* Por Itamar Vieira Junior *

Mês de janeiro, início de ano e governo novo. Seriam eventos normais se o mundo não parecesse viver uma aguda crise da democracia, com reflexos em nosso país.  Em meio aos crescentes trabalhos – e o intenso calor do verão – dois entre os livros que li recentemente, por coincidência, versam sobre a opressão do Estado. O primeiro deles é A acusação (Biblioteca Azul), de Bandi, lançado em 2018 no Brasil e traduzido para mais de 17 idiomas. O livro é composto por sete contos ambientados na Coreia do Norte, anos 1990, período em que o país foi assolado pela “grande fome”. As narrativas são pequenas obras-primas pela simplicidade, harmonia da escrita e profundidade dos temas apresentados. Os enredos quase sempre tratam de um recorrente despertar de personagens que vivem num ambiente onde o controle do Estado é a regra: um herói de guerra que cultiva um frondoso olmo em homenagem à “revolução” no terreno de sua casa, enquanto todos congelam de frio sem aquecimento no seu interior. Uma mulher que alimenta com sobras seu marido, enquanto paira a suspeita de que ela o trai. Um homem que tenta a todo custo viajar de uma cidade a outra para visitar a mãe que está à beira da morte. Uma criança que chora de pânico ao ver a imagem de Karl Marx; para ele, aquele é o retrato de Eobi, monstro da mitologia coreana, estimulado pela mãe que tenta controlá-lo.

Bandi é o pseudônimo de um escritor de identidade desconhecida. Nem mesmo seus agentes literários têm a chave do mistério. O posfácio do livro narra a intrigante biografia do autor – seu pseudônimo significa, na língua coreana, “vaga-lume” – e não fica a dever aos contos que o antecedem. Através do texto sabemos como as 750 páginas dos manuscritos de A acusação deixaram a Coreia do Norte, passando pela fronteira com a China, até chegar à Coreia do Sul, com um enredo digno das melhores estórias de suspense. Para mim, ao final do livro, ficou o sentimento emanado da força de sua escrita: por mais que se tente controlar uma sociedade, regra dos regimes totalitários, há experiências íntimas que são indestrutíveis e escaparão a essa vigilância permanente; e o livro é a prova disso, assim como gosto de pensar que são indestrutíveis também as obras literárias que atravessaram o tempo até nossos dias.

No mesmo espectro está o segundo livro, a pungente coletânea de ensaios O rei se inclina e mata (Biblioteca Azul, 2013), da escritora Herta Müller (1953), Prêmio Nobel de Literatura 2009. Nos nove ensaios, Müller reflete sobre a linguagem, o poder e a repressão a partir da sua infância e juventude no vilarejo Nitchidorf, região de minoria alemã, no território da Transilvânia, Romênia, até a sua emigração para Alemanha. Na Romênia, sob o jugo do ditador Nicolau Ceausescu, Müller viveu na pele a tirania do regime quando se recusou a colaborar como espiã para o governo, e depois quando se descobriu escritora. Seu primeiro livro, Niederungen (Depressões, Globo, 2010), publicado em 1982, foi censurado e retirado de circulação. A partir daí sua vida ganha um roteiro comum aos indivíduos que estão sob a égide dos regimes totalitários. Quase todos os dias ela era levada para longos interrogatórios, assim como sabia que seu apartamento recebia visitas da polícia secreta na sua ausência – seus amigos também narravam a mesma experiência: “Eu me sentia suspensa demais no ar porque com frequência havia coisas mudadas no apartamento quando eu chegava em casa. Na minha ausência o serviço secreto controlava o meu lar, colocava um quadro da parede sobre a cama, mudava cadeiras de lugar, arrancava a ponta de cartazes da porta do armário, jogava xepas de cigarro na privada”. Seria lírico, se não fosse trágico, seu relato sobre como se servia de fios de cabelo para ter certeza que não haviam aberto as cartas enviadas para os amigos. Da mesma forma, percebia com estranheza como os agentes estavam a par das suas decisões para tratamento capilar, assim como sua cabeleireira deixava escapar informações sobre seus depoimentos diários. Era um mundo onde não podia confiar que era possível executar as ações mais corriqueiras sem ser vigiado. Talvez o momento mais difícil tenha sido a descoberta de que sua melhor amiga, que tempos depois morreria de câncer, havia se tornado uma espiã e colaborava para o serviço secreto com informações sobre sua vida, tema que aparece em seus romances Fera D’almae A raposa já era o caçador. Ou quando viu seus amigos se suicidarem, um a um, por se sentirem sufocados e impotentes diante de um poder para o qual não havia contraponto aparente.

Era um mundo de horror que pouco a pouco minava a vida e as esperanças mais elementares da condição humana. Müller deixou a Romênia, clandestinamente, com destino à Alemanha em 1987, dois anos antes da queda do ditador Ceausescu. Transformou sua experiência em matéria-prima para uma obra que do início ao fim se baseia no mal-estar de uma vida privada de liberdade, na mesma medida em que o desejo por ela segue inabalável. Sua literatura se tornou num símbolo daquilo que não pode ser destruído.

Uma notícia que li nos últimos dias me fez voltar aos dois livros: o escritor curdo-iraniano Behrouz Boochani (1983) venceu o Victoria Prize Literature, o mais importante prêmio literário da Austrália. Seria uma notícia banal, não fosse o fato de Boochani estar preso na Ilha Manus (Papua Nova Guiné) há seis longos anos, por ter tentado entrar ilegalmente na Austrália. Sua obra de não ficção –No friends but the mountains– foi escrita de forma clandestina, transmitida ao seu tradutor em fragmentos por mensagens através do aplicativo WhatsApp, já que ele temia que os manuscritos fossem destruídos pela polícia nas constantes revistas. Os smartphonesentram na ilha contrariando as leis locais, mas foi dessa forma que Boochani pôde escrever um poderoso documento sobre as duras e desumanas políticas de imigração da Austrália, e sobre como a violência do Estado destrói pouco a pouco a dignidade dos que se tornam reféns do país.

O que une Bandi, Müller e Boochani, além de serem vítimas de sistemas de governos opressores, é que suas obras transmitem aquilo que nem o mais violento dos regimes consegue fazer: aniquilar o desejo de livre. É quando a literatura se torna a expressão de um incômodo.

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Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia. É autor dos livros de contos Dias (Caramurê, 2012) e A oração do carrasco (Mondrongo, 2017). É o ganhador do Prêmio Leya 2018 com o romance inédito Torto arado

 

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