* Por Paula Mousinho Martins *

Merleau-Ponty equipara a obra de Paul Cézanne à sua própria meditação filosófica. Ao dizer que a pintura de Cézanne “suspende os hábitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual o homem se instala” (“A dúvida de Cézanne”, 2004, p. 132), Merleau-Ponty expõe o projeto de sua própria reflexão ontológica. Se é verdade que o parentesco entre arte e ontologia extrapola a obra de Cézanne, estando presente em toda expressão estética que persiga “o nascimento das coisas, o vir a si do visível” (“O olho e o espírito”, 2004, p.41), em Cézanne, em todo caso, Merleau-Ponty encontra um exemplo privilegiado do pensador em ato: um inovador que revolucionou os cânones da pintura clássica  ao pretender, por uma aguda interrogação da materialidade e da expressividade da cor, atingir a textura do mundo em sua carnalidade, isto é, aquém de qualquer pressuposto ou “tese”. Cézanne quer revelar um mundo perceptivo originário anterior às “alternativas prontas” – sentidos x inteligência; visão x pensamento; natureza x composição; primitivismo x tradição (cf. “A dúvida…”, 2004, p. 128) – por isso sua pintura perfaz uma crítica à história da pintura análoga à crítica que Merleau-Ponty dirige às “filosofias do entendimento”.

As filosofias do entendimento (empiristas e intelectualistas) são os principais alvos da crítica de Merleau-Ponty, por se revelarem incapazes de compreender o fenômeno da expressão, particularmente da expressão estética, permanecendo cegas para o sentido da percepção, da linguagem e da arte.  Por trás do seu aparente antagonismo, intelectualismo e empirismo compartilham a mesma concepção dualista (ou substancialista) do significado, distinguindo de modo absoluto o signo da significação. Essa (in)compreensão decorre do fato de ambas as tradições manterem inquestionados seus próprios pressupostos, limitando-se, assim, a apenas “sobrevoar” seus objetos. Em outras palavras, permanecem alheias ao que Merleau-Ponty entende como a missão genuína da filosofia: remontar à experiência pré-objetiva ou ante-predicativa do mundo, prévia a qualquer postulado da ciência, do senso comum e da própria filosofia, cujo sentido profundo só os artistas e os pensadores radicais podem pretender trazer à expressão.

Arte e filosofia são expressões legítimas desse território germinal – também caracterizado por Merleau-Ponty como o ser “bruto” ou “selvagem” para salientar seu caráter pré-categorial. Esse ser “primevo” e indiviso, que ainda não sofreu cisões metafísicas, não pode ser confundido com um ente ou substância previamente dada e idêntica a si mesma, à qual se acessaria a partir de fora; tampouco é algo situado no passado, ao qual se desejaria em vão regressar. Antes, ele é o aqui-e-agora que sustenta toda forma de expressão. Uma vez que não é um objeto pré-dado, exige de nós criação para que dele tenhamos experiência. Ao longo de toda a sua obra filosófica, mas principalmente em sua fase final, Merleau-Ponty buscou trazer à luz o sentido dessa experiência genuína, condição de possibilidade de todas as experiências, enraizada na percepção e, portanto, no corpo encarnado – não o corpo-máquina construído pela metafísica dualista do entendimento, feixe de órgãos ligados por relações de causalidade, mas nosso corpo vivente aqui-e-agora, simultaneamente senciente e sentido, reflexividade operante desde o grau mais elementar da experiência. Esse corpo rejeita definir-se com o vocabulário excludente de sujeito e objeto, mente e corpo, espírito e matéria etc.

Foi essa experiência encarnada, anterior a todas as clivagens teóricas, que Cézanne procurou intensamente pintar, daí seus quadros darem “a impressão da natureza em sua origem”. (“A dúvida...”, 2004, p. 132). Cézanne pinta o mundo como visto por um olho desabituado, que ainda não adotou nenhuma tese acerca do que vê.  “Ele fala como o primeiro homem falou e pinta como se jamais se houvesse pintado” (Idem). Ao afirmar que “queria pintar a fonte impalpável da sensação” (Idem), Cézanne resume, com a profundidade própria a um artista-pensador, a difícil e incerta natureza de sua operação expressiva. Merleau-Ponty a define como um “tatear em torno de uma intenção de significar que não dispõe de nenhum texto para se guiar (“A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, 2002, p. 42). O sentido inédito pretendido pelo artista será, pois, sempre diáfano, ambíguo, impreciso, em comparação com a denotação fixa e consolidada de um conceito ou categoria. O exemplo de Cézanne é a prova cabal do quanto pode haver de arriscado, imprevisível e improvável em se pretender atingir a expressão e a comunicação na arte: “É como um passo na névoa, que ninguém pode dizer que conduz a alguma parte” (“A dúvida…”, 2004, p.135). A insegurança e a solidão de Cézanne não se explicam por seu temperamento depressivo e esquizoide, mas pela intenção de sua obra (cf. Idem).

