Ler água

* Por Kátia B. de M. Gerlach *

Desde que chegamos ao vale onde se localiza o vilarejo de Stowe, Vermont, não tive a fortuna de encontrar uma truta sequer, ou então avistar Nick Adams, o personagem de Hemingway, acampado, alimentando-se de feijão assado em conserva e pescando trutas com iscas de grilos partidos ao meio.  Grilos saltam cegamente pelos campos, destemidos até sob a sombra de um arco-íris em meia tigela.  Não há quem os queira caçar e ando tão cheia de esquecimentos.  Dia desses, recordo-me ou imagino que, avistei a estátua de uma truta na lateral da estrada que segue perpendicular ao Monte Mansfield. Lá, onde o mundo promete não entortar. Grande, metálica e enferrujada, a truta possuía pernas finas como se esculpidas por Giacometti; a parte inferior de seu corpo confundia-se com a de um inseto, ou um ser humano metamorfoseado, fincado na grama do restaurante, em cujo interior, jorra a fonte de trutas verdadeiras, aquelas que nunca vemos, servidas grelhadas au beurre e sucedidas por crêpes Suzete flambados, chamuscando sob o fogo da lareira acesa. O odor do conhaque serpenteia o ambiente, inebriando os comensais em exílio. É sabido que Nick Adams e a família Von Trapp refugiaram-se nestas montanhas, finda a guerra.

Nesses dias de verão inclemente, o sol surra a truta solitária.  Maltrata-a com sadismo, não chegou a amá-la.  Devido ao seu estado inanimado, a truta não brilha, vai se apagando pouco a pouco. As escamas pulverizam-se em ferrugem, o pó se acumula em colinas disfarçadas de formigueiros até a chuva varrer os restos do corpo da besta mortificada.  Na casa vizinha ao restaurante, pintada de vermelho carmim, os jardins deixam explodir as rosas negras como tulipas de Dumas, dezenas de idosos levam adiante a espera pela finitude do tempo.  Uns passeiam pelas manhãs, outros sentam-se nos bancos externos com seus andadores e bengalas, submetem-se aos banhos solares, já quase não absorvem as vitaminas dos raios solares, vão se desconectando das forças do cosmos.  Na semana passada, um deles furtou-se à mercearia.  Tremia muito, a mão esquerda mal levantava a máscara para cobrir o rosto, a direita suspendia a bermuda encharcada de urina. O pobre diabo girava pelos corredores da loja como se se encontrasse no “Crazy Maze”, o labirinto montado no milharal ao ar livre, também à beira da estrada que tomba no Monte Mansfield.  Alguém tomou o velho pelo braço, devolveu-o ao lar, o seu último endereço.

As trutas arco íris, dos riachos de geleiras americanas, esparramam-se mundo afora, como frações de um arco íris universal, nascente em potes de ouro, nos dias em que as viúvas deveriam se casar. Ali a minha incompreensão, aos cinco anos de idade. Qual o vínculo possível entre o sol, a chuva e casamento da tia viúva que ardia em maldade, não fosse pela rima.  A descrença em casamentos meteorológicos se justificava: a única viúva que conhecera até então era a tia das unhas perfeitamente esmaltadas de vermelho e que, depois de capturar Hansel e Gretel, presenteava-nos com balas de doce de leite.  O cabelo louro gris montado numa teia de fios sintéticos assemelhava-se ao da boneca importada da Alemanha, duas coisas assombrosas, de olhos verdes gigantescos e raros. Surpreendia como a tia lambuzava as bochechas pesadas com dois dedos de maquiagem, esforço de beleza incompatível com o clima da Tijuca. Os mesmos dois dedos apertavam a guimba do cigarro perenemente aceso, num gesto de elegância tentativa, e apontavam na minha direção para amedrontar.  Os dias de sol e chuva simultâneos faziam-se tão raros quanto os pretendentes à mão da minha tia, apesar do movimento nos céus. Ela, entretanto, não cessava os comentários maldosos sobre o meu nariz salpicado de sardas, apelidara-me de Sara em diminutivo.  Não me ofendia já que eu própria me felicitava pelos traços herdados do avô e zero em comum com a tia.

Nas passagens ribeirinhas do Little River, é fácil encontrar pessoas em trajes técnicos, instaladas em cadeiras dobráveis, apoiando anzóis, no meio dos riachos, silenciosamente à espera de trutas.  Esperar por trutas é como esperar pelo tempo no asilo, ou por um marido de viúva em dia de arco-íris.  Existem mais de cinquenta maneiras de se fabricar iscas manuais para o anzol, iscas artesanais que as trutas em seus voos elusivos irão mordiscar. Parece haver um conjunto de mistérios em torno de como atraí-las.  Sento-me sobre rochedos que mergulham para fora desses riachos e passo horas admirando os insetos, girinos e sapos que se deixam ver.  É como se as trutas não ocupassem essas águas, ou tampouco existissem.  Um vazio qualquer tremula.  Nunca foi a minha pretensão pescar trutas, contento-me com a alegria do nado livre alheio, a ideia de seguir o fluxo do rio, saborear na pele o frescor das águas derretidas da geleira. Se acaso a minha alma escapulisse para dentro de uma truta me daria por satisfeita. Os bagres que continuem a desempenhar o milagre da alimentação.

Dez por cento dos pescadores captura noventa por cento das trutas e elas não se intimidam, emergem em matizes deslumbrantes, azuis, verdes, amarelas, enfeitadas por linhas laterais que vão da cor rosa ao vermelho, refletindo o arco íris.   Os pescadores de sucesso, cujos corpos se deixam cercar pela água, apreendem o código de lidar com seres tão tênues, tensões superficiais corpóreas. Para a pescaria vingar, é preciso ler as águas. O pescador experiente recorta um espelho, por onde as trutas passam, um túnel cristalino, um frêmito, as viúvas alegres vislumbrando chances renovadas, novos matrimónios rios afora. Em certas ocasiões, as trutas se expõem inteiras a frente do pescador, deitadas como musas, não apenas reduzidas a sombras de trutas invisíveis, exibem as suas manchas silenciosas. Dez por cento do corpo aquático contém noventa por cento da totalidade das trutas.

Ler as águas a procura de trutas equivale a ler cem páginas de um livro. Os versos e frases vão sendo carregados na leveza das ondas da correnteza doce.

Peter, um amigo artista plástico, turco de origem búlgara, que passou muitos anos apátrida, lê borras de café no fundo da xícara.  O café turco, não sendo coado como o brasileiro, facilita adivinhações.  Na antiga São Sebastião, os cariocas cresceram lendo o mar, as linhas da praia, os humores de Netuno, a faixa azul no horizonte.  Ondas maiores e salgadas empurraram-nos longe, forçando rompimentos, partidas. Seria então o conhecimento da leitura aquática passível de esquecimento quando um coração tropical se deixa involuntariamente cobrir de neve?

Recomenda-se que o exercício de leitura da água, auxiliada por binóculos, deva ser interrompido tão logo as trutas apareçam em círculos concêntricos para que o pescador inicialize os preparativos da caça.  Um torpedo prateado pode saltar do riacho de repente, tocar no ar com a sua maciez fugidia.  Talvez os encarregados do restaurante fino comecem a polir a truta enferrujada agora que o outono sinaliza. Talvez chamem os idosos do asilo para que se ocupem da estátua da truta e a façam brilhar furta-cor. Dizem que as rapsódias tem o poder de desaparecer do mesmo modo que as trutas somem da visão irisada da infância, na caverna funda da memória.  E, assim como as trutas, as reminiscências reerguem-se nos fluxos claros e rápidos, como se nada de mágico houvesse acontecido com elas.

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Kátia B. de M. Gerlach é escritora natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York desde 1998. Autora dos livros Colisões Bestiais Particula(res) e Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas publicados pela editora Confraria do Vento.

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Na foto, o vilarejo de Stowe, Vermont

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