* Por Nilma Lacerda *

No metrô parisiense, leitura e escrita acompanham o usuário na travessia dos túneis, ajudam a passar o tempo de espera nas plataformas, entram nos vagões. Os textos à volta dos passageiros não se restringem à habitual propaganda das cidades capitalistas, mas anunciam exposições variadas, oferecem pequenos poemas e, na estação de Saint-Germain-des-Près, frases de Cioran e de outros pensadores, ampliadas por projetores potentes, dançam erradias nas paredes e no teto. Um convite às manifestações pessoais, que aparecem em interferências nos cartazes, mensagens em cartões-postais deixados nos bancos, ou performances de textos célebres em troca de alguma moeda.

 Paris, 30 de dezembro de 2001.

Meu marido e minha filha Maíra chegaram às vésperas do Natal. Viajante atenta, ela logo observa que nos anúncios do metrô toda palavra ou expressão estrangeira vem acompanhada de um asterisco que remete para sua tradução, mais abaixo do texto principal. Assim, duas propagandas de empresas transnacionais:

by C&A*: par C&A[1]

 There’s no better way to fly* e Il n’y a pas plus belle façon de s’envoler[2].

Pouca coisa, e muita coisa. Medida simples, que considera o direito que tem o cidadão francês de receber em língua materna as mensagens veiculadas nos espaços públicos e, ainda, que conhecer um idioma estrangeiro é uma possibilidade, não uma obrigação. Povo colonizador, os franceses sabem do poder da língua nos projetos de domínio político.

Na estação Assembleia Nacional,[3] decorada com cartazes alusivos aos valores democráticos nos quais cabeças humanas estilizadas aparecem contornadas em negro sobre branco ou cores fortes, um texto rabiscado a carvão reclama do cerceamento de expressão: “Enquanto os poderosos e as propagandas dizem o que querem, eu não tenho esse direito”. Não consigo memorizar com exatidão a frase, demoro a pegar lápis e papel para anotá-la. Preciso passar por aqui de novo.

Assemblé Nationale é uma estação da linha 12. Inaugurada em 1910 com o nome de Chambre des Députés, Câmara dos Deputados, teve o nome modificado para o atual em 1989. Situada entre Concorde e Solférino, duas menções à liberdade, evoca também esse conceito. A Assembleia Nacional Constituinte preparou a Constituição de 1791, e proclamou, antes disso, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, apresentada à convenção por Olympe de Gouges, foi rejeitada.

 

Paris, 1° de janeiro de 2002.

Passei pela estação Assembleia Nacional. Os fundos dos cartazes são todos novos. E escuros. Mais difícil deixar gravado o recado anônimo. O outro, de toda forma, apagado para sempre.

No número 10 da place de la Concorde, está o hotel de Crillon. A mais famosa praça de Paris começou como praça Luís XV, passou a praça da Revolução, tornou-se praça da Concórdia, ganhou novos ares imperiais com o nome de Luís XVI, até retomar em 1830 o nome que mantém, e que expressa o desejo de paz e harmonia após o período do Terror da  revolução de 1789. O hotel faz esquina com a rua Boissy-d’Anglas, onde se encontra, um pouco acima da placa atual e preservada sob uma cobertura de vidro, a denominação anterior, de leitura ainda nítida no entalhe na pedra: Louis XVI.

 

Paris, 17 de janeiro de 2002.

No Hotel de Crillon, um dos mais famosos e luxuosos de Paris, me apresento a um dos funcionários, falando do encontro marcado com o professor Cândido Mendes de Almeida. Me sento, enquanto aguardo que Monsieur Almeida seja localizado. Nesta antessala de Versailles, um valete do rei vem logo informar que Monsieur já foi avisado de minha presença. Veste uma casaca negra e dourada, botões polidos e insígnias nas lapelas, nas quais pequenas chaves se cruzam em x e coroas sustentam um C de arabescos, que faz escorregar, pela menina de meus olhos, a palavra GUILHOTINA.

Vida provisória, a que oferece o métropolitain, em longos túneis, galerias, plataformas, comunicações bizarras, por vezes, entre estações. Usufruem desse status não apenas os indivíduos em trânsito, mas também aqueles expulsos da estabilidade pelas condições mais variadas, e sempre cruéis. Nos ângulos escusos das estações, mendigos e sem-teto buscam alternativa ao desabrigo cru do espaço livre das ruas. À noite, deixam-se ver de forma mais ostensiva, lembrete duro a quem passa apressado a caminho de casa.

 

Paris, 13 de fevereiro de 2002.

No metrô, o cardápio leitor é variado. Estico o pescoço para o vizinho ao lado:  Le sacré et le profane,[4] de Mircea Eliade. Me distraio bisbilhotando outros títulos, de repente Duroc, minha estação, quase perco a lapiseira, escorregam caderneta e guarda-chuva. Me abaixo, pego os dois e salto correndo. Faço a baldeação para Sèvres-Babylone, entro em outro trem, quase perco de novo a hora de saltar: penso no que escrever para meu genro Helcio, nas palavras que possam podem abraçá-lo na dor da perda de um irmão. Alcanço o essencial:

“Querido genro,

Nós te amamos. Por favor, cuide-se.”

Perturbada pela dor, começo a subir as escadas. Um violão, a melodia alegre e as moedas que não pagam o trabalho do artista, mas agradecem a voz da vida num dia de luto.

Algumas estações de metrô estão carregadas de história, com placas informativas, plantas e fotos de escavação; outras têm outdoors a instigar reflexões críticas, a demarcar linhas de tempo da história francesa; tão anônimas quanto os textos informativos, as manifestações individuais reivindicam o direito à formação de opinião.

 

Paris, 14 de março de 2002.

Por vezes, o dia oferece, logo cedo, uma cor política. Num banco de estação, um cartão traz em letras grandes e bem-feitas com esferográfica azul o recado:

“Com Jospin e seu bando, vamos quebrar a cara.”[5]

O cidadão ou cidadã valeu-se do verso de uma propaganda da cantora Alanis Morissette para deixar o recado convicto, em que exprime rejeição violenta ao candidato de esquerda à presidência da república. No retalho de subjetividade, a efetiva comunicação eleitoral.

 

[1] Em português: Por C&A.

[2] Em português: Não há melhor maneira de voar.

[3] No original: Assemblée Nationale.

[4] Há versão brasileira: O sagrado e o profano, tradução de Rogerio Fernandes, editora Martins Fontes, WMF.

[5] No original: “Avec Jospin et sa bande on va droit au mur ˮ.

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

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