Intenção, sentido, significação, expressão – sem esses termos seria de fato impossível nos referir à especificidade das palavras e das obras de arte, aqui entendidas como signos de uma linguagem. Algo extravasa a materialidade visível do meio significante, conferindo-lhe um conteúdo “espiritual” invisível – momento em que o fenômeno físico (uma pincelada de tinta sobre a tela, uma determinada articulação sonora) transforma-se em expressão estética dotada de sentido. Algo é emitido e captado que só pode formular-se na concretude mesma da obra, mas “aquilo que o artista quis dizer e nós podemos compreender” não se encontra objetivamente em parte alguma. Tanto na obra de arte quanto na palavra, há um excesso que se sobrepõe às intenções deliberadas, mas que não pode ser visto como uma “segunda causalidade” acima dos acontecimentos.

Os filósofos do entendimento sempre enfrentaram impasses e paradoxos ao tentarem descrever a articulação entre o signo e a significado da operação expressiva, porque interpretam tal articulação de forma disjuntiva, isto é, como uma alternativa entre opostos que se excluem, contradição lógica. Essa interpretação é reforçada por um outro preconceito estrutural do entendimento: a suposição de que o pensamento opera por representação, ou seja, pela capacidade de “mapear”, por espelhamento ou confrontação, estados de coisas que o transcendem absolutamente.

À luz do código da representação, a operação expressiva não passa da tradução de um texto previamente dado em separado, um acontecimento sensível que apenas veicula um acontecimento inteligível, vestimenta material de ideias imateriais. Ora, essa forma de pensar inviabiliza a própria comunicação humana pois, quando as significações são interpretadas como “objetos mentais”, nada pode ocorrer de efetivamente comunicativo entre um locutor e um ouvinte, já que a fala do primeiro apenas desperta no segundo conteúdos mentais que este já possuía de antemão. Do mesmo modo, as significações inéditas produzidas pelo artista, a partir dos novos arranjos que ele impõe ao material empírico disponível no momento da criação, não poderiam preexistir à sua formulação empírica, alojadas na “interioridade mental” do criador, sob pena de perderem, juntamente com todo “ineditismo”, seu valor estético. Esse problema desaparece, todavia, quando compreendemos que signo (sensível) e significação (inteligível) não podem jamais se distinguir absolutamente sem deixarem de ser o que são, ou seja, sem abandonarem a especificidade que os distingue, um sendo “absorvido” na substância do outro.

Não seria exagero afirmar que Merleau-Ponty teve um único intuito na vida: demonstrar que não há divórcio possível entre sensível e inteligível, signo e significação, corpo e mente, e que tais separações, longe de retratarem a natureza última das coisas, resultam da postura objetivista (positivista) de um tipo de pensamento que só conhece soluções alternativas, conceitos puros que se excluem. Nessa tarefa crítica, a análise do fenômeno da expressão desempenha papel indispensável, ao revelar que “o sentido é imanente ao sensível”, “a palavra não é um acompanhamento exterior do pensamento”, enfim, que todos os opostos contraditórios assumidos pelo pensamento filosófico ao longo de sua história, em todas as suas variações possíveis[1], não passam de momentos abstratos ou “recortes” de um tecido ontológico prévio. Nessa dimensão originária de experiência, o ser se revela em estado bruto, aquém dos dilemas, impasses e contradições que minaram a filosofia do entendimento desde que Parmênides interpretou o ser como absoluta positividade. A partir desse paradigma inaugural, o ser ou comporta tudo, ou não é nada. A ideia de um ser infinitamente positivo decorre de uma alternativa – e, portanto, de uma antinomia irredutível – entre ser e não-ser. O que era apenas indefinição e copertinência ganha a forma imóvel, excludente e binária do conceito. A partir dessa abstração primeira, o que é passa a opor-se absolutamente ao que não é, e assim permanece fixado para a eternidade.

