* Por Rafael Gallo *

Considerando que a ideia principal desta coluna é recomendar leituras, à maneira de um amigo que diz “leia esse livro, é muito bom”, eu tento evitar sugestões que sejam difíceis de achar para comprar ou algo assim. Mas dessa vez não vai dar: apesar de estar fora de catálogo, Fica comigo esta noite (editora Planeta), da Inês Pedrosa, é bom demais para deixar de recomendar. Quando surgem coisas extraordinárias no caminho, melhor privilegiá-las no lugar das regras.

Eu espero que alguma editora relance logo esse livro no Brasil, mas enquanto isso não acontece, é possível – e até fácil – encontrá-lo em sebos, inclusive naquele grande portal de sebos online. E acho que os vendedores ainda não perceberam que o livro está fora de catálogo, porque os preços não foram para a casa dos três dígitos, como costuma acontecer.

Ok, para falar do livro: Fica comigo esta noite traz 12 contos, nos quais, em maior ou menor grau, o amor e os relacionamentos amorosos têm parte na história. Mas nem pense que se tratam de histórias piegas ou algo assim; Inês transita pela Revolução dos Cravos, por homicídios, tensões entre imigrantes e países europeus, diferentes tipos de vinculação e as mais diversas situações. Tudo com maestria. E quando fala de amor ou de relações eróticas, não deixa por menos. Algumas das imagens sobre o desejo e o sexo criadas são das melhores que já li. Por exemplo, no primeiro conto, “Só sexo”, temos o seguinte trecho: “O prazer que o meu corpo conhece é o que aprendeu no teu, e foi esse que o meu corpo ensinou aos outros homens, aos vários em que tentou enganar a tua ausência, ao único que soube contornar a tua ausência para permanecer em mim. Todas as noites me acaricio com os teus dedos, fecho os olhos e sugo os teus dedos sob o contorno dos meus e conduzo-te pelo meu corpo como tu me conduzias. Todas as noites rebolamos da cama para o chão e do chão para cima da cómoda do teu quarto e para a mesa da sala e para as lajes frias da cozinha, todas as noites percorremos abraçados a casa velha onde já não moras, a casa velha que se calhar já se desmoronou sem a nossa ajuda. Todas as noites tu entras em mim por todas as portas, a tua língua silenciosa desperta vertigens desconhecidas nas partes secretas das minhas orelhas e das minhas pernas e dos meus pés. Todas as noites sinto o castanho dos teus olhos grandes dissolvendo-se nos meus com uma felicidade quente, imensa, vejo os teus quadris estreitos de rapaz dançando sobre o redondo do meu ventre, das minhas nádegas, todas as noites os teus dentes mordem o meu pescoço no sítio exacto em que o meu corpo guardava a última fechadura, todas as noites volto a subir esse monte dos vendavais só nosso.”

Uau.

Há vários contos ótimos no livro, mas, além desse primeiro, os dois últimos merecem destaque especial, pelo quão maravilhosos são. “A cor dos anjos” acompanha um pai, perto do Natal, cuja filha morreu no atentado ao World Trade Center e ele não consegue superar a dor. É um dos melhores textos que já li sobre o luto, se não o melhor. O trecho que separei ao final desta coluna vem desse conto, espero que sirva de pequena amostra da qualidade. E a história que fecha o livro é “Europa, plano nocturno”, outro conto deslumbrante e potente, em que uma mulher – agora moradora de rua, junto da filha pequena – repassa sua vida errante e, assim, seu olhar perpassa grande parte das crises da União Europeia. Uma obra-prima em 20 páginas.

Inês Pedrosa é uma das autoras que mais admiro na literatura atual – sim, contando homens e mulheres – e esse livro é uma bela indicação para quem quer conhecer seu trabalho, ou já conhece os romances e apreciaria ver um sabor um pouco diferente, com os contos. Foi uma das minhas melhores leituras dos últimos tempos, por isso eu não poderia deixar de falar sobre ela aqui, ainda que a aquisição do livro não possa ser feita das maneiras mais tradicionais. Espero que isso não seja impedimento para a leitura de quem acompanhou essa coluna, assim como não foi para mim, ao decidir abordá-lo aqui. É um livro grande demais para se sujeitar a coisas menores.

Trecho:

“Nos canais normais eles tinham medo que aparecesse, pela milionésima centésima vez, a imagem do avião a entrar pelas torres, entrevistas com as famílias dos sobreviventes, ou aqueles infindáveis debates em que tu me morres outra vez, submersa no horror abstracto dos números. E depois há sempre alguém , do outro lado da mesa de debates, que interrompe para perguntar: ‘E quantos morreram no Chile, a 11 de setembro de 1973? E na Palestina ocupada? E em Hiroxima? E em…’ E nessa altura a tua morte já nem é nada, tu nunca foste ninguém – só a filha felizarda de um emigrante português cheio de sorte. Uma jovem felizarda que numa bela manhã de Setembro teve o azar de entrar no sítio errado na hora errada. ‘Oh pá, da maneira que está o mundo… pelo menos a miúda não sofreu.’ Cães. Antes ladrassem. Antes me esquecessem, os que querem me consolar assim.”

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.

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