CSS, um autor em Nova York

new

Por Albano da Costa *

Às raias do desânimo, descrente por igual das forças da natureza e do sistema de estados nacionais, entrou na Lalique e com dinheiro público comprou um pequeno jarro para seu namorado. Voltou ao St. Regis, pediu ao camareiro que arrastasse a cama para o lado da janela e se deitou para observar projeções do crepúsculo refletindo no cristal do objeto recortado à art nouveau. O clima em NY estava ameno, 77 Farenheit, solzinho e uma grei multicultural vestindo short e consumindo nas lojas dos museus. Ela fora a dois encontros, um no Whitney e outro no Frick, mas não conseguira nenhuma das obras que as autoridades de seu país pretendiam permutar por penachos guaranis, pedaços de cerâmica marajoara, um óleo que plasmasse a industrialização paulista e de preferência de alguém do Santa Helena, alguma coisa que sobrara do Oiticica. No quinto dia pôde passear pelas veredas do parque urbano e ver as vitrines com roupas e objetos que a despeito de atestarem a moda se referiam muito ao passado, operando uma sensação que supôs ser o motivo de as pessoas arrebanharem-se às portas dos magazines com o intuito de, nostalgicamente, adquirirem relíquias portáteis. Na escuridão da suite, insatisfeita com tudo, decidiu parar de tomar os remédios.

Na noite da quinta-feira conversou com a ministra da Cultura e reportou a reunião fictícia que tivera com seu amigo da Phillips e sua intenção de sugerir a avaliação inicial de um óleo de Almeida Júnior por 1.1 milhão. Informou-lhe ainda que para conseguir alguma obra moderna de vulto precisava ficar mais 30 dias em NY para sondar um agente da Tate que chegara ontem e poderia lhe auxiliar, talvez com um Hopper. Entrou em contato com o dealer que a encarregada de assuntos fílmicos do MoMA, Dy Mouritz, havia indicado para ela e comprou cinco gramas de kfd para inalar. Depois de três doses de bourbon e outro tanto de kfd foi procurar um inferninho para ouvir música e conhecer alguém para passar a noite. Na 2nd entrou no Pig`n` Whistle justamente quando tocavam uma canção antiguinha do Cansei de ser sex e bebeu um drink enquanto fruía o som. Lembrou-se dos meninos que faziam os corres na rua Paim e dos bares infames do baixo Augusta. Misturando animação e ansiedade cantarolou o refrão engraçado enquanto procurava algum solitário para conversar. Observou um homem maduro e belo, de cabelos desgrenhados e resíduos de porte atlético saindo do lavabo visivelmente sequelado. Esperou que ele sentasse para agir e em pouco tempo descobriu ser um professor sul-americano fazendo doutorado em NY e tanto ou mais angustiado do que ela.

Dividiram kfd e os olhares de NY, dentro do pub, na rua e no St. Regis poucos recusavam o foco da beleza insólita potencializada pelo desatino exagerado do casal. Ficaram juntos dois dias consecutivos usando kfd e bebendo whisky e água, no terceiro dormiram e fizeram sexo mecanicamente. Depois de um almoço no quarto, com os humores bastante alterados devido ao fim de tudo, pouco hesitaram antes de ir ao que foi a rua Birmingham, do lado de cá da ponte Manhattan, comprar o suficiente para estar mais algum tempo juntos, talvez para resgatar o que sentiram ao momento em que se conheceram ou poucas horas depois. No sexto dia, enquanto ela selecionava as canções de Cibo Matto no computador, ele se aproximou da porta do quarto dizendo que tinha de ir à Universidade falar com um cineasta, vestiu-se rapidamente mas esqueceu as meias. Olhou o relógio e não viu que eram 10 pm. Sentiu frio e andou rápido até a Universidade em Greenwich Village, onde palmilhou o quarteirão uma e outra vez, inteligindo a difícil metáfora da circulação sanguínia a levar e trazer o travo alcalóide a sua face, descompassando de um golpe o coração e a mania classificatória. Carros: Ford, Honda, Mercedes/ bicicletas: Kenda, Rodan, Campagnolo/ gente: preta, branca, amarela/homem, mulher, gay, lésbica, corvos, cabos elétricos, par de tênis pendurado. Às sete da manhã, quando os portões abriram, entrou como se acabasse de chegar de uma breve caminhada desde sua casa e como se com efeito houvesse algum cineasta a lhe esperar por lá.

No ciclo que o Rockefeller Center dedicou aos Straub e Huillet foi programado o documentário que Pedro Costa fez acerca do processo criativo da dupla, Onde jaz o teu sorriso? Ela considerava que o diretor português tinha grande sensibilidade para a história da arte e ideou um projeto para uma exposição de pintores dos renascimentos veneziano, genovês, florentino e dos Países Baixos em que incluiria uma mostra paralela de filmes pictóricos, ou algo que o valesse. Ao caminhar de volta para o hotel encontrou com o professor no The Smith, que a convidou para sentar. Conversaram, riram das loucuras do outro dia e acabaram na Strand comprando alguns livros. Ela repetiu sua consigna antichatos com ele, “odeio ler”, ao mesmo tempo em que pagava uma coletânea de Marianne Moore e pensava alto o nome de duas ou três livrarias mais discretas e mais influentes entre os connoisseurs de língua inglesa. De chinelo, bermuda e camisa de botão ele a mirava incrédulo, como ciente da nota exata de charme que ela visava alcançar quando mentia daquele jeito. Quando ela apenas dizia a verdade.

Ao chegar com um blazer de couro da Bottega Veneta que dizia haver ganhado de uma namorada italiana ela por fim acreditou na displicência com a que ele se vestira até este dia. Conversaram acerca dos seus problemas comportamentais mais agudos e coincidiram, sem convicção, em que estavam já maduros e que se fosse em outro tempo apenas se veriam para usar kfd, beber whisky e fazer alguma arruaça que começasse anódina e aos poucos se tornasse outra linha sinistra a preencher seus diários. Nessa noite, depois do sexo e do jantar, civilizadamente medicados, depois do sexo e de assistir a The Spiral Staircase, na TV, eles adormeceram separados, ela na cama e ele no sofá, mas sem que se possa afirmar como às 12 do dia seguinte acordaram abraçados no chão do quarto. Sobressaltada, ela se desembaraçou dele devido à insistência do timbre do celular. Era o casal moçambicano que conhecera no Aquavit de BSB convidando-a para fazer alguma coisa em NY.

Eulálio e Carlota Valdês apresentaram-se às 9pm para tomar um drink no Mother’s Ruin e enquanto se posicionavam para selecionar um espumante os outros amargavam a ideia de escolher águas minerais. Finda a segunda garrafa de Bernaut Millésime Brut Grand Cru perceberam silenciosamente como Carlota ficara ainda mais graciosa em seu conjunto Alexander Macqueen depois de descontraída, resultado impensável para ambos, escalando o desconforto. Eulálio e a esposa começaram a discorrer livremente acerca de seu passado em África (uma espécie de colônia de férias que visitávamos cada fim de ano letivo em Lisboa), sua participação nas elites da Frelimo, participação, como eles mesmo diziam, filial e televisiva. Ele gostou muito das histórias acerca dos campos de chá, imaginou-se caminhando pelas altitudes verdes,  cinzas, atuando em algum episódio da colonização lusa, em Moçambique pensando em Macau. Lembrou de um filme português que vira não fazia muito e que tinha um crocodilo no cartaz. Eulálio referiu a noite no Aquavit e informou do fechamento do lugar e ela disse tão somente recordar-se da nota kitsch, por pretensiosa, que a experiência gastronômica lhe havia causado. De pronto Carlota avisa que vai ao toilet e sem qualquer nexo para eles Eulálio se levanta um pouco atabalhoadamente e lhe sussurra algo assim como é muito cedo. A ausência de um ponto de significação não impediu que um caleidoscópio surgisse sobre a mesa. Eulálio voltou a sentar, mas antes seu braço bateu no copo dela derrubando-o, deixando-a desestabilizada a ponto de que se levantasse com grande ruído e meio assustada dizer que iria ao toilet também. Ele a segurou pela cintura e forçando controle repetiu cada vez mais baixo e mais energicamente que ela não precisava ir, pois não havia sequer uma gota de água em sua roupa e portanto não havia necessidade de secar-se. Assentiu sem pensar ao ver Carlota ir ao encontro da mesa.

