Pelé!

* Por Tomas Fischer * 

“Pelé!”, o documentário da Netflix, traz uma armadilha, e você vai cair nela.

Não é só sobre futebol.

É também sobre um período da história do Brasil.

É também sobre a sua vida, e aí está a armadilha.

Se você nasceu a partir dos anos 1940 prepare-se, para enfrentar suas lembranças.

Se você nasceu a partir dos anos 1970, prepare-se para uma viagem pela história e o pelo futebol com o melhor de todos os tempos. Ele.

 

Para ver “Pelé”, inocente e distraído, fiz um confortável ninho no canto do sofá com a almofada, para escorar esse corpinho de 70 anos.

Pelé é o meu herói de todos os tempos.

E caí na armadilha de achar que no “Pelé” iria ver apenas bom futebol uma vida de glórias.

Enquanto o Rei desfilava pelos tapetes verdes, encantando o mundo com as maravilhas de que era capaz, sem perceber comecei a ligar minha vida com a do Pelé.

Corria na tv a história do Rei e em paralelo o da minha vida. Eu lembrava de tudo.

 

Pelé, eu morava no Chile quando aos 9 anos comecei a gostar de futebol. Meu radinho de pilha falava muito sobre você.

E quando mudamos para o Brasil em 1960, gastei a pouca economia das minhas mesadas em pilhas.

Eu achava que a programação da rádio estava nas pilhas e queria continuar ouvir você jogando.

Para meu desespero eu trocava e trocava as pilhas compradas no Chile para que meu rádio seguisse falando em espanhol, e nada.
Eu não entendia os locutores brasileiros. Eles narravam muito rápido. Eu queria ouvir dizerem Pelé. Mas a transmissão era assim ”… lá vai Ele, passa por fulano, dribla sicrano e é goool. Ele! Ele de novo! Pelé. Pelé!
Logo entendi que no futebol brasileiro “Ele” era sinônimo de Pelé.

Aos 12 anos ganhei um gravador de fita cassete.
Pelé, eu tinha dezenas de fitas só com os teus gols. Ouvia o jogo e quando você marcava, eu gravava a repetição do gol. E ouvia e reouvia as fitas imaginando como seria o teu gol. (TV era algo muito caro para nossa família. A vida era dura.)

Quanto mais gritado o gol, quanto mais vezes o locutor repetia “Pelé. Pelé. Pelé.” Eu pensava. Que golaço!
Claro que meu esporte favorito era o futebol. Eu corria bem e chutava razoavelmente e tentava imitar teus dribles, os controles de bola que pareciam tão fáceis aos teus pés, a bola colocada onde você queria que ela fosse.

Meu Rei. Eu era muito ruim e não me conformava. Parecia tão fácil para você!

Depois comecei a viajar pelo Brasil e pelo mundo. De carona sempre. Dormindo onde dava.

Mas eu era estrangeiro e o meu passaporte brasileiro, amarelo, trazia na capa em três línguas: “O portador deste passaporte não tem a cidadania brasileira”.
Era passaporte de refugiado. Difícil de conseguir visto para passear pelo mundo.

Não lembro quando comecei a usar a nossa “amizade” Pelé.

Eu ia para algum país da Europa para onde conseguia visto.

Depois escolhia uma fronteira pequena, de preferência nas montanhas ou por um vilarejo.

Chegando no posto da fronteira sempre recusavam meu passaporte.

– No passport – diziam eles

– Yes passport! BRASIL. BRASIL.  Repetia eu falando alto e sem parar, para que todos pudessem ouvir.

Esse bate-boca fazia outros guardas se aproximarem e alguém acabava lembrando. Brasil? Pelé? Oh, Pelé…

Aí começava um falatório, que eu mal entendia, sobre jogadas, gols e resultados.

De vez em quando eu soltava um “Pelé yes… Pelé…”.

O final era sempre o mesmo. Carimbo de turista no passaporte de refugiado, e apertos de mão e tapinhas nas costas.
Pelé quando você marcou o milésimo gol chorei que nem.

Como é que pode, você, que tinha a atenção do mundo todo, em vez de falar de si, soltar frases de efeito, que depois seriam usadas em marketing até o fim dos dias, em vez disse você vai e agradece a bola por tudo que ela te deu na vida e depois pede, implora chorando, atenção para as crianças do Brasil!?

E quando você disse que brasileiro não sabia votar? E te massacraram. E não é você tinha razão!
Quem viveu tua época, e vir o “Pelé”, além de reviver teus gols (“Oh. My. God! This is an  a-m-a-z-i-n-g  gol from Pelé!!!, como narravam os locutores ingleses.),  fique com lágrimas nos olhos várias vezes, lembrando de você nos campos e dos meus na vida.

Lágrimas de alegria meu Rei.

Tudo isso passava pela minha cabeça enquanto mal piscava na frente da TV.
Vou te dizer uma coisa.

Não sei como te agradecer pelas alegrias. Então vou fazer o seguinte.

 

Todo 23 de outubro, dia do teu aniversário, estarei empunhando uma bandeira de muito obrigado MEU REI PELÉ.

Pode sair no terraço para ver. Talvez mais alguns agradecidos apareçam nesse Dia do Rei Pelé e a gente passe algumas boas horas fazendo barulho e cantando Parabéns a Você a cada hora.

Um jeito de dizer meu Rei Pelé, muito obrigado por tudo.

*

Tomas Fischer é jornalista especializado em Turismo – ex- Folha de S.Paulo, ex-Guia Quatro Rodas (Editora Abril).

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