Por Ana Lima Cecilio *

Há duas semanas, aqui, estava eu reclamando da falta de lugares para se falar de livros e, sobretudo, da nossa perda cotidiana de livros incríveis – livros dos quais não gostamos porque simplesmente não ficamos sabendo. Longe de mim querer escrever uma carta de mimimi (informem-se), então saí perguntando para meus queridos amigos e amigas escritores, a quem agradeço de novo e de novo, e eles fizeram essa lista incrível, essa verdadeira lista de worst sellers, esse pesadelo dos editores comerciais, esse paraíso do editores-leitores, essa verdadeira pescaria no limbo, para guiar vossos caminhos pelas livrarias, pelos sebos, pelo Natal, pela Feira da Usp, pela Estante Virtual, por aí. Boa viagem.

(Não resisto a dois bastidores: 1. Uma premiada e bem humorada escritora que, antes de soltar seu anzol, disse irônica e um pouco compungida: “livro no limbo? o meu”. 2. E o Marcelino Freire, no saguão do Prêmio Oceanos: “eita que tá fácil! Meu irmão alemão!”)

Noemi Jaffe ― Submundo, do Don Delillo [da Companhia das Letras, mas está esgotado. Tem na Estante Virtual]. Sei que ele é um escritor super bem sucedido, mas vejo que aqui no Brasil poucos ouviram falar dele e muito menos desse livro. A leitura me impressionou e marcou tanto, que estou impregnada da linguagem, da estrutura e da compreensão que a escrita dele tem do século xx. Entendo melhor nosso ínfimo e já dificílimo século depois de ter lido esse livro. Infelizmente, é bem difícil encontrá-lo, mas com um pouco de esforço, consegue-se.

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Rodrigo Lacerda ― O livro que eu não me canso de tentar resgatar, publicado atualmente pela Ouro sobre azul, é o Mina R, do Roberto de Mello e Souza, irmão do Antonio Candido. O romance se destaca na produção do autor e deveria ter, no campo da ficção, a mesma importância que as obras do irmão na área da não-ficção. Sem exagero, é uma espécie de “Guimarães Rosa vai à II Guerra Mundial”.

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Ivana Arruda Leite ― Raiar, do Hélder Santos, da editora Edith. O livro é uma narrativa incrível que se passa num sertão imaginário. A linguagem é super inventiva, à la Guimarães Rosa, sem fazer feio ao grande mestre. Duvido que você consiga parar de ler.

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Clara Drummond ― Quando decidi que leria Ana Cristina César, há cerca de cinco anos, era muito difícil achar seus livros para vender. Comprei alguns no sebo, edições dos anos oitenta, com capa de couro, que muito me emocionaram. Uma amiga me mostrou uma edição ainda mais bonita: Antigos e Soltos: Poemas e Prosa da Pasta Rosa, do Instituto Moreira Salles. É um coffee table com fac símile de seus textos em papel rosado. Minha amiga me emprestou e, durante mais de um ano, pegava aquele livro para ler quase todos os dias. Mesmo naquela época, não consegui comprar um exemplar para mim, já estava esgotado e sem possibilidade de reedição. Hoje, há apenas um livro disponível para a venda na Estante Virtual, por 440 reais.

Em tempo: estou há meses a procura do livro Ensaio Geral, do Nuno Ramos, onde tem o conto “Minha Fantasma”, que vários amigos me recomendaram com entusiasmo. Consegui ler trechos soltos na internet e já tenho certeza que será um dos textos da minha vida, isto é, se algum dia esse livro chegar em minhas mãos.

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Andréa Del Fuego ― Vassallu, de Sérgio Mudado [da Altana Editorial, dá para encontrar em sebos e na Estante Virtual].

Sérgio Mudado é o Stendhal brasileiro. Há muito tempo não lia um romance tão bem escrito, articulado, cuidado. Isso tudo sem impor a pegada do autor, sem piruetas de estilo. O caso é que Sérgio está preocupado com a história, urde um imenso tapete por onde o leitor não escapa, nem mesmo pra evitar uma das cenas mais violentas que o cinema ainda não fez.

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Marçal Aquino ― Viver é prejudicial à saúde, do curitibano Jamil Snege (1939-2003) [Editora do Autor, dá para encontrar na Estante Virtual]. Muito por culpa dele, que nunca permitiu o lançamento de sua obra por uma editora de porte, esta novela curta, potente, maravilhosa, é objeto de culto de poucos. Jamil converte a história de um publicitário em crise, que atropela um porco, numa perturbadora indagação existencial. Vale garimpar nos sebos.