Nascem daí as metafísicas da substância, tributárias da ideia parmenidiana e contraditória do ser como presença, vale dizer, como algo que só pode ser o que é – plenitude, positividade, homogeneidade, identidade consigo mesmo etc. – sobre o fundo ou em contraposição ao seu oposto imediato, o não-ser ou o nada. Graças a essa compreensão “purista”[2] e positivista do ser, avessa a misturas e mediações, a física e a psicologia puderam definir com clareza suas áreas de atuação; mas clareza é justamente o que falta às suas pressuposições. O maior exemplo é dado pelo pensamento purificador por excelência de Descartes: ao mesmo tempo vedado de conceber qualquer tipo de cruzamento entre ser e nada, mas condenado a só poder pensar um lado trazendo a reboque o pensamento do outro. A filosofia cartesiana é estruturalmente “minada pela referência a um nada o qual ela afirma necessariamente que não é, mas sobre o qual não para de pensar” (A natureza, 2000, p. 206).

Toda negação pura é afirmação pura, pela simples razão de que é negação absoluta de si mesma, positividade invertida. Merleau-Ponty quer resgatar a nulidade constitutiva do não-ser, perdida pelo pensamento do entendimento, para que o não-ser persevere no que lhe é mais próprio, a saber, discernir-se do ser, deixando de ser sumariamente identificado com este e, portanto, por ele anulado. “Tudo é obscuro quando não se pensou o negativo, tudo é claro quando pensado como negativo” (Notes de Cours 1959-1961, 1984, p. 73). Presas à obscuridade do positivo absoluto, tanto a concepção do “negativo puro” quanto a do “positivo puro”, em sua tendência comum a só tomar por tema aquilo que obtêm por purificação, cegam-se diante da clareza do negativo como o olho natural se cega ao fitar diretamente o sol. Quando, a partir do nada, proclamam que não há senão ser, distanciam-se do concreto, desconsideram as articulações do todo, compensam uma abstração com uma contra-abstração.

Ser e não-ser precisam um do outro para se manterem separados; sua dissociação necessariamente os articula como adversários e cúmplices dentro de uma mesma arena ontológica. Eis o tema crucial da obra inacabada O visível e invisível de Merleau-Ponty: o ser é prenhe de não-ser e de possível, não é apenas aquilo que é. Em outros termos, ser não significa permanecer na identidade. A segregação do ser e do não ser (consequentemente do em si e do para si, do visível e do invisível etc.) nunca estará finalmente acabada. As “fissuras” do tecido ontológico originário, suas diferenciações e cisões intrínsecas, estão em permanente devir e o principal erro das filosofias do entendimento foi justamente terem partido de uma oposição já concluída. Desde então se tornaram incapazes de responder ao problema que elas mesmas criaram: como conceber, sem contradição, uma matéria bruta e inerte, objetiva e em si, que transporta um significado subjetivo e invisível (para si)?

A crítica às filosofias do entendimento e as análises da experiência da arte e da pintura se complementam e retroalimentam na obra de Merleau-Ponty porque são movidas por um interesse comum: recuperar a dignidade ontológica do sensível, reduzido pela tradição a um elemento cego e opaco, em si mesmo destituído de expressão. A pintura torna concreta ou factível a copertinência entre visível e invisível que o entendimento está impedido de compreender, porque ela não se presta à interpretação substancialista do sensível: a massa pictórica não pode ser reduzida a uma mera coisa extensa, desprovida de significado, nem este pode ser entendido como uma entidade inextensa ou mental que vem acoplar-se misteriosamente ao objeto artístico empírico. O gesto criador e seus produtos significam para além de sua existência de fato, valem mais do que sua mera presença, exprimem tanto pelo que mostram quanto pelo que não mostram. Eles são adventos de sentido, e não simples eventos fechados em sua diferença, como os fenômenos matematicamente interpretados da ciência da natureza.

A mancha de tinta sobre a tela ou o papel, por mais ínfima e aparentemente despretensiosa que seja, tem um efeito necessário sobre o conjunto, é suficiente para alterar o sentido do quadro. Um certo segredo guia a escolha das cores e da composição, fazendo-as transcenderem, quer dizer, darem lugar à aparição de algo que carece de um mínimo de matéria para se manifestar. A matéria pictural é intrinsecamente expressiva, não aceita reduzir-se a uma hylé passiva “à espera” de um esquema ou ato intencional exterior para “animá-la” com um significado. O que dá sentido a uma pintura é a articulação espontânea entre seus “núcleos radiantes” e suas “zonas de obscuridade”. A visibilidade da obra de arte comporta invisibilidade, mas não a invisibilidade de um “objeto não visto” (oculto), positividade localizada alhures, mas como condição de possibilidade do visível: “não à margem ou em alguma zona de não-visão, mas em toda extensão do que vemos como aquilo que a instala” (Visível e invisível, 1984, p. 73 grifo nosso). O maior mistério do trabalho do pintor é essa capacidade de tornar visível o invisível que medeia e liga as coisas, ou por outras, seu poder de flagrar a estrutura do visível.  “A pintura é uma espécie de filosofia: apreensão da gênese, filosofia totalmente em ato. O pintor sabe muito, mas só o sabe a posteriori” (Notes…, 1996, p. 58)[3]. Trata-se de “uma filosofia figurada da visão e como que sua iconografia” (“O olho…”, 2004, p. 24): pensamento empírico, sem a priori.

Uma vez abolida a oposição entre fato e essência, expressão e exprimido etc., uma cor jamais será simplesmente uma cor, mas sempre a cor de certo objeto dentro de um certo campo de objetos relacionados entre si. Não existe o “azul enquanto tal”, entidade abstrata, e sim o azul deste tapete, onde a manifestação da cor não existe sem a manifestação da textura lanosa do tecido que a instancia: há um íntimo envolvimento da experiência da visão com a experiência do tato, e é impossível determinar exatamente onde começa o domínio de uma e acaba o da outra. Os sentidos não se apresentam de forma justaposta em nosso corpo: não concorrem separadamente na experiência total do mundo, antes se entrecruzam e se mostram indissociavelmente ligados na unidade de um corpo encarnado e motriz. Por isso não parece legítimo dizer que as cores “sugerem” ou “evocam” as sensações tácteis.

A pintura amplifica a experiência da visão, caracterizada por Merleau-Ponty como uma espécie de delírio: ver é um estranho “ter a distância”, posse paradoxal das coisas que o pintor quer materializar no mundo visível. (cf. “A dúvida…”, 2004, p. 130). Mas não é a representação de um espetáculo posto diante de seus olhos que o pintor quer reproduzir na tela; na sua missão de ampliar a visibilidade, estendendo-a inclusive aos meios pelos quais a própria pintura se realiza, o pintor almeja que tudo se torne visível a partir de uma visão que se faz no meio das coisas. “O pintor nasce nas coisas como por concentração e vir a si do visível” (Notes…,1996, p.170). Como todo vidente, o pintor está imerso no mundo por um corpo ele mesmo visível e móvel; sua visão depende estritamente dos movimentos desse corpo, a começar pelo movimento dos olhos. Por essa razão, o olhar do pintor jamais se “apropria” do visível, apenas dele se aproxima. O corpo do pintor não é um acessório, mas tampouco pode ser reduzido a um “instrumento” para a realização de sua arte. O corpo do pintor está na própria pintura, germina e mistura-se com ela. O enigma da pintura é o próprio enigma do corpo: reflexividade do sensível, do senciente e do sentido, do vidente e do visível. Um espírito jamais poderia pintar.

“A paisagem pensa-se em mim e eu sou a sua consciência”; com essa afirmação, proferida numa entrevista com Joachim Gasquet[4], Cézanne mostra ter plena consciência de sua tarefa ontológica e crítica. O pintor-filósofo almeja “germinar com a paisagem”, como assinalou Merleau-Ponty. É compreensível, assim, que Cézanne dissesse não querer pintar “quadros” – representações – e sim fragmentos da natureza. “As coisas entram em mim e não o contrário” (“A dúvida…” p. 132): é a própria montanha Santa Vitória que pede para ser vista e interrogada. A obrigação do pintor é apenas “acompanhar” seu brotamento visível, a “intumescência” da montanha em toda a sua espessura, ou seja, em todas as suas modulações cromáticas. Cézanne recusa-se a compreender a cor como “superfície colorida”; a cor é dimensão do visível e não um “atributo segundo da forma espetáculo, simulacro das cores da natureza” (Cf. Notes de cours… p.181). A cor cézanniana é condição de possibilidade do espetáculo da pintura, único acesso possível à voluminosidade do mundo: sua profundidade. A crítica da profundidade geométrica, implícita na pintura de Cézanne, não implica, pois, uma natureza “chapada”. É o próprio pintor quem diz: “A natureza não está na superfície, está na profundidade. As cores são a expressão, na superfície, dessa profundidade. Elas mostram as raízes do mundo”.[5]

Vale notar, entretanto, que o objetivo prioritário de Cézanne era garantir massa e volume aos corpos; a profundidade espacial surge como um subproduto dessa procura. O interesse do pintor era primeiramente restabelecer a solidez dos objetos, dissolvida pela luz impressionista, sem abandonar, todavia, as conquistas impressionistas, isto é, sem voltar a uma noção tradicional de espaço e de corpo. O método impressionista de registrar variações de luz é substituído por um modo de indicar variações cromáticas na direção planar das superfícies sólidas. A pincelada de Cézanne é mais estruturante e “solidificante”, menos projetual que a dos impressionistas. Os pequenos retângulos de cor justapostos pelo pincel, por não terem a intenção de “figurar” volume e solidez, têm o efeito de trazer o quadro para a superfície, fundindo-o à superficialidade da tela. Isso conduziu Cézanne a um tipo planar de pintura como não se via desde a Idade Média, e que proveu aos cubistas os recursos necessários para as suas novas descobertas[6]. O espaço virtual ganha uma solidez semelhante à das coisas — condição sine qua non para o surgimento do continuum cubista, já que para o cubismo era preciso que o espaço ganhasse algo da solidez dos objetos (e vice-versa) [7].

Um mundo pintado em sua verdade é um organismo pleno de cores – massa contínua, sem lacunas –, onde o desenho de cada coisa deve resultar tão-somente da cor. Os limites dos objetos aparecem exclusivamente pelas vibrações cromáticas, pois “quando a cor está em sua riqueza, a forma está em sua plenitude” (“A dúvida…” 2004, p. 132). Cézanne renuncia ao contorno (desenho de uma linha delimitadora dos objetos) porque este não pertence ao mundo visível e sim à geometria. Nesse processo genético, orgânico e cromaticamente expressivo, onde “a massa colorida não está contida nos limites estreitos do desenho e o dinamismo do todo acarreta a imprecisão dos detalhes” (Idem), a imagem pictural como que se satura, liga-se a outras imagens, reequilibra-se e, enfim, “tudo chega à maturidade ao mesmo tempo” (Idem). Cézanne não quer separar as coisas que aparecem de sua maneira de aparecer; não estabelece um corte entre os sentidos e a inteligência; quer pintar as coisas em vias de se formar, a ordem nascendo de uma organização espontânea.

Se nas telas de Cézanne os seres se apresentam deformados, não-familiares, e a profundidade não se assemelha à “natural” – os “objetos transidos parecem hesitantes como na origem da terra” (“A dúvida…”, 2004, p. 132) – é porque o pintor persegue a perspectiva vivida e não a construída pela ciência geométrica, que pacifica e domina. A perspectiva clássica (geométrica) imobiliza a perspectiva vivida e constrói a imagem de um mundo em si, “geometral de todas as perspectivas”. Ela não é uma lei de funcionamento da percepção e sim uma das maneiras inventadas pelo homem de projetar diante de si o mundo percebido – e não “decalcá-lo”, como se costuma pensar. A perspectiva é uma tradução da percepção do mundo segundo leis sistemáticas, que parece refletir fielmente nossa visão, mas na realidade não oferece uma visão humana, e sim o conhecimento que pode ter da visão humana um deus não mergulhado na finitude (cf. Notes… p.180). Suas regras são uma interpretação facultativa do mundo, não porque este último as desminta, mas porque não existe nenhuma regra a priori. Com a instituição da “perspectiva planimétrica”, o mundo vivido desaparece e com ele a simultaneidade ou coexistência, bem como a rivalidade entre os objetos diante de meu olhar. A profundidade instaurada pelo ponto de fuga arbitra o conflito entre as coisas, torna-as compossíveis num único plano porque as dispõe numa única escala de grandeza, onde a multiplicidade das visões locais se extingue em favor de um único olho fixado e imobilizado.

A perspectiva geométrica é um segredo técnico que torna o pintor capaz de representar a realidade de uma única e mesma forma para todos os seres humanos. É a realização de um mundo dominado. Contudo também é inegável que os grandes pintores clássicos, “cedendo ao seu abençoado demônio”, são capazes de acrescentar novas dimensões a esse mundo seguro de si, “fazendo vibrar nele a contingência” (“O olho…”, 2004, p. 23). Cézanne pode ser considerado um clássico que, ao interrogar a cor e a visualidade com uma radicalidade raramente encontrada na história da pintura, não só foi pioneiro na derrubada do “império da perspectiva”, como materializou o que há de mais improvável e incerto na tentativa de expressar a contingência; algo que por princípio não se deixa dominar.

 

Referências bibliográficas:

Merleau-Ponty, M.  O visível e invisível. São Paulo: Perspectiva, 1984.

—————–          Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

—————–          Notes de cours 1959-1961. Paris: Gallimard, 1996.

—————–           A natureza. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

—————–          A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

—————–          O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

Greenberg, C.       Arte e cultura. São Paulo: Ática, 1996.

Richir, M. & Tassin, E. (org.).  Merleau-Ponty: phénoménologie et expériences. Grenoble: Jerôme Millon, 1992.

 

[1]A lista de opostos é inesgotável: psicológico x fisiológico, mente x corpo, universal x particular, