* Por Sérgio Tavares *

Os donos do inverno insere o gaúcho Altair Martins num seleto grupo de autores neolatinos que trouxeram um verniz luminoso para o desgastado subgênero literário do romance de estrada. Entra para a lista de títulos como Falar sozinhos, do argentino Andrés Neuman; Um, dois e já, da uruguaia Inés Bortagaray; Arquivo das crianças perdidas, da mexicana Valeria Luiselli; e Os incontestáveis, do capixaba Saulo Ribeiro, cujos enredos tratam de dois ou mais personagens que partem do ponto A para o ponto B, de modo a cumprir um propósito aceso pelas mais diferentes causas.

No romance de Martins, a viagem envolve Fernando e Elias, meios-irmãos distantes há 24 anos, desde que Carlos, o mais velho, morreu em decorrência de um acidente de moto. Carlito, como era chamado, era jóquei e se preparava para uma famosa corrida de cavalos em Buenos Aires. O plano, então, é reincidir o desígnio alterado pelo destino, retirando a ossada do cemitério e atravessando do Rio Grande do Sul para o Uruguai e depois para a Argentina, com a finalidade de levá-lo até a noite de turfe portenha.

Se a ideia por si só já é inusitada, as circunstâncias beiram ao desatino quando decidem transportar os restos mortais numa caixa de isopor, a todo momento preocupados em não serem parados e questionados pela polícia. E fica pior: a motivação da travessia parte de um diálogo que Elias tem com uma égua que supõe ser Onesita, o animal que Carlito montava, pois, sim, o personagem literalmente conversa com equinos, num detalhe autorreferencial da literatura platina; talvez um aceno ao universo insólito do uruguaio Felisberto Hernández, autor de O cavalo perdido.

O espectro fantástico, assim, incorpora-se ao texto, sem necessidade de explicação prévia. A princípio como um signo de estranheza para, pouco a pouco, adquirir a função de ponteiro narrativo, orientando o andamento da trama de acordo com que determinadas conversas ocorrem. Merece também atenção a habilidade com que o autor encaixa esse fato insólito em momentos-chave, manipulando a suspensão da descrença no decurso da história a ponto de, mesmo para o leitor, parecer natural cavalos falantes.

Isso só é possível por conta de um controle absoluto que Martins detém sobre os componentes do enredo. O ritmo discreto e envolvente pronuncia de cena a cena, de episódio a episódio, a montagem da estrutura linear que, a um só tempo, consegue conter em si a vastidão da natureza fria ao longo do caminho e o confinamento no interior do táxi conduzido por Fernando, onde os meios-irmãos travam diálogos sobre ações do presente e visitas a trechos do passado, numa espécie acerto de contas com a vida.

Há algo de especial nos diálogos, pois são eles que dão dimensão psicológica aos personagens e, em meio a contrastes e parecenças entre a assimilação do mundo que viveram juntos e separados, oferecem um sentido de legitimidade ao relacionamento fraternal, conferindo aos balanços da inteiração uma afinidade intuitiva. Mesmo diante das irrestritas possibilidades da ficção, toda fala de um personagem tem de soar natural a um diálogo estabelecido na realidade. Aqui, o uso da linguagem informal, dinâmica e livre de artificialismo, proporciona uma experiência de comunicação verossímil, construída pelo dito e, muitas vezes, pelo não-dito; pelo que ecoa nas pausas, no silêncio.

Outro aspecto interessante é a incidência do nós sobre a narração que envolve os meios-irmãos, sugerindo a participação de um terceiro personagem nunca nominado. Seria o fantasma de Carlito? Seria o arbítrio de um equino que dita a marcha da trama? Tecnicamente, penso ser mais um inteligente esquema do autor para cooptar o leitor para dentro da história, criando uma sensação desarticulável de proximidade, como se a todo tempo este estivesse sentado no banco de trás.

Esse ângulo especial de visão confere originalidade ao texto, que contraditoriamente se arma no trânsito de múltiplos tons: do humor ao drama familiar, do suspense ao comentário social, da política aos crimes e crueldades contra os animais, com relevância para uma passagem envolvendo dois pescadores de arrasto numa praia deserta, que é uma das cenas mais tensas e arrepiantes produzidas pela literatura recente.

Martins, enfim, busca a descentralização num enredo com um foco bem delineado, usando da desolação da estrada, do cenário gelado e fronteiriço entre países, entre companheiros desatados, para metaforizar o sentimento com que seus personagens iniciam suas jornadas, avançando rumo ao esquecido de seus vínculos mais profundos onde encontram a substância humana que os unem pelo absurdo, pela revelação de que, finalmente no local adiado pela tragédia, os três são e sempre serão um único cavalo.

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Os donos do inverno, de Altair Martins (editora Não Editora, 256 páginas)

Avaliação: Muito bom

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Sérgio Tavares é escritor e crítico literário

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