezinha está dando um passeio ao ar livre, e nenhuma notícia. Ah, a ingratidão dos filhotes! No entanto, ao longo dos dias, ela anda descontraída, algo está mudando nela. As suas unhas recomeçam a crescer, o seu sorriso também.  O seu cérebro dá um boot, daqui a pouco ele vai ter umas idéias armazenadas. Nada brilhante não, duas ou três coisas mas… parece… nossa, claro que ela é! Uma semente, verdadeira! Minúscula, mas gordinha. Apenas à espera de uma boa alma cuidar dela para crescer. Emocionada, a futura mãe decide dedicar-se de tempo integral à sua nova gravidez. Ela reduz seu consumo de internet e de Sudoku e acaba com a procrastinação. É difícil mas ela aguenta, pois a sementinha merece.

Uma tarde, finalmente, depois de ter passado o dia se curtindo, procurando ótimas maneiras de fazer germinar essa semente, enquanto a criadora está prestes a descansar um pouco, só para explorar melhor as suas idéias, ela ouve o bip caraterístico da chegada de um e-mail. Sem pensar ela clica na mensagem, lê com um olhar distraído. Puxa, é « ela »! Sua filhota, quer dizer sua filha, sua história mesmo, querida viajante, quase que ela a esqueceu! No e-mail, a filha diz que ela conheceu alguém. Um editor produtor diretor ator leitor, tanto faz: alguém! Que também se apaixonou por ela, que acredita nela e está sonhando em apresentá-la a todo o mundo!

A mãe está rindo e chorando ao mesmo tempo: nada aconteceu, tudo aconteceu. Nada aconteceu, pois o louco apaixonado de hoje pode se cansar da sua filha amanhã, largá-la por falta de dinheiro ou de energia, até mesmo por uma outra, mais fresca, mais clássica ou mais estapafúrdia. Tudo aconteceu, pois pouco importa, a criadora já ganhou a sua tola aposta: dar à luz a uma história que gera interesse. Uma pura vitória, aqui e agora, que ninguém poderá lhe tirar. Para festejar o evento, ela anda aos saltos na cadeira até aterrissar de repente, sóbria. Bem lhe pareceu ter ouvido um pequeno gemido. Ela presta atenção. Na cabeça dela, a sementinha de história, que fica um bocadinho com inveja do primeiro sucesso da mais velha, está sussurrando essa crítica suave: “E eu?”

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Corinne Klomp é autora francesa e mora em Paris, França. Escreve peças de teatro, roteiros (televisão e cinema), e ficções para a rádio francesa France Inter. Faz parte do Conselho de Administração da Sociedade de Compositores e Autores Dramáticos (SACD) do seu país. Tem grande paixão pelo Brasil e pela língua portuguesa. Começou a aprendê-la ao fim do 2014, depois de ter dado sua segunda oficina de roteiros, no Rio de janeiro, no Festival Varilux do Cinema Francês. Desde então escreve crônicas e contos em português

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Foto ilustrativa de Josef Koudelka

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