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Evandro Affonso Ferreira ― A menina morta, de Cornélio Penna ― livro deslumbrante. As primeiras oitenta noventa páginas autor lança mão das palavras para narrar o velório da criança. Li muitos anos atrás. Mas achei agora aqui num livro lindíssimo de Luiz Costa Lima este trecho do romance que também na época achei encantador ― é o momento no qual o pai, Comendador, chega do campo, para olhar, pela última vez, a filha no caixão:

O senhor entrou e parou diante dela, sem conseguir derramar uma só lágrima. As pessoas ajoelhadas em torno murmuravam preces e não o olharam, nem fizeram qualquer movimento indicativo de terem notado sua chegada. Deu alguns passos. e o ruído martelado de suas botas, o tilintar das esporas, pareceram-lhe sacrílegos. Sentia, confusamente, ter trazido lá de fora a lama e a podridão dos brejos e das terras frementes de seiva presas aos seus sapatos e reconheceu não serem suas mãos dignas de tocarem naquela figurinha de cera.”

É, na minha opinião, o livro mais bonito da literatura brasileira. Totalmente esquecido ― que pena, se me permitem o trocadilho fora de hora.

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 Alice Sant’Anna ― Um dos livros de que mais gosto, mas que nunca mais vi em livraria, só em sebo, e com sorte, é o Armadilha para Lamartine [Companhia das Letras], de Carlos e Carlos Sussekind. É uma parceria de pai e filho, Carlos e Carlos, a partir dos diários do pai, escritos ao longo de 30 anos. É um livro inclassificável, muito engraçado e muito inteligente, que não pode cair na pilha dos livros esquecidos por nada nesse mundo.

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Marcelino Freire ― Ninguém é inocente em São Paulo, Ferréz (Objetiva).

É o primeiro livro de contos do Ferréz, republicado em 2006 pela Editora Objetiva. Sim, bem sei. Ferréz é conhecido e tudo o mais. Mas a crítica (bem comum no caso dele) torceu o nariz para um livro, assim, de voz original. Contos à la João Antônio do Capão. E haja ritmo. Realística imaginação. Ferréz tem língua firme nos diálogos. Cenas hilária e tragicamente cotidianas. Recentemente, ele lançou Os ricos também morrem, pela Editora Planeta. Outro volume de contos. Sim, sei que se fala do Ferréz. Sim, sei que ele está nas principais feiras. Mas é preciso que se diga. Chega de inocência. E de demência. Putz grila! Ferréz é um contista de calibre firme. É tiro e queda. No alvo. Pá, pá, pá.

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 André Sant’anna ― Panamerica, de José Agrippino de Paula. Passou por aqui José Agrippino de Paula. Ele escreveu Panamérica, uma obra prima imprescindível na literatura brasileira. Não há nada parecido na literatura brasileira. Ele foi reeditado há uns 15 anos pela editora Papagaio e ignorado pela cultura oficial. Por quê?

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Paula Fábrio ― O limbo dos livros esquecidos guarda também as algas de Veneza. Explico: Marca-D’água, relato de viagem do Nobel de Literatura Joseph Brodsky, é um delicioso passeio poético pelas ruas e canais venezianos. E não só. O leitor é convidado a juntar fragmentos de uma história de amor que chega ao fim, experimentando — como se levado pelo movimento suave de uma gôndola — uma peregrinação sobre a solidão e a passagem do tempo. A última edição no Brasil foi uma audácia da já saudosa Cosac Naify.

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Paulo Scott ― Acho que os livros do Marcelo Benvenutti e do Tony Monti não receberam a atenção que mereciam. São dois escritores prontos, com voz própria (e deles nada se fala).

Na poesia, eu apontaria o do Marcelo Yuka, o Astronautas daqui, um ótimo livro ― eu diria “um livro essencial” ― do qual ninguém falou nada. Nada de relevante. Não ganhou destaque. É um livro que enfrenta o lado bom e o lado perverso da convivência urbana no Brasil, sem ser panfletário, sem ser pedante, sem ser ingênuo. Considerada a realidade carioca, pode-se dizer que é o oposto da poesia festiva produzida na zona sul do rio, mas com uma vivacidade e uma felicidade ainda maior, mais marcante.

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Estevão Azevedo ― A passagem tensa dos corpos, de Carlos de Brito e Mello [Companhia das Letras].

O primeiro romance do autor mineiro venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais, foi finalista dos prêmio Jabuti, São Paulo e Portugal Telecom, mas nunca tive a chance de conversar com alguém que o tivesse lido nem nunca vi exposto em alguma livraria. E é um livraço, Não em extensão, é bem curto até, mas em intensidade, impacto e grau de elaboração. Um narrador-personagem indefinível, uma voz, vaga por Minas Gerais catalogando mortes, das mais banais às mais incomuns. Essa voz sem corpo segue sua viagem até que, em uma casa, encontra um morto insepulto; a família se recusa a reconhecer a passagem final do patriarca e o mantém sentado à mesa enquanto segue sua rotina. Essa recusa da morte se torna um obstáculo para o narrador, que de alguma maneira misteriosa depende dos corpos dos mortos para constituir o próprio corpo. Recomendo.

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Julián Fuks ― A obra mais surpreendente que já li, digo hoje, me arrependerei depois, foi O enteado, de Juan José Saer [Iluminuras]. Confesso que a princípio me entreguei sem entusiasmo àquele relato de um velho do século 16, que se põe a relembrar os dez anos durante os quais esteve cativo entre os índios colastiné, batalhando com a memória fraquejante, o desvanecer da experiência, a linguagem sempre insuficiente. Eu poderia ter optado por não seguir, como muitos fizeram, como fazemos tantas vezes com os livros que nos entediam. Por sorte ou instinto não o fiz, e pude me maravilhar com a profusão poética e especulativa das sessenta páginas finais, das mais bonitas que já li, sobre aquele povo acossado por pesadelos primordiais, aterrorizado com a ideia do próprio desaparecimento. Aquele povo com um conhecimento empírico do vazio, do sem-sentido, da evanescência do mundo e da vida, e que no entanto me fez sentir tão mais pleno, tão mais vivo. Esse povo, triste ver, padece agora a iminência do desaparecimento nas estantes empoeiradas de bibliotecas e livrarias.

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 Antonio Prata ― Campos de Carvalho me disse numa entrevista que quando lançou A lua vem da Ásia, ele ficava na livraria José Olympio, no Rio, esperando pra ver se alguém comprava o livro. Nunca viu ninguém comprar. O Jorge Amado disse pra ele que ele “só seria compreendido dali a trinta anos”. E o Campos de Carvalho, sentindo-se finalmente reconhecido, na época do lançamento de sua Obra Reunida, em 1990 e poucos, disse: “eu não sabia que 30 anos demorava tanto”. Ah, tristeza!

Não sei quanto vendeu o livro, na época do lançamento, mas segundo o prórpio Campos, não foi muito.

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Laura Liuzzi ― Os poetas portugueses são imensos. Porém, muitas vezes, de tão grandes, fazem sombra a outros poetas fundamentais. Posso estar enganada, mas por aqui é o caso (não só) da Luiza Neto Jorge (1939-1989). Uma pequena e notável editora, a 7Letras, publicou uma ótima seleção da poeta lusa em 2008: 19 Recantos e outros poemas. Neto Jorge fisga logo no primeiro contato. É um pouco como chegar no outro hemisfério pela primeira vez: luz, temperatura, língua nova.

O fruto, um autómato surpreendido.

Desprendeu-se da casca, que viu?

Um autocarro, um avião, um submarino.

Os frutos frios por fora

são por dentro aquecidos a eletricidade.

Os frutos davam frutos, flores, brinquedos.”

Impossível passar impune por uma estrofe como esta. E certamente muitos passaram batido por um livro como o de Luiza Neto Jorge, que também escreveu “Pouco tempo um objecto / pertence à sua matéria / se bem que cada vez menos o tempo / me preocupe / e a matéria seja uma hora / de os objectos estarem”.

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 Joca Reiners Terron ― Meus amigos, de Emmanuel Bove (Companhia das Letras, 1987).

Meus amigos é o livro que fez a cabeçona do Beckett. É um livro de 1924 que relata, ao modo seco de Bove, o reencontro do narrador com seus amigos fodidos: uma prostituta, um marujo alcoólatra, um dono de mercearia sovina etc. É a vida do Pós-Guerra como ela era. Beckett disse que Bove tinha “como ninguém o senso do detalhe tocante”.

