* Por Nilma Lacerda*

A igreja católica de São Julião, o Pobre, tem sua origem na modesta capela de um antigo hospital, construída no cruzamento de duas grandes vias romanas que partiam de Lutécia, antiga denominação da cidade de Paris. Destruída pelos vikings no século IX, torna-se sede da Universidade de Paris, no século XIII. Declarada bem nacional durante a Revolução Francesa, torna-se um depósito de sal. O prédio reencontra sua vocação religiosa em 1826 e, ao final do século XIX, a igreja é consagrada ao rito bizantino.

Na rua com seu nome, em frente mesmo à igreja e do lado da Notre-Dame, fica o hotel Esmeralda, cujo nome vem da personagem de Victor Hugo. O hotel se vulgariza no imaginário contemporâneo a partir de uma obra literária destinada a crianças e largamente traduzida, Linéia no jardim de Monet.

Paris, setembro de 2001.

­Estar em outro lugar faz perder, muitas vezes, o relógio e o calendário. Me encontro um pouco assim, assaltada, às vezes, por estranhas indefinições temporais, que me obrigam a refazer trajetos para me certificar de que hoje é tal dia ou tal outro. A gramática do sonho prescinde de referências que escravizam o cotidiano. Abandono, por isso, o registro diário das experiências e me ponho a organizá-las num único bloco.

Cheguei a Paris no dia 4 e comecei por esquecer no táxi os documentos cuidadosamente separados numa pasta. Mais simbólico impossível. O susto não foi muito grande, pois mesmo na errância acabamos tomando precauções. Sabia o nome do motorista, sabia o nome da companhia e em vinte minutos Monsieur Jacques Delicy chamava o hotel em que havia me deixado para comunicar que, em duas ou três horas, passaria por lá, entregaria os documentos. No hotel Esmeralda – junto à Catedral de Notre-Dame e evocações de seu mais célebre personagem (o Corcunda, ou seu criador?), começava a sentir verdadeiros o sonho e antigo projeto de vir estudar nesta Europa, que cobiço, de forma consciente, desde os dezoito, dezenove anos. Cobiço não como cosmopolitismo, ou sede de alma colonizada, mas como gramática imaginária do outro lugar. De um dos outros lugares possíveis, vindos da literatura, da origem dos ancestrais, do empenho de fazer ao contrário o caminho, molhar-me no sabor da rota.

Já me sabia viajante desde bem pequena, e levei muito tempo a construir o navio. Longo tempo de atenção aos detalhes, cuidar do instinto na bússola, perceber os ventos favoráveis. Não existe viagem sem o seu concurso. Aqui estou, para cursar um pós-doutorado, na École des Hautes Études en Sciences Sociales – Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais –, sob a orientação de Roger Chartier, para continuar a escrever este Diário de navegação da palavra escrita na América Latina, que me veio do rio São Francisco, da ilha em que habito, de Emilia Gallego Alfonso e de perguntas muito antigas.

“Por que você vai pra Europa fazer uma pesquisa sobre a América Latina?” – perguntou Maíra, minha filha mais nova, olhando por trás de mim a tela do computador, enquanto eu preparava o projeto para o Ministério da Cultura. Dei uma resposta possível entre as tantas adequadas, à que acrescentei mais tarde: vou mudar de lugar.

Mudo de lugar, tenho por paisagem cotidiana pedras talhadas há mil anos, catedrais de oito séculos, uma praça onde se queimavam bruxas faz pouco mais de trezentos anos, a memória da pintura impressionista. Entro quase todos os dias na Maison des Sciences de l’Homme – Casa das Ciências Humanas – e leio na placa em metal no jardim voltado para a rua du Cherche-Midi que

Neste lugar, de 1853 a 1964, esteve estabelecida a prisão militar de Cherche-Midi

O Capitão Dreyfus aqui foi condenado em 1894

O Capitão de Corveta Estienne d’Orves

– Herói da França Livre –

aqui foi preso em 1941 antes de ser fuzilado

Membros da Resistência aqui foram encarcerados e torturados

Girlene Alves da Silva, enfermeira, é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora e a primeira brasileira que conheço aqui. Cativante, generosa, Gigi – especialista na Síndrome da imuno-deficiência adquirida – diz que cuidar pertence à essência humana: é a primeira arte da vida. “Não posso deixar que a tecnologia de ponta substitua o cuidado humano” – diz, convicta de que uma pessoa enferma não é um número num prontuário.

Cuidar sendo a primeira arte da vida, a segunda talvez seja conversar. Num sofá do amplo saguão da École, que vamos chamar de “banco do Brasil”, reúne-se um pequeno grupo de brasileiros na conversa de depois do almoço, à espera do café. Benjamim acaba de chegar do Maranhão para fazer o doutorado em Economia, com uma pesquisa sobre o plantio do arroz nas pequenas propriedades rurais. Conversamos sobre cultura popular, chegamos ao bordado, aos bilros manejados pelas mãos das artesãs, às delicadas tramas por elas construídas e, no bordado da vida, desenha-se a figura da parteira – a sage femme, mulher sábia, expressão que o idioma francês conserva até hoje.

Gigi nasceu no Piauí, que faz limite com o Maranhão, e tem o maior respeito e as melhores lembranças pela mãe véia, a mulher sábia, idosa, que a aparou quando nasceu. Essas mulheres acreditavam que tendo participado do nascimento de novos seres deviam fazer-se igualmente presentes na preparação deles para a vida. Tomavam a seu cargo ensinar alguma arte, alguma competência à criança que ajudavam a trazer ao mundo. Assim, por volta dos quatro anos, Gigi aprendeu a fazer panela de barro, enquanto seu irmão Cleitom aprendeu de dona Amélia a fazer alfenim, delicadeza de bala feita de massa de açúcar. Moldando as panelas para ir ao fogo, as crianças moldavam também outros objetos. Gigi moldou cachimbos e, um dia, ela e os irmãos partiram para a transgressão. Não contavam com o pai, que apareceu fora de hora e fez as crianças mergulharem no barreiro – reservatório de água cavado no barro – para escapar à coça. Não escaparam. Apanharam não por estarem fumando, mas por terem mergulhado justo no barreiro de água potável. Estragaram a água de beber, numa região de seca.

Costumamos sujar, com frequência, a água da fonte em que temos de beber. Depois? A placa no jardim da rua du Cherche-Midi apresenta de forma muito nítida a necessidade de limpar a água do barreiro que se sujou. Não é outra coisa que estamos fazendo aqui. Precisamos da água limpa.

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Nilma Lacerda é escritora, autora de vários livros, entre eles, Estrela de rabo e mais histórias (Editora Nova Fronteira)

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