* Por Jorge Ialanji Filholini *

Salve, Betinho.

Está tudo bem?

Cara, engatinhando com esse troço de e-mail. Queria te mandar uma carta, mas você foi embora tão rápido e nem consegui pegar o seu endereço novo. Partiu ligeiro. Sem rastros. Talvez seja melhor.

A barra foi pesada, tô ligado, mas não devia descontar em nós. A Juliana me passou o seu e-mail. Disse que você sempre usa a internet para ver seus recados. Espero que veja este. Ela não está muito bem. Ficou cabrera com você. Nem perguntei. O que aconteceu, mano?

Te escrevo porque aquela nossa conversa depois do funeral foi essencial para mim. Estou largando tudo também. Vou cair no mundo. Aquele nosso sonho de molecagem. Lembra? Você me jogou a letra certa. Colocar Ben Harper na orelha e andar pelas estradas. Sem rumo. Ainda tenho aquele nosso mapa todo riscado com os lugares e países que íamos visitar. Infelizmente terei de realizar o percurso sozinho. Faz parte.

Encontrei o Plínio. Ele sempre fala de ti. Quer saber das loucuras que você tem aprontado. A loja de discos ainda está aberta. Plínio me disse estar meio mal de grana. As vendas não vão bem. Neste cu de mundo ninguém mais tem vitrola. Nada mudou, ele continua escutando Guns e Nirvana. Empacou nos anos 90. Chega a ser um tédio. Quem não emplacou foi ele. Fico máximo meia hora trocando ideia. Os mesmos papos, as mesmas lamúrias. Não sei quem inventou de ainda trazermos os antigos amigos para perto.

Esta semana estreou o episódio três do Star Wars. Ainda não assisti. Estou no corre-corre lascado e ver sem você é foda. Tá lembrado quando saiu da sessão do episódio i xingando George Lucas e mandando aquele Jar Jar Binks para a casa do caralho? Nem quis conversa. Ficou emburrado a noite toda. Nem o beck te fez soltar o verbo. Frustração da porra. Ontem, na madrugada, passou a primeira temporada de 24 Horas. Bateu uma saudade das noites no Bar do Amaral conversando contigo sobre os capítulos.

Demorei para te escrever. Eu estava matutando a ideia. Aquele papo chapado me transformou. Depois do dia que você partiu, Sanca ficou pequena para mim. Não consigo dobrar a esquina sem uma lembrança de nós dois. Um telão na minha frente. A sala vazia. O filme rolando. Quase fui atropelado na Alexandrina. Bota fé, me sufoca passar pela rua Episcopal sem lembrar de ti, mano. O busão quase passou por cima de mim.

Sanca é traiçoeira. Quando você está de boa, vem a cidade e na maciota te queima. Faz fogueira em praça pública. Memória inflamável. São Carlos acende o pavio. Esta cidade me puxa pela garganta os momentos pesados. Não quer saber se irá te magoar. A cidade ri. Engasga de tanto gargalhar. Rememorar é o vodu desta cidade. Não vejo mais futuro por aqui. Não sem você, mano. Sanca castigou o nosso horizonte. O ddd. Zero Dezesseis. Uma dor nas costas. A dor desse castigo que não me deixa respirar. Por que São Carlos insiste comigo? Sanca é freak. Sanca é o vulto da menina morta que não sabe da própria morte. Assombra. Me assusta. Sanca é cruel. Dona da máfia. Detentora da minha alma. A cova rasa. Arrasta pragas. Ninho de cobra. Ter sanca é como ter um leão dentro do quarto. Não importa os bons tratos, ele irá te devorar. Sanca tem sabor de vinagre. Sanca é para os espertos. Em Sanca se dorme apenas com um olho aberto. Sanca é o lugar onde o diabo tira o seu sabático.

Colei lá na UFSCar. Tava rolando palquinho dub. Mó galera no dce. A Carol estava no nosso famoso banquinho da maconha. A gente acendeu um em tua homenagem. Também cheirei duas lagartas brancas: uma pra mim e outra pra você. Lá no palquinho os meninos ainda perguntam de ti. Um dos maiores compradores de pó da cidade. Onde aquele branquelo aspirador de pó foi se meter? Vai vendo, um deles que me falou. O Lemão. Tá ligado? Cheirei mais alguns com ele, mas não é a mesma sensação de dar uns teques na napa contigo. Não fiquei muito tempo na federal. Tava meio sem grana e o banco já tava fechado. Na volta passei na pracinha perto do Mariva’s. Aquele bar está cada dia vazio. Curva de rio da universidade. Era de lei o pessoal tomar as brejas antes de começarem as aulas. Encontrei a Ju. Estava com o Flávio. Manja o Flávio? O milico de merda? Estavam indo pro palquinho. Só cumprimentei de longe. Dar ideia pra pm não é comigo. Você tá ligado. A Ju estava contente. Fazia tempo que não via o sorriso dela. Depois do enterro dos teus pais, ela ficou com a ideia pesada. E quando tu partiu, vixe, mano, ela nem saía mais para os rolês.

Eu tô pegando pesado nas ideias. Foi mal. Mas se liga. Não some. Acho que você nunca mais voltará pra cá. Eu sinto. Pois fique sabendo que eu também não estarei mais aqui. Vou sair fora. Talvez passe por Sampa, aí podemos tomar uma e trocar as experiências. Quem sabe pegar uma tela. Por aí os filmes estreiam rapidão. Em Sanca é mó espera. O Senhor dos Anéis demorou um mês pra vir aqui. O pessoal pirou.

Tô com novos planos. Fazer a mochila e pegar a estrada. Primeiro quero conhecer as cidades pequeninas. Aquelas que só conseguíamos enxergar com a ajuda de uma lupa no mapa da sala de Geografia do Sebastião de Oliveira Rocha. Arranjarei uns bicos. Já fui chapa de uns caminhoneiros. Sem problemas. Depois desse rolê, pensarei em passar aí e te abraçar. Olha, as horas aqui na lan estão terminando. Me responda quando puder.

É só o começo.

Fica na paz, meu querido

Abraços,

Henrique

*

capa

Jorge Ialanji Filholini nasceu em São Paulo, mas viveu mais de vinte anos em São Carlos. Escritor, editor e produtor cultural. É fundador do site cultural Livre Opinião – Ideias em Debate. Em 2016, publicou o livro Somos Mais Limpos Pela Manhã (Selo Demônio Negro), finalista do Prêmio Jabuti. O conto “Sanca” integra seu novo livro Somente nos cinemas, que faz parte da série LêProsa, da Ateliê Editorial. O lançamento ocorrerá no dia 5 de setembro, às 18h, durante a Balada Literária, na Mercearia São Pedro (Rua Rodésia, 34, Vila Madalena), em São Paulo.

*

Foto ilustrativa: Cena de “A rosa púrpura do Cairo”, de Woody Allen. 

Ilustração da capa do livro: Lourenço Mutarelli

***

A revista literária São Paulo Review é um exemplo de jornalismo independente e de qualidade, que precisa de sua ajuda para sobreviver. Seguem nossos dados bancários, caso resolva contribuir com qualquer quantia:

Banco Bradesco

Agência: 423

Conta corrente: 96.981-8

CNPJ:  07.740.031/0001-28

Se contribuir, mande-nos um e-mail avisando. Seu nome, ou o nome de sua empresa, figurará como “Nosso Patrono”, na página ‘Quem somos’ do site. Para anúncio, escreva-nos também por e-mail: saopauloreview@gmail.com

Tags: ,