* Por Nilma Lacerda *
Apropriadas para usos mais contemporâneos, as antigas estações ferroviárias transformam-se ou desdobram-se em estações de metrô, museus, centros culturais. Em Paris, a estação d’Orsay contentou-se com o subsolo de suas antigas e belíssimas instalações, que passaram a sediar o museu d’Orsay, um dos mais importantes da capital francesa. Em São Paulo, também a estação da Luz impõe arte, beleza e memória. Sem excluir a condição de que desfruta como ponto de tráfego em área urbana central, esses predicados apontam para outros usos. Um Museu da Língua Portuguesa neste lugar por onde transitou e ainda transita o povo põe em curso as dicções da língua onde a cidade se construiu forte e determinada, babel de intenções e arrojo.
São Paulo, 2 de dezembro de 2010.
As pequenas pontes na rua Mauá que levam ao Jardim da Luz saíram das mesmas forjas inglesas que forneceram o resto da estação. Espaço organizado pelo ser humano para abrigar a natureza na metrópole, o Jardim tem lagos, árvores frondosas, falsas grutas, cascatas, coreto, aleias. Há esculturas, homenagens, escritas:
(TOMBADO PELO ESTADO EM 1981)
Jardim da Luz
A informação pode ser lida logo à entrada, pelo visitante. Mais adiante, está o monumento
A
Giuseppe Garibaldi
BRACCIO BROICO
PER LA LIBERTÁ DEI POPOLI
CUORE MAGNANIMO
PEROGNI PIU’ OMANA ASPIRAZIONE
DI
SOCIALE GIUSTIZIA
1º MAGGIO 1910
Herói da unificação do Estado Italiano, Garibaldi é figura conhecida em nossa história e recebe a justa homenagem em São Paulo, onde a colônia italiana é das mais significativas na constituição de identidades no século XX. Mais abaixo, no lado direito do monumento, a homenagem a outro líder do Risorgimento italiano.
A
MAZZINI
LA DEMOCRAZ’A PAULISTA
NEL 1922
Visitado o jardim, histórico ponto de encontro da cultura italiana, é atravessar a rua, entrar no Museu da Língua Portuguesa para um reencontro multimídia com o poeta que escapa ao singular.
Fernando Pessoa, plural como o universo
A exposição está em cartaz na sala de exposições temporárias do Museu da Língua Portuguesa
De 24 de agosto de 2010 até 20 de fevereiro de 2011
De terça a domingo, das 10 às 18h
A exposição de Fernando Pessoa colabora para vulgarizar sua produção, colocá-la ao alcance de grande número de pessoas, faz da poesia um bem a ser desfrutado, permite proximidade com a literatura, possibilita ao indivíduo intimidade com a própria expressão. Com um caráter que prima pela contemporaneidade, o evento convida o participante a integrar-se em percurso múltiplo. Esquecida a caderneta de viagem, tomo as notas em papéis que tiver à mão. Sempre há um papel à mão, dentro da bolsa ou por perto.
Fernando Pessoa, em 1935, descreve-se como segue:
Profissão: a mais própria será ‘tradutor’, a mais exata a de ‘correspondente estrangeiro em casas comerciais’. O ser poeta e escritor não constitui profissão mas vocação. […]
Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência.
Livro do Desassossego
Não é tradutor o poeta, qualquer poeta? Tradutor também o professor, na acepção de Emilia Ferreiro? E uma profissão não pode ser vocação? E não pode haver mais de uma vocação, a alma aqui e acolá, agora e depois? Tradutora, correspondente estrangeira em casa de comércio, o que faço (o que fez Bernardo Soares em seus desassossegos?) senão traduzir, comerciar com dor e perplexidade? Em “Comércio”, apreendo os ossos do ofício:
Entre as pontes da loucura e do suicídio
a opção pela terra da lavoura. […]
Para troca de minha dor, entremeada nos azares de um romance,
pelas palavras de que duvido, mas estico, pele,
sobre feridas a requisitar este comércio
sem nome e duro exercício.
Entre textos que não conhecia, “Ambiente”, publicado em 1927 por Álvaro de Campos, me faz copiar fragmentos.
Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa.
Exprimir-se é dizer o que não se sente.
Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria.
Sem as montadas, os cavaleiros seriam peões.
O lugar é que faz a localidade. Estar é ser. Fingir é conhecer-se.
Ambiento-me. Recolho de Álvaro de Campos a consciência de que neste diário não há emoção verdadeira. Ao expressar, saio da emoção, ingresso na inteligência; digo, e não sinto. Ao exprimir-me, dou o suco, não os bagos, não as lágrimas da fruta boiando no copo. Considere o sabor e a densidade do suco, trabalho da terra e dos braços.
Estive e fui Língua Portuguesa, segundo a mirada de Campos. Sou agora Água na Oca, exposição no Ibirapuera. Vivências interessantes, interações variadas. Uma árvore dos desejos, onde pendurar desenhos, frases. O convite se alia à propaganda:
“Deixe na árvore dos desejos o que espera para um mundo melhor.”
BRADESCO
(com a devida logomarca)
Banco do
Planeta
(a logomarca preenchida com a forma do planeta)
As pessoas se expressam:
menos pessoas
falando que
vão fazer e mais
pessoas fazendo
Geli. Trevizan
Pobre só reclama
quando há enchentes…
Pede ajuda ao governo
mas não para de
jogar lixo na rua.
(ilegível) São Paulo 30/11/10
Paz ao Rio Bárbara 30/11/10
Compre (desenho)
ações das empresas de
água. O Futuro
está na água.
Os cadernos de viagem de Victor Hugo continham magníficos desenhos a acompanhar os textos. Não desenho bem, nem mesmo sei se desenho. Às vezes, fotografo para alcançar um registro visual. Às vezes. Minha matéria é o escrito. Abandonei à minha incapacidade ou ao meu desinteresse o desenho sobre o qual se penduravam os desejos.
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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.
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