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Ronaldo Bressane ― Uma cidade se inventa, do Fabrício Marques (Scriptum), uma antologia de escritores sobre BH.

É uma ideia a se replicar: juntar escritores importantes para falar do canto especial de suas cidades. Este ano tivemos o Uma cidade se inventa – que junta gente como Humberto Werneck, Carlos Trovão e Ana Martins Marques -, e O meu lugar (Mórula), com bambas do naipe de Aldir Blanc, Álvaro Marechal e Ciça Giannetti. Quem vai fazer o livro de São Paulo?

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Paulo Roberto Pires ― Só pelo título, Viver bem é a melhor vingança já valeria a pena. Mas muito melhor é a história que conta, as vidas de Gerald & Sarah Murphy, melhores amigos de Scott & Zelda Fitzgerald, bon vivants de carteirinha e personagens involuntários de Suave é a noite. Calvin Tomkins, o hoje veterano crítico de arte da New Yorker, os descobriu em 1962, como verdadeiros personagens de Fitzgerald, envelhecidos e melancólicos, tendo perdido filhos, parte do dinheiro e, é claro, a alegria de viver. Saiu na New Yorker naquele ano, virou livro em 1971 e foi reeditado pelo MoMa em 2013, lindo, acrescido de fotos e pinturas de Gerald. Aqui, só a edição vagaba da Artenova, de 1972, por menos de 20 pratas em qualquer sebo.

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Flavio Cafieiro ― Silente, do Renato Tardivo [7 letras].

É um livro de contos com relatos curtos de pegada bastante psicológica. O Tardivo é psicólogo e isso dá aos contos um subtexto muito profundo, caracterizações pouco explícitas mas muito bem trabalhadas. Ele é um excelente resenhista e nos tornamos amigos por causa do meu primeiro livro. Ele fez a mais bem elaborada resenha que já recebi e me enviou o livro dele. Eu adorei.

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André Viana ― Reino dos bichos e dos animais é meu nome, de Stela do Patrocínio [Azougue].

Stela entrou no Centro Psiquiátrico D. Pedro ii em 1962, com 21 anos. Em 1966, foi transferida pra Colônia Juliano Moreira em 1966 e lá ficou por 30 anos. Ela escrevia os poemas nas paredes do prédio, outros foram gravados pela artista plástica Neli Gutmacher e pela então estagiária Carla Guagliardi. O resultado, no livro que saiu em 2001, é uma poesia delírio que me emociona a cada leitura.

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Alexandre Staut ― Dos autores contemporâneos, escolho todos os livros da Dôra Limeira, paraibana que morreu há pouco tempo, aos 77 anos. Maria Valéria Rezende me apresentou a obra completa dela quando fazia um estudo sobre autores fora do eixo Rio/SP. Nas palavras da própria Dôra, seus livros trazem “pessoas desgarradas da engrenagem social, que nem sempre conseguem a solidariedade de que precisam para sobreviver. São personagens que sofrem todas as dores. A dor da velhice, das prostitutas, dos homossexuais renegados, a dor da loucura, dos aleijões, a dor de tudo que cheira mal, dos que perdem, dos que batem”. Livros essenciais: Prece e orgasmos dos desvalidos (Manufatura, 2005), O beijo de Deus (relançado em e-book, recentemente, pela Coleção Latitudes, da Mirna Queiróz) e Cancioneiro dos loucos (Editora Ideia, 2013).

Entre os autores do cânone, escolho alguns livros do Josué Guimarães, principalmente o romance Enquanto a noite não chega (1978); e os do Marques Rebelo. São autores que entram e saem da “moda”. Seria bom vê-los sempre nas livrarias.

Dos internacionais, o russo Joseph Brodsky ainda é pouco traduzido no Brasil, apesar de já ter levado o Nobel de Literatura. O volume de ensaios Menos que um, lançado pela Companhia das Letras em 1994 e sem reedição, está na cabeceira da minha cama há alguns anos. Há textos sobre a infância em São Petersburgo; estudos sobre Anna Akhmatova, Ossip Mandelstam e W. H. Auden; e sobre as condições de vida e de produção intelectual sob regimes totalitários.

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Ana Lima Cecilio é editora do selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, para o qual editou Balzac, Proust, Beckett, Adolfo Bioy Casares, Hilda Hilst, Monteiro Lobato, entre outros.  É parte do conselho editorial da São Paulo Review

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