Carlota pediu ainda de pé outra garrafa do espumante, enquanto eles tentavam ver em seu corpo algum sinal que formasse o quadro favorável a suas indagações. Eulálio comentou que conheceram em NY um casal do país dela adepto da mesma religião. Ela não se lembrava de haver comentado o que praticava uma vez que alternava crises místicas. O professor perguntou o que era mesmo a umbanda e Carlota um pouco ansiosamente adiantou-se a explicar tratar-se de uma religião de origem indígena, iorubá e cristã, reproduzindo sem querer a esquemática simbiose conferida às manifestações culturais americanas. Ela se tranquilizou um momento devido ao rapto do inconveniente de ter de relatar a genealogia de seu culto, mas não demorou para voltar a inquirir no corpo de Carlota a memória do que fora fazer ao banheiro. Pensou em se comunicar com Dy Mouritz e o traficante. Com ar inexplicavelmente acanhado, Eulálio recordou e falou que naquele dia um chef basco serviria bons pintxos por lá, e foi Carlota começar a tossir para ele regurgitar a água que havia bebido, anunciando o vômito fino que em seguida esguicharia sobre a mesa. Ela pediu desculpas, levantou-se e o esperou dentro de um taxi na frente do bar. Quando ele ia abrir a porta do carro ela desligou o celular e ordenou ao motorista tocar para a Wash Square, onde a esperava o amigo de Dy Mouritz. Sem olhar para trás sacou de novo do celular, marcou o nome dele e disse que fosse sozinho para o St. R…

No dia seis de novembro ele saiu de seu estúdio em Nolita e foi para a Universidade. Assistiu a uma mesa redonda entre Charles Burnett, Martin Scorsese e Bill Viola a respeito da Nova Onda do cinema americano nos anos 1970 e suas consequências estéticas. Quando abriram para questões, perguntou a Scorsese a propósito da tradição iconográfica de Raging Bull, sem ter muita certeza do que aventava e quase para provocá-lo. A resposta curta não escondeu a indisposição do cineasta para elaborações digressivas. Indeciso entre tolerar um pouco mais a intelectualidade despreparada que o cercava ou comprar logo as peças de carne que sua namorada húngara encomendara no Albanese Meat and Pouldry, levantou-se, despediu-se do amigo cineasta que o acompanhava e abriu caminho entre os murmúrios que adensaram o auditório depois da atitude de Scorsese em relação a sua pergunta. Quando chegou à casa de Agnes ela já preparava um molho tártaro, porém afrancesado, com o qual cobriria a carne mais tarde. Lembrou-se da mãe e seus pucheros, empanadas e matambres e sentiu vontade de falar o idioma doméstico antes de provar aquele assado leste-europeu. Conversou bastante com dona Cohen, primeiro entremeando as frases com sorrisos e risadas, declinando logo para a preocupação de saber que seu pai batera com o carro em estado de embriaguez e chegara em casa todo ensanguentado, outro dia fora parar em um hospital psiquiátrico, e que seu irmão, fumando ainda mais, ia trabalhar em uma empresa coreana cuja sede da divisão latino-americana estava em um daqueles arranha-céus de frente para o canal do Panamá. Quando sua mãe quis saber como ele estava, principalmente se ainda tomava os remédios, disse que tinha de ajudar Agnes. A namorada subiu muito o volume da música velha do Les Rita Mitsouko enquanto acendia o baseado. Ele saiu para comprar mais água tônica e ao voltar a festa havia começado e entre os convidados estava ela, acompanhada de Niko Ar, um artista dinamarquês tão alto que sua marca estilística era fazer desenhos a carvão e ao vivo no teto dos lugares que lhe inspiravam. Em geral, habitava o sítio por cerca de uma semana, mas avisava que se utilizasse alguma tinta colorida demoraria um pouco mais.

