* Por Ronaldo Cagiano*

Das várias leituras que emergem do novo livro de Leonardo Almeida Filho, Babelical (Editora Patuá), percebe-se que sua praxispoética resulta de uma agudo sentimento do mundo, naquilo em que o seu observatório traz, em seus aspecto sensorial e reflexivo, e na esteira de uma experiência pessoal, o desassossego em relação à contemporaneidade e ao escreviver. Nessa poesia que suscita o desconforto em uma escritura de impacto verbal e semântico o autor deflagra uma espécie de exegese do homem, do tempo e do mundo, nesse milênio ainda imberbe, mas tão impactado pelo desastre e pela distopia.

Artista comprometido com as angústias individuais e coletivas, antenado com as emergências e demandas de uma modernidade eviscerada, nessa nova safra poética que emula mais de três décadas de produção o leitor será confrontando com um denso e tenso inventário da nossa desilusão. No diversificado campo de sua intervenção criativa o autor  maneja com igual potência cirúrgica a poesia (“Crepúsculo na Filipeia”, 1997), o conto (“Nebulosa fauna & outras histórias perversas”, Ed. Galáxia, SP, 2015) e o romance (“O livro de Lorraine” – Prêmio Governo da Paraíba, 1998),  além de transitar por outros gêneros, seja atuando no campo musical como cantor e compositor, seja na crítica e ou no ensaio (“Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do Espírito”, EdUnB, 2008).

O percurso poético de Almeida Filho caminha por várias vertentes e recebe o sopro de várias influências e escolas: da tradição à vanguarda, do erudito ao popular, seja utilizando os recursos do verso livre ou da forma fixa, dos cânticos sem rima ao soneto, das trovas ao cordel, do lírico-afetivo ao social-político, às vezes tangendo o tragicômico. Na sua dicção constata-se uma familiaridade com temas que habitam a poesia de Torquato Neto e Mário Faustino, pois trata-se de uma colheita que nasce da angústia com que alimenta seus múltiplos instrumentos artísticos na condução de um compromisso estético que se converte verdadeiramente num mergulho em nossos dilemas e num profundo inquérito existencial. Babelical traz a força da indignação e um halo de irreverência e corrosão ao preocupar-se também com o valor e a razão da poesia diante das mazelas do mundo contemporâneo, capitalista e fetichista. Num dos poemas símbolo de sua pulsão crítica, “As fotos do pênis de Michael Jackson”, denuncia o consumismo, a coisificação da vida, a etiqueta vil dos sentimentos leiloados nos outletsno mercado espúrio da massificação.

Leo também dialoga com autores e obras que formam seu painel de leituras e referencialidades, em sutil intertextualidade e num passeio metalinguístico, cujos temas, afinidades e olhares se aliam em simbiótica recusa do caos vigente. Vamos encontrar em sua oficina irritada ecos e familiaridades: sua inflexão poética faz um trânsito entre Gregório de Mattos, Oswald Andrade, Bandeira e Pessoa, flerta com Gullar, Pound e Eliot, percorre os mesmos territórios de apreensão e libelo de Roberto Piva, Glauco Mattoso e os beatniks, tal a pluralidade de sentidos e percepções  que sua arte vulcânica abarca, na esteira de um imprescindível e cáustico olhar, para o qual ainda converge uma necessária dose de salutar de humor mesclado com iconoclastia.

Em meio à escuridão em que vivemos, esse tempo de tumulto e confusão de vozes, Babelicalé um metafórico farol estético e uma chama ética, na linha do que nos disse José Saramago em A jangada de Pedra: “o que seria de todos nós se não viesse a poesia ajudar-nos a compreender quão pouca claridade têm as coisas a que chamamos claras.”  Essa é uma poesia que toca nas feridas, supura a purulência que necrosa as consciências e nos reverbera, simbolizando todas as dissonâncias, a lição de Cabrera Infante em Três tristes tigres:  “Do assombro nasce a poesia.”

O acento crítico, os questionamentos filosóficos e a inquietação metafísica constituem o leitmotivde um escritor versátil, que conduz seu bisturi nesse processo poético que se converte em verdadeira autópsia das sequelas que nos atormentam, uma palavra catártica e humanamente visceral, que vai fundo brigar nas trevas e dissecar o cadáver adiado que somos. Em sua receita de poesia, ensina que “o poema não é carne, nem tendão/ é vento sem tato, imaginação/ só sendo nada é que ele é tudo/ como o mito” e nesse íntimo caderno de desapontamentos dá seu testemunho derradeiro e desiludido, nas mesmas águas em que navegaram Bandeira e Cecília: “Faço versos como quem vive/ sem reza, incenso ou mirra/ e não creio em serventia/ em matéria alguma, nada me serve/ mas tudo me absorve e me suporta/ sou poeta!” .

* Ronaldo Cagiano é escritor mineiro-brasiliense, autor, dentre outros de Eles não moram mais aqui (Prêmio Jabuti 2016); vive em Portugal

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