* Por Nilma Lacerda *

O cemitério de São João Batista fica em Botafogo, bairro da alta burguesia da cidade do Rio de Janeiro – como nos informaram Machado de Assis e José de Alencar, em seus romances do último quartel do século XIX e início do XX. Atualmente, Botafogo é um lugar de trânsito entre a zona norte e a zona sul, entre as duas porções da própria zona sul. O quinhão de belos palacetes não consegue mais emprestar nobreza à alma de um bairro cujo índice de criminalidade é dos maiores da cidade. Em tempos de chuva, a água que desce dos morros e sobe dos bueiros torna a vida difícil, e nem se percebem nela os traços de sangue que a terra bebe e devolve, farta de um combate desigual.

Rio de Janeiro, 1º de novembro de 1999.

Morreu ontem Nise da Silveira, uma mulher que escreveu a morte do Diabo. Psiquiatra que se empenhou pelo fim dos manicômios, pagou por sua ousadia com uma prisão política na ditadura do Estado Novo. Vou a seu enterro e sinto a falta enorme de uma bandeira brasileira sobre seu caixão. Não há bandeira brasileira, há uma bandeira da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. Vermelha e prata, sublinha, quiçá, a frase de Nise, que leio num jornal desdobrado à minha frente:

            “Todo mundo é jovem e pirilampo”.

 Na porção final da serra do Mar, os picos assemelham-se aos tubos de órgãos de igreja e oferecem à cadeia de morros essa denominação. Os caminhos da serra dos Órgãos abrem à vista vales, morros, abismos. Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo são os destinos mais comuns para os cariocas, a vida expandida entre o mar e a serra, alguns picos no longe da paisagem alimentando veleidades de alturas, prazeres de frio, isolamentos.

Rio de Janeiro, preparando a mala para Nova Friburgo,

9 de novembro de 1999.

Em Nova Friburgo, dispenso o hotel que o Proler me reservou. Como vir para cá e não ficar ao pé de Marieta, a tia emprestada que ganhei pelo casamento e com quem sempre tive delicada afinidade? Quando fez cinquenta anos de casada, escrevi o cartão da festa das bodas, e cuidei de que a música de Marieta estivesse nas palavras que lembravam a vida dela com Osvaldo.

Faz pouquinho tempo que Marieta ficou sem Osvaldo. Foi um enterro tranquilo o dele. Morte sem muito sofrimento, Osvaldo sempre tão calmo, pisando em nuvens – um naïf. Osvaldo com mal de Alzheimer e Marieta cuidando da vida por dois. Osvaldo talvez expatriado, e Marieta como um golfo na vida dele.

Vamos conversar familiaridades amanhã, e delas devo fazer o meu diário em Nova Friburgo. Oitenta e seis anos e capaz de ler ainda as notas da Serenata de Schubert, d’ O Lago de Como, d’ O Tico-tico no Fubá, do Carnaval in Venice, Pedacinho do Céu. Doze graus de miopia, o uso da lupa – só pra música nova, as antigas bem guardadas na memória -, e os dedos deitam no teclado como ela deitava na cama com Osvaldo. Desligado, Osvaldo era ardente na cama – e cometo indiscrições. Indiscrição? Marieta teve a coragem de ser, no seu tempo, uma mulher fogosa com o homem que amava. Tenho um orgulho danado de dizer isso, de ter ouvido isso dela.

Marieta, na pauta da vida, aceitou as claves de sol com sustenidos, bequadros, e, agora, essa noite pesada, pauta de silêncio pedindo a ela tratamento de pianista.

A clave de dó – a difícil clave de dó – exige de minha tia uma mudança de notas. E Marieta permanece nas linhas do sol.

Estou indo a Friburgo para ler uma história de amor.

A colônia de Nova Friburgo nasce em terras fluminenses pela necessidade de apoio germânico no embate de Portugal com o império francês. Um acordo do rei D. João VI com o cantão de Friburgo, na Suíça, estabelece a primeira povoação de estrangeiros não portugueses no Brasil. Cerca de 250 famílias suíças trazem para a serra do Mar, na altura do distrito de Cantagalo, os sonhos comuns a todos os imigrantes. A altitude, o clima e a posse da terra asseguram a prosperidade, e o pequeno núcleo torna-se uma das cidades mais aprazíveis do estado do Rio.

 Nova Friburgo, 11 de novembro de 1999.

Marieta me retifica a idade: 85 anos, e afirma neste café da manhã, ter feito tudo o que quis. Leu muito, enquanto a vista permitiu, bordou a cheio a colcha de casamento, fez um caderno de poemas que depois bagunçou um pouco, acrescentando letras de músicas − tinha facilidade para decorar as músicas que ouvia no rádio. Confessa, com singeleza, que cumpriu sua missão. Discordamos com veemência, Jordão, o genro de Marieta e eu. Mas que bem me fez ouvir Marieta dizer que fez tudo que queria, que cumpriu sua missão. Venho a saber ainda, no calor do recital íntimo de ontem à noite, que Marieta compôs duas músicas, uma para o marido, outra para as duas filhas.

Compositora. Quem sabe os mundos dentro de Maria?

Quem sabe os mundos que se abrem nesses encontros pelo país afora, no contato entre saberes distintos, e complementares?

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

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