Encontraram-se na quarta-feira e foram ao Guggenheim fazer tempo, falar das ausências, da festa e para ver as obras de Turrell. No café do museu ele disse sentir-se estável, muito embora com uma impressão de vácuo geral que o fazia lembrar da era do Prozac, ao que ela aquiesceu com conhecimento de causa. Questionou por que o havia deixado sozinho naquele dia. Ela reiterou que tentara contato. Ele retorquiu que não vira nem ouvira nenhuma mensagem sua e na sequência repetiu pela terceira vez que estava bem tranquilo com Agnes. Ao ficar olhando para ela sentiu vontade de beijá-la e a beijou. Ela perguntou se queria beber alguma coisa, ele recusou. Tomou dois scotch ali no café do Guggenheim ao mesmo tempo em que ele repetia o chá. Ele questionou se não era o momento de voltar a seu país e ela confirmou acrescentando que havia desistido de trabalhar para seu governo e que agora estava mirando um emprego de agente de artes visuais (telas) em algum organismo transnacional. Ela perguntou se sua namorada usava kfd, se sempre cozinhava bem, se ele gostava dela. Depois de ouvir as respostas consecutivas, um não e dois sim, e de notar como ele tornava os olhos para baixo, ela afirmou ter ficado com medo de estar grávida em agosto passado. Ele pensou naquele instante em que a proteína inzumo abre o óvulo para a fecundação e, em seguida, pensou em pedir um scotch também.

Passados dois dias, da varanda gelada do apartamento Agnes e Niko Ar veem os dois se aproximando trôpegos pelo lado de Little Italy. Da calçada ela divisa o dinamarquês com o braço direito esticado pincelando o que podia ser um rosa mexicano em torno do bojo de luz. Uma terceira pessoa se debruça na varanda, os observa um pouco e volta logo para dentro. Ela interrompe a conversa desarticulada que mantinham desde o hotel 309 do Meatpacking e vai comprar uma intragável Lite no Well Green. Entorna um pouco do conteúdo, reclama do sabor e quando joga o recipiente na lixeira ao lado da portaria do edifício de Agnes seu namorado, Vador Mazza, sai do elevador e pergunta quem é o latin lover. Com muito sotaque ele se esforça para dizer que não é latin lover e entra no elevador. Ela tenta beijar Mazza e não consegue mais do que se pendurar em seu pescoço e babar-lhe o queixo, até que o rapaz a levanta, beija sua face e lhe fala algo a respeito da resolução de um problema de corrupção na reitoria, enunciado que naquele momento não teve sentido para ela, mas que depois lembrou ser a causa pela qual ele não a fora visitar antes.

Minutos depois, pisos acima, Agnes está na porta do apartamento esperando o elevador para lhe avisar que suas coisas já estão arrumadas em uma mala. Ele a recolhe, repara o teto bem colorido da casa, ri mesmo sem querer e desce de escada cantarolando e misturando I Am a Creep com On The Other Side até que chega à rua. Nas estrofes On the other side/On the other side/ Nobody is waiting for me/On the other side que alternou com She’s running out the door/She’s running/She runs runs runs runs, faz uma pausa, olha para cima e ao vê-la com o dinamarquês perde a confiança de gritar os versos finais e emular Julián Casablancas ou Thom York para Agnes ouvir. A cerca de 500 metros dali, no quarto 707 do quase modesto 309, Mazza ganha seu jarro Lalique de presente, mas não deixa de ralhar e separar as roupas, as garrafas e as pontas de cigarro que juntos exalam um odor adocicado que denota a reunião de seres obsessivos em busca de rara interação química. Encontra um saquinho com kfd, usa um pouco sem ela perceber e guarda o restante no bolso. Depois de um banho quente, ela dá um beijo em sua boca, toma um hipnótico, entra embaixo das cobertas e acredita que cumprirá sua rotina de visualizar uma tela de Lucien Freud ou de Paula Rego e ter de bloquear o choro que empurra tudo com força para sair à superfície e endossar a certeza do feio, do sórdido, do fim. Mas dessa vez, de pouco em pouco o colorido dos bichos de Toledo entorpece seus piores augúrios e tão só alguns instantes se passam até ela adormecer ao surgirem aquarelas de Cícero Dias anunciando o começo de um sonho.

*

Albano da Costa é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Seu último livro é A imaginação revolucionária: Política, cinema e literatura no México (São Paulo: Annablume, 2011). Tem um romance e dois livros de contos na gaveta que pretende publicar em breve.

Tags: , , ,