Devoluto

* Por Rogério Duarte *

Intermúndio: a extensão vazia e silenciosa, inespacial. Ainda que tenha cerrados os olhos, desenham-se à minha frente formas difusas e pontilhadas, em movimento, cujo sentido me escapa. Não posso dormir: é escuro demais aqui. Ouço correr lá fora a água que transbordou os pequenos diques que engenhei na sarjeta. A tampa do bueiro escapou e todos os ratos desabitaram o esgoto. Enquanto os outros ressonam esfalfados, eu continuo vigilante.

Era evidente que minhas represinhas viriam abaixo: todos me haviam avisado. Menino, não mexe na terra da calçada, esse viveiro de tudo quanto é asqueroso, aí os mendigos se aliviam, os passantes cospem, as bitucas de cigarro dão flores nesse nem canteirinho. Mas eu tinha um projeto: aquela terra morta teria cabimento. Não me intimidavam as infinitas porcarias ali depositadas, e pacientemente eu cavava com uma colher velha a primeira superfície daquele solo batido, de um musgo duríssimo, tundra urbana que ganharia forma e sentido em minhas mãos.

As primeiras camadas estão batidas do sol e da chuva: são quase nem terra, são fuligem, esmeril decantado dos escapamentos de caminhão que insistiam em passar na frente do mercadinho de meu pai: são resíduos letais da rua – meu ermo, a despeito das passadas gigantes que me cercam com desprezo quando vou além do pez epidérmico: eu sei que para além daquela demão primeira de borra existe vida.

E lá está. Os grãos de terra agora mais areados abrigam seres vivos. Tomo cuidado para não ferir o tatu-bola que tenta escapar de minha escavadeira brutal, mas é por um bom motivo, não se assuste, porque eu tenho um plano que assombrará toda essa vasta ecologia que habita os subsolos rentes ao asfalto. O terror dentro da carapaça tão frágil, mas ainda uma armadura: talvez o solo me cubra mais uma vez, se eu apagar as luzes dentro de mim.

A terra não resiste mais ao avanço: ela não é mais preta de fumaça, mas avermelhada. Se não fosse o monturo da cidade, meu canteiro se converteria em horta e selva, mas não tenho essa ambição. Coleciono a argila amolecida, tiro as guimbas, separo as pedras, como se peneirasse numa bateia o meu tesouro: cimento imaginado que eu possa usar na represa que começo a construir rapidamente na sarjeta, ao pé da ladeira, pronta para receber a água que os moradores despejam nas ruas. Tenho de ser rápido: a base deve ser maior do que o topo, é preciso dilatar a muralha continente por extensos centímetros, para que o volume de água não a contorne por fora e ponha abaixo o empreendimento de horas. Sou minucioso, mas não me demoro nos detalhes: o jato pode vir a qualquer momento, e preciso interromper-lhe o fluxo. Não me incomodo com a passagem acelerada de carros e transeuntes: a calçada de um grande bairro comercial é este fantástico mundo que vibra um projeto.

A memória silenciosa dos minerais está muralhada a céu aberto e compõe um lago diminuto onde se reflete o céu: este meu bairro impermeável e orgulhoso, encapsulado na cidade. Espelho d´água que insisto em erigir toda tarde para reter ali o meu rosto de menino abrigado sob topos de casinhas velhas e nuvens em movimento. Melhor seria se não tivesse assistido à demolição, ao desaparecimento das pedras da rua. Mas cavei a terra com as mãos, e essa lembrança desvanece todas as aparências de solidez.

Avisto a corredeira nas cabeceiras da rua. Forcejo por pintar esta paisagem de verde, imagino árvores frondosas, mas a água despeja força em linha reta: minha represinha estará condenada em menos de um minuto. Mas por um instante ela interdita aquele fluxo fétido de água morta, e corisca uma inflexão inédita, porvindoura: olhos vítreos, repetições maquinais, e o medo sempre, medo assente, medo atado.

Uma baga grotesca atormentou a visagem agourenta de mim: e naquele mesmo interstício bramiu um trovão terrível, cortante, breve. A refração em fogo, a face vibrátil, descomposta, partida em restos e fragmentos indecomponíveis: este corpo sempre trêmulo, a vigília constante, como chama de vela apressada. Toda noite é um tempo só: retornança. Aperto os olhos, mas imagens incompreensíveis se debuxam pontilhadas, multiformes, coloridas, no vazio caligionoso das coisas não figuradas.

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Rogério Duarte é professor de Língua e Literatura há 26 anos. Como escritor, publicou Carta ao Meu Pai (Editora Chiado, 2017) e Contos de Elevação e Desapontamento (Editora Scortecci, 2019). Atualmente, é Secretário Geral da União Brasileira de Escritores.

 

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