* Por Nilma Lacerda *

Os kiosque à journaux[1] ocupam um espaço significativo nos cartões-postais de Paris, grande parte deles com as armações de ferro batido e vidro, notas em verde-bandeira a lembrar que foi ontem, ontem ainda, que a cidade se passeava, inteira, vestida de art nouveau.

Paris, 25 de janeiro de 2002.

Morreu Pierre Bourdieu. Bourdieu – para quem a sociologia foi um esporte de combate e que a ele se lançou com o objetivo de explicar que as relações sociais não são relações naturais, mas construção humana e de poder. Bourdieu, que respondeu pessoalmente, não faz muito, ao e-mail que eu havia enviado à sua secretária, pedindo a exata referência bibliográfica de um artigo em que trata de livros para crianças e jovens. Bourdieu – cidadão, professor, homem de pensamento e de ação – morreu na quarta-feira, 23, às 23 horas, conforme informa o jornal Le Monde.

A notícia me chega pelo meio do dia 24. Em nossa aula da tarde, Jean Hébrard fala da tristeza que se abate sobre a École. A memória de Bourdieu vai tomando a sala, Hébrard sucumbindo ao sentimento de perda. De repente, um fôlego e começamos o trabalho. Terminada a aula, vou encontrar de novo a tristeza – evidente e pesada – colada ao rosto de Afrânio Garcia. A morte do pensador dói nele como haviam doído antes as mortes do pai e do mãe. “Para certas perdas, não estamos preparados nunca” – me diz. Um jornalista telefona, quer marcar uma entrevista. Ao telefone, Afrânio vai falando do mestre, que democratizou a possibilidade de acesso ao debate intelectual, que se empenhou em estender a todos o convite para entrar nesse banquete.

Ele não temeu nenhum assunto: com instrumental adequado, debruçou-se sobre a moda, o masculino, a cultura, a arte, a literatura, a miséria social, a política, os meios de comunicação de massa. Não pediu consonância às suas idéias, nem teve medo do debate. Um ponto alto do filme A Sociologia é um esporte de combate[2] é a discussão tensa com moradores do subúrbio, que recusam discursos para a solução de seus problemas, feitos da massa espessa e cortante da realidade. Enquanto o coordenador da mesa se aflige, Bourdieu ouve as críticas, responde ou cala.

Necrológios são necrológios. Alguns se preparam mesmo com dias de antecedência e podem dar sustos nos elogiados. No Le Monde, o texto de Thomas Ferenczi é sóbrio, adequado ao consenso da perda de um intelectual que – enfrentando fortes críticas e preconceitos acadêmicos – colocou o conhecimento científico a serviço do engajamento político. Para Bourdieu, a evidência era que as coisas podiam ser diferentes. Desnaturalizou as relações sociais, desvelou estruturas simbólicas, aguçou a perspectiva crítica, fez dela uma necessidade. A reportagem traz, mescladas ao texto do presente, citações de uma entrevista de 92:

“Dez anos de poder socialista conduziram a seu próprio fim”, nos declarava em 92, “com a demolição da crença no Estado e a destruição do Estado-providência, empreendida nos anos 70, em nome do liberalismo”. Face ao silêncio dos políticos, ele reclamava a mobilização dos intelectuais. “O que defendo”, explicava nessa mesma entrevista, “é a possibilidade e a necessidade do intelectual crítico.” Acrescentava: “Não há democracia efetiva sem verdadeiro contrapoder crítico. O intelectual é uma parte desse poder – e de primeira grandeza”.[3]

O jornalista informa de uma personalidade que agiu no sentido da transformação da história, gerou fatos de importância efetiva na vida de pessoas que nunca ouviram o nome dele. Em sua concepção de sociologia – que expôs na lição inaugural no Collège de France, em 1982 – e à qual se manteve fiel, Bourdieu expressou essa tensão do pensamento, à qual se costuma dar menos atenção que o devido. O jornalista continua:

“A sociologia não é um capítulo da mecânica,” dizia, “e os campos sociais são campos de força, mas também campos de luta para transformar ou conservar os campos de força”. Acrescentava: “A relação prática ou mental que os agentes sustentam com o jogo faz parte do jogo e pode estar no princípio de sua transformação.”[4]

Bourdieu preocupava-se em “fazer sair os saberes da cidade sábia”. Fazer com que os saberes transponham os muros da cidade da sabedoria – generosa perspectiva para fechar esta página, caminhar por este Diário.

 

[1] As bancas de jornal.

[2] La Sociologie est un sport de combat. Pierre Carles, dir., França, 2000.

[3] No original : “Dix ans de pouvoir socialiste ont porté à son achèvement, nous déclarait-il en 1992, la démolition de la croyance en l’Etat et la destruction de l’Etat-providence entreprise dans les années 1970 au nom du libéralisme”. Face au silence des politiques, il en appelait à la mobilisation des intellectuels. “Ce que je défends, expliquait-il dans ce même entretien, c’est la possibilité et la nécessité de l’intellectuel critique”. Il ajoutait : “Il n’y a pas de démocratie effective sans vrai contre-pouvoir critique. L’intellectuel en est un, et de première grandeur”.

[4] No original : Il restait en même temps attaché à sa conception de la sociologie, telle qu’il avait exposée, en 1982, dans sa leçon inaugurale au Collège de France. “La sociologie n’est pas un chapitre de la mécanique, disait-il, et les champs sociaux sont des champs de forces mais aussi des champs de luttes pour transformer ou conserver ces champs de forces”. Il ajoutait : “Le rapport pratique ou pensé que les agents entretiennent avec le jeu fait partie du jeu et peut être au principe de sa transformation”. Contre tous ceux qui l’accusaient de donner trop de poids aux structures et de s’en tenir un déterminisme démobilisateur, il proclamait ainsi sa croyance en la liberté de l’homme. Sa vie et son œuvre sont là pour témoigner de cette forte conviction.

*

Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

 

Tags: