* Por Marcos Peres * 

Quer a tradição que o filósofo Demócrito tenha caído em estranha e ridente loucura; a população, preocupada, chamou o médico Hipócrates para examiná-lo. O famoso médico descobriu que o paciente estava são e que seu riso, na verdade, era um escape que assumia contra o mundo, este sim, irracional e egoísta. A risada, como instrumento contra o incompreensível correr da sociedade, tornou-se uma tradição, uma entidade que volta e meia ainda é invocada. Recentemente, o “Coringa”, baseado nesta fórmula (bem como no clássico O homem que ri, de Victor Hugo) mostra a risada aloucada como emplastro de todas as dores.

Seguindo a linha argumentativa (seguindo a linha cronológica de um 2020 que parece ter saído de um roteiro de Stephen King), seria cômodo colocar A mulher que ri, livro de contos da Thays Pretti, neste balaio. Seria, no entanto, um erro. A mulher que ri não é uma carapaça escancarada contra um mundo cruel, não solidário e feito de estritas preocupações com o capital. Os sorrisos que aparecem no livro são solitários, muitos deles sem outros confidentes a não ser o leitor. No conto título, após um maçante dia de expediente, sabemos do êxtase sensorial que a personagem sente na datilografia. Os toques na máquina são seguidos de sugestões corporais, a criação das palavras é misturada com o conhecimento profundo, íntimo. Seu gozo é solitário, seu riso não é um libelo a ser gritado contra o mundo patriarcal, machista. É, antes de tudo, um ato quase secreto. E nem por isso menos forte. As negativas, as rebeliões não precisam ser ruidosas, nos ensinam as personagens do livro. Como em “Amantes”, em que a personagem começa a pensar no planejamento do casal e nos afazeres do dia seguinte, justamente quando entende a primavera de um amor extraconjugal. Ou nos não tão risíveis “Mentirinhas” e “Promessa”, que mostram dores e inquietações, que ocorrem aos montes e que não são avalizadas por filósofos ou filmes de Hollywood.

Sei de minhas limitações para a compreensão de certas nuances do livro. Como homem, possivelmente não consiga compreender muitas dores, muitos pormenores patriarcais encalacrados na sociedade, talvez também em mim. Como amante da literatura, no entanto, posso escrever sem restrições, e aqui me arvoro; deste sítio pretendo me fixar para poder falar de um livro com a palavra ‘mulher’ no título e com dezoito contos protagonizados por personagens femininas.

A autora compreende que a bandeira que empunha é importante, mas não descuida da técnica, da forma e do esmero com o roteiro. E aqui, ao meu ver, está a maior virtude do livro: tema, conteúdo e forma são notáveis, são combustíveis um ao outro, aparecem com brilho destacado e, ainda assim, de mãos dadas, auxiliando-se.

Ilustro o argumento com a primeira frase do livro: “Lembrasse antes quanto tempo gastaria na beira do fogão (…) talvez nem tivesse começado.” Na construção, a personagem pensa que, se no passado, tivesse recordado do moroso mexer na panela (o futuro), nem teria começado o Doce. É uma lembrança somada de uma condicional futura, um flashback com um flashforward condicional ou, mais literariamente, uma analepse proléptica. Para resumir, é um começo de quem sabe mexer o doce com propriedade.

Sei, podem pensar que: 1. Pode ter sido coincidência e/ou 2. Estes nomes, estas exposições são mais mostras exibicionistas do crítico do que recursos da criticada. Respondo os dois pontos com a mesma afirmação: só sei destes nomes e construções complicadas porque a própria autora me ensinou sobre a prolepse analéptica famosa do início de Cem anos de solidão, quando Aureliano, no futuro, se lembra da descoberta do gelo. O que quero dizer com isso é que a autora não só é estudiosa de literatura, como coloca em prática a lição de seus mestres. “A mulher que ri” não é um trabalho veloz; ao contrário, foi pensado, na forma e no conteúdo, como quem mexe o doce, sabendo-o um processo vagaroso.

Destas conjunções, em que forma e conteúdo se casam de maneira notável, destaquei alguns trechos:

  1. No antipolicialesco A mulher que não matou seu marido, temos a informação da morte e da não culpa da personagem logo no título. No entanto, o conto caminha para outra direção. Somos apresentados a uma mulher que sente medo do marido violento e que faria de tudo por seus filhos. As imagens do frango sendo destroçado são mostradas ao mesmo tempo em que sentimos algo errado no núcleo familiar. A narrativa cria expectativas imagéticas, contrárias ao que o título sugere. Uma das mais importantes lições sobre o conto pode ser sintetizada no que ficou conhecido como “Arma de Tchekhov”: se um objeto é apresentado ao público, necessariamente deve ser utilizado em algum momento da trama. A autora não se esquiva da lição e a mostra com crueldade e lirismo.
  1. Em Baunilha, baunilha, há tons alegóricos ou fantásticos. O tema do cotidiano, que transforma dias em modorras grises, é mostrado com a narrativa de uma mulher que, de tanto querer agradar o marido, confunde-se com os tons cinzas da casa; por não ser vista, acaba se liquefazendo na paleta de tons insossos do lar.  Cor, textura, vida inteira em tons pasteis, ritmo só, bege do teto e das cortinas, da roupa e da cama, pequena mancha bege, terno cinza.  A autora emprega recursos literários, a sinestesia, a repetição de elementos anódinos, mornos, para demostrar ao leitor uma corrosão gradual, um limo do tempo.
  1. Em Menina, o solilóquio da protagonista, destroçada por um amor que ficou na promessa, invade o leitor por completo; com a barriga crescente, pensa em nomes. Nomes de menina. Nomes que são martelados. Que podem ser os de sua filha, mas também de outras protagonistas levadas por histórias, também alquebradas por dentro. “As narrativas de abandono são sempre renovadas – mas a sequência era a mesma”, avisa-nos a narradora, que confunde habilmente o pensamento da protagonista e um rol de outras dores, outras meninas, uma sequência que se repete apenas alterando o nome das personagens.
  1. Fantasia e Aquarela são manuais de contos. Destes que são lidos em oficinas de escritas criativas. A moldura perfeita, o não saber dos detalhes, o suspense e a história que deve ser adivinhada pelo leitor. Também em Fantasia, abre-se a possibilidade de uma leitura de uma história fantástica – como um destes temas borgianos arquetípicos com duplos e personagens em contato com forças ocultas; ou pode ser a narrativa de uma namorada insegura. A fantasia pode ser a roupa como também a sequência faltante da festa, que se passa na cabeça da protagonista e dos leitores. O título se refere ao baile, mas pode ser também referência a lacuna, aos pontos que ligamos na própria mente – e, nesse sentido, trata-se de um título metaliterário, que homenageia o estilo, o proceder do conto.  Já em Aquarela somos apresentados a uma pessoa que ousa pintar seu autorretrato. “Água de aquarela também serve para o batismo”, diz a narradora e, por sugestões como batismo, benção, renascimento, somos conduzidos a um outro criar, a um outro retrato.
  1. Também a forma é importante em Itsybitsy spider (e aqui, imagino, de maneira mais visível). As divisões concretas no texto indicam visões não só antagônicas, mas irreconciliáveis; o tema da ruptura fica ainda mais evidente (e doloroso) com o auxílio da forma, com as palavras corretas, com a poesia pungente daquilo que ficou nas entrelinhas de um casal consumido. Rompido. No centro, há um terceiro bloco, que não tem o papel de conciliar as visões antagônicas, mas de questionar, de tentar dar aos vazios os seus reais nomes.

Sei que corro o risco de me estender, de antecipar as boas surpresas do livro. Falei de alguns pormenores apenas para demonstrar como a autora aliou técnica, inventividade e escrita em torno de uma causa. Se estes adjetivos estivessem separados, Thays Pretti poderia ser injustamente questionada, seus adjetivos solitários poderiam se tornar justamente o ponto alvo da crítica: tecnicamente exibicionista, ou alienada ou panfletária. No entanto, ao temperar seu livro com doses iguais de virtudes, a autora torna quase impossível o trabalho do crítico em apontar defeitos. Uma mulher ri no título. Nos contos, alguns risos escondidos, outras personagens que não tem motivo algum para sorrir. Do nosso lado, leitoras e leitores sorriem, agradecidos, por este lindo livro.

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Marcos Peres é servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Autor de O evangelho segundo Hitler (prêmios SESC 2012/2013, São Paulo de Literatura 2014 e finalista do Prêmio Jabuti 2014) e do romance policial Que fim levou Juliana Klein?

 

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