* Por Corinne Klomp *

A mulher está trabalhando na bancada da cozinha. Está preparando um bolo, um pão-de-ló. Para a festa natalina da paróquia. A religião não é muito a sua praia, mas ela gosta dessa ideia de cuidar dos outros, de sentir-se útil ajudando. Obras de caridade, por que não? Ela não tem filhos para pensar. Nenhum cachorro, nenhum hamster, nenhum amante. Ela tem um marido, é suficiente. Prova? Basta evocá-lo para ficar com dor de cabeça. Ou enojada.

A mulher dá uma olhada na receita, para verificar que não esqueceu nada. Em primeiro lugar, misturou o açúcar (250 g) com a manteiga amolecida (250 g), depois juntou as gemas. A receita indica que é preciso três, mas ela colocou quatro, não conseguiu evitar, pois adora quebrar ovos. Separar a gema polpuda da clara gosmenta, procurando não deixar pedaçinhos de casca na preparação. Infelizmente, desde o seu casamento – já faz dez anos, socorro! – não teve mais a oportunidade de fazer isso. Pois o marido é seriamente alérgico a ovos. Ela mesma é seriamente alérgica ao marido. É menos grave, a gente não morre disso. Normalmente…

Ela retoma a receita. Ela põe a farinha peneirada (250 g), depois homogeniza tudo. Ótimo. Ela só tem que bater as claras em neve, com um punhado de sal. E, em seguida, incorporá-las delicadamente numa tigela.

Uns minutos depois está pronto. Ela bateu as claras à mão. A batedeira é uma coisa para mulheres ativas, ela é do tipo passivo. Agora ela está suando, ficou com o pulso direito dolorido mas obteve uma massa fantástica, firme e leve. Ela a derrama na forma de bolo que untou cuidadosamente antes, com um pouco de manteiga e de farinha. Depois coloca no forno pré-aquecido (180°) e programa o tempo de cozimento para 40 minutos. Talvez ela vá acrescentar alguns minutos no fim do cozimento, depois de ter feito o teste do palito. Cravado no meio do bolo, tem que sair seco. Senão, o pão-de-ló não está pronto. Simples como a vida.

A mulher está feliz. Ela se prepara para lavar a tigela que serviu à preparação e que ainda contém restos de massa grudados na borda. A porta da sala bate, a mulher interrompe o gesto e deixa de lado a tigela. Ela olha no relógio de pulso, franze as sobrancelhas. Dezesseis horas, ele voltou cedo, aparentemente um cliente deu um bolo nele. A mulher diz: “Que falta de sorte…”, mas diz mentalmente.

O marido entra na cozinha.
Na cara dele, a máscara do homem exausto depois de um dia duro de trabalho e que à noite quer apenas uma coisa, que a sua mulher o deixe em paz, mesmo se ele passou o dia todo viajando na maionese e surfando na internet, um dedo no nariz, o outro coçando a bunda. Essa máscara é um salvo-conduto para sentar-se à mesa e não se mover. Exceto para ir ao banheiro, equipado com um bom jornal esportivo ou tabelas de Sudoku.

O marido atira a pasta no pé da geladeira, se joga numa cadeira e não cumprimenta a sua mulher. Até agora, tudo normal. Mas de repente ele começa a fungar como um porco, o nariz ao vento, até as narinas se dilacerarem. “ Tem um cheiro bom que cheiro é este tem um cheiro de açúcar e de manteiga também não acredito você fez um bolo?”

A mulher acena um sim, timidamente.
O homem fecha a cara. “Um bolo pra mim já passou muito tempo mas por que qual é a ocasião não é meu aniversário nem minha festa nem essa babaquice do dia dos namorados ou qualqu… oh meu Deus não me diga… não acredito você destruiu o carro oh meu Deus amanhã vou ligar para a empresa de seguros o carro você nunca mais vai dirigi-lo nem morta a partir de agora você vai de patinete puta!”
O marido se aproxima da tigela não lavada e enfia o enorme dedo indicador da mão direita na massa. “Não colocou ovos nisso sua idiota?”

A mulher olha para o grotesco dedo indicador que está suspenso em cima da tigela como a espada do Dâmocles. Ela deveria responder: não, este bolo não é para ele mas para os pobres, não, ela não danificou o carro e sim, ela colocou ovos, muitos ovos, não dá pra ele comer, ele tem que deixar esta massa em paz, retirar o seu dedo indicador daí e pensar em outra coisa, o jantar vai estar pronto logo! Mas ela não fala nada disso. Ela se contenta em abanar a cabeça como não, e este “não” significa: não tem ovos não, nenhum perigo, confie em mim… Pior, ela está sorrindo.

Enfim livre, o dedo indicador do marido mergulha alternadamente na tigela e depois na garganta dele. Não há meios de lhe fazer lavar um prato, mas para lamber as panelas e pôr as suas impressões digitais pegajosas nos móveis ele é um verdadeiro campeão.

A reação alérgica não demora a aparecer. Choque anafilático, na linguagem médica. O marido está inchando. O pescoço, as bochechas, as orelhas, o nariz e a língua.

A mulher não acredita. É incrível, o potencial de inchaço contido num rosto tão flácido. No começo ele se torna quase bonito, mais jovem, uma carinha de bebê. Depois fica feio, tipo um mau remake de “Elephant man”. A mulher tira a caixa de ovos do lixo e a põe na frente dele. Calmamente. A arma do crime. Nos olhos dilatados do marido surge um raio de incredulidade. O tonto entendeu. Ele está prestes a gritar, a culpar ela mais uma vez, mas nenhum som sai da sua garganta. O fim está perto. Para acelerá-lo, a mulher tem uma ideia.

Ela corre pro banheiro e volta com um lindo prendedor verde de roupa que ela vai pregar no nariz turgescente do homem que agora está gordíssimo. Ele está sufocando de novo e tenta tirar o objeto, em vão. Ele nunca o utilizou para estender sequer uma cueca ou uma meia, ele não sabe como funciona. Mesmo assim, os dedos dele estão tão deformados que parecem grudados. Mais uns gemidos e o marido desmorona, morto, no chão, na frente do forno. A mulher se abaixa para recuperar o prendedor de roupa. Ela aproveita esta oportunidade para dar uma olhada no pão-de-ló. O bolo também inchou muito bem. Vai ficar delicioso.

A mulher não tem um minuto a perder. Sai de casa pela porta dos fundos. A propósito, nos ingredientes da receita é necessário pensar em adicionar a porta dos fundos. Na ausência, a porta da frente servirá, com a condição de fazer uma saída discreta. Enfim, a mulher sai pelos fundos e ninguém a vê. Na mercearia, conversa com o dono tempo suficiente para ele se lembrar dela, ela compra umas coisas, dentre as quais uma garrafa de champanhe. Antes de voltar pra casa, pela porta da frente desta vez, procura chamar a atenção de outras pessoas. A sorte lhe sorri pois ela cruza com a vizinha. A mulher lhe conta a sua intenção de cozinhar algo bom pro marido esta noite, para os dois festejarem o aniversário do primeiro encontro. Ela não exagera, somente o que for preciso. De volta em casa, vai gritar de horror, vendo o cadáver deitado no chão da cozinha. Ela não precisa se esforçar, o marido se tornou ainda mais feio do que há pouco. Ela liga para pedir ajuda. Que chega logo, na forma de uma ambulância e de dois policias, sendo o mais velho, aparentemente, um pouquinho mais esperto do que o outro.

O corpo do marido será logo evacuado pelos homens de branco. Entre dois soluços, a mulher se incrimina por ter matado o marido e está balbuciando explicações. Ela fez um pão-de-ló com ovos, pra festa da paróquia, mas se esqueceu de lavar a tigela que continha sobras de massa, depois se ausentou para fazer compras. O marido dela voltou mais cedo, ele deve ter lambido a tigela sem suspeitar do perigo, mas ele é alérgico a ovos, então faleceu.

“A culpa é minha! A culpa é minha!”, a mulher está se lamentando, batendo no peito. Interiormente se felicita por ter retomado, este ano, as aulas de teatro. E por ter escolhido trabalhar a tragédia, a partir de uns trechos de Phaedra. Exteriormente, ela colapsa nos braços do policial mais velho, que também é o mais musculoso. Ela percebe sob sua cintura dois braços vigorosos que a apertam, há aí um lado “força vital” do qual ela gosta muito. Ela dá uma olhada para a mão esquerda do homem, nenhuma aliança, quem sabe, talvez…? O alarme do forno a tira do seu sonho carnal. O pão-de-ló está pronto.

A mulher caminha tropeçando de dor até o forno, ela o abre e retira o bolo. Ao vê-lo, o policial jovem não consegue reprimir um grito de admiração. Há de quê. Dourado, crocante e recheado com ovos, o pão-de-ló parece ótimo. A mulher não se importa. Num gesto amplo e digno, um gesto que Phaedra não teria negado, ela está prestes a jogá-lo no lixo. Não, ela não vai nutrir os pobres da paróquia com este “veneno”. O policial jovem interfere com força. Que veneno, que é isso?! Seria uma pena desperdiçar. Entretanto, o colega dele apanha a prova, a tigela na qual o bolo foi preparado. Ao ver o horrível tupperware marrom – oferecido pela sua sogra há dez anos, fora da lista de casamento – desaparecer para todo o sempre num saco de plástico da polícia, a mulher se diz que este dia, decididamente, é uma data bem especial.

Dezoito horas. Sozinha com os dois policias que acabaram de interrogá-la, a mulher lhes propõe tomar um aperitivo. Ela mesma já engoliu três copos de uísque. Ela está guardando o champanhe para depois, quando eles partirem.“Não, obrigada senhora, nunca bebemos em serviço.

– Um chá, então?

Os dois homens se deixam convencer.
Dezoito horas e trinta minutos. A metade do pão-de-ló já foi devorada pelas forças da ordem. A mulher não comeu nada. Porém está com fome. Debaixo da mesa, pressiona o seu punho contra a barriga, para parar de roncar. Phaedra e todas as suas amigas de tragédia não comem e não fazem borborigmos, como se sabe muito bem.

“Nada mau, este bolo de frutas… sem frutas. Mesmo se um pouco pesado, do tipo que sufoca um cristão!”
Esta frase sai da boca, ainda meio cheia, do policial jovem e não muito esperto. O colega dele, o bem musculoso, lhe dá um tapa. Engula e cale a boca!
Pois a mulher esboça um sorriso digno e doloroso : “De verdade? No entanto, o meu marido não acreditava em nada…”

*

Corinne Klomp é autora francesa e mora em Paris, França. Escreve peças de teatro, roteiros (televisão e cinema), e ficções para a rádio francesa France Inter. Faz parte do Conselho de Administração da Sociedade de Compositores e Autores Dramáticos (SACD) do seu país. Tem grande paixão pelo Brasil e pela língua portuguesa. Começou a aprendê-la ao fim do 2014, depois de ter dado sua segunda oficina de roteiros, no Rio de janeiro, no Festival Varilux do Cinema Francês. Desde então escreve crônicas e contos em português. 

Tags: , ,