* Por Daniel Manzoni-de-Almeida* (de Brest, França)

Não é difícil ao redor, e na nossa própria história, a gente vasculhar e encontrar aquele momento de um relacionamento amoroso com aquela pessoa que nos fez sofrer e que classificamos, pelo menos entre os meninos gays, de “boy lixo”, ou seja, aquele companheiro que abre um campo de trauma e desespero terrível dentro do peito. Um saldo traumático de relacionamento e nos é natural, ao que sofre com a realidade da situação, olhar para aquele com quem se divide o tempo e dizer: “que pessoa lixo!”. Há vezes em que caímos mais de uma vez em situações assim. Psicanalistas dirão que é o ciclo das repetições e há um motivo inconsciente. Por que nos envolvemos em relacionamentos dessa maneira? Quando isso acontece é porque o outro é o lixo e nós não? Ou a pessoa lixo não é apenas o outro lado obscuro de nós, nos despertando uma atração profunda? Ainda, quem somos nós para dizer que o outro é lixo sem botar na conta uma perspectiva social e histórica daquele sujeito? Muitas questões. Porém, algo é certo: alguém é lixo por si mesmo ou é fruto de um tempo em que tudo é tratado violentamente como descartável?

Um relacionamento amoroso é quase uma incorporação em que algo do outro vai entrar em você e vice e versa. Relacionar-se afetivo-sexualmente exige um investimento emocional em que conhecer as fortalezas e fraquezas do outro fazem parte da construção. Ninguém vem pronto e nunca estará. O importante é o exercício de empatia mútua cotidiana e que no mundo em que vivemos, de um amor-para-a-vida-toda, a cada clique dos dedos no celular, esse exercício fica sempre para o próximo. Conhecer os limites do outro é muito trabalhoso quando o mais fácil é chamar de “lixo”. Ou quando estamos atolados até o pescoço de informações de como devem ser as pessoas, como devem se comportar, como devem se relacionar. Tudo vira lixo no segundo depois do aparecimento de uma outra novidade. Será que é o boy um lixo ou é o mundo que construímos que é o lixo? Você já pensou sobre?

Pois é, o que me ajudou a pensar sobre foi o novo e premiado livro de Agnaldo de Assis Nascimento. Em Marte em áries, o autor nos apresenta uma novela psicológica em fluxo de consciência, tendo como personagem Ivan, que é um jovem gay, treinador de academia de musculação e morador no centro da cidade de São Paulo. Em certo um homem comum, que podemos encontrar em qualquer situação da vida gay paulistana. Na trama, Ivan passa a procurar seu amado Ravi, depois do seu desaparecimento repentino. Ravi aparece e sai da vida de Ivan sempre depois de uma ressaca e de uma violência física intensa. Vai e volta da vida do narrador apenas como um cão de rua, esfomeado de afeto, que ao se recuperar desaparece deixando Ivan no vácuo. Para quem fica ao lado do narrador, Ravi é o típico boy lixo. Ivan, do lado sempre da perda, passa a procurar em saunas, bares, casas de amigos e parentes e no submundo da cidade de São Paulo, se expondo à perigos e armadilhas de autodestruição, em que Ravi poderia estar. Sem sucesso, Ivan vai encontrando, em verdade, lembranças que tem com o amado. Realidade e fantasia, talvez pela traição das memórias de Ivan com Ravi, se misturam construindo um caleidoscópio alucinante de cenas emocionalmente despedaçadas na novela psicológica de Nascimento. Lembranças dolorosas de uma tentativa do narrador em um espaço entre a esperança de encontrar Ravi, e a difícil realidade de superar o luto da perda sem explicações do amado. Um buraco deixado pelo boy lixo e irresponsável que Agnaldo vai nos ajudar a entender, pelo fluxo de consciência de Ivan, a verdadeira consciência e motivo do sumiço de Ravi e descobrir que talvez o “lixo” não seja o boy, mas uma vida que é cercada de violência física, moral e rejeição por ser quem se é. Que buraco é esse que Ivan sente em “Marte em Áries”? Nascimento nos apresenta uma originalidade na construção desse sentimento da personagem Ivan: a condição do LGBT+ contemporâneo, na sociedade brasileira, quando nos tratamos mutualmente como lixos.

Não é difícil perceber as influências literárias do escritor Agnaldo Nascimento. James Joyce, especialmente Ulysses, e Thomas Mann, com Morte em Veneza são duas referências bem claras. A personagem Ivan, criada por Nascimento, é uma síntese de Leopold Bloom de Ulysses e Gustav von Aschenbach de Morte em Veneza na peregrinação por cidades na procura do desejo. Ivan é essa síntese do homem LGBT+ contemporâneo que vive no espaço angustiante do desejo e do luto, ou seja, que está sempre à procura de um lugar, de um desejo no mundo e, ao mesmo tempo, tentando lidar com suas dores e perdas compulsórias de todos os interditos. Ivan não é muito diferente de Bloom ou von Aschenbach que vagam por Dublin e Veneza à procura de Molly Bloom ou do fascinante Tadzio, respectivamente. A personagem de Nascimento vaga pela cidade de São Paulo em busca de Ravi, entretanto a busca de Ivan se diferencia das personagens de Joyce e Mann, pois a procura é metaforizada pelo outro quando, em verdade, Ivan busca por si mesmo. Ravi é a outra metade, misteriosa, obscura, ambígua, e porque não, livre, que simboliza sua outra face da moeda. Quando Ivan procura por Ravi, ele procura por si mesmo. Em Marte em áries a procura de Ivan se aproxima da nossa procura cotidiana por saciar nossos desejos como consumidores de corpos nos aplicativos de encontro na internet, da forma de vida enlatada que nos é vendida em relação aos corpos, da busca emocional, e da busca pela felicidade perfeita. Ivan oscila entre procurar pelo boy lixo e ser o lixo colocando a nós a questão dos conflitos que criamos dentro da nossa própria comunidade alimentando a violência de quem nos vê como errados.

Quem tem medo da pessoa lixo? É uma pergunta intencionalmente tendenciosa para nos colocarmos sempre do lado higienizado das relações em que não oferecemos comportamentos fora dos padrões esperados quando, na verdade, não existe lado. Marte em áries despolariza essa questão e nos mostra que o lixo é o mundo que estamos construindo.

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor, pesquisador e doutor em teoria literária da Université de Bretagne Occidental, França.  Contato: danielmanzoni@gmail.com

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Foto ilustrativa: Henri Cartier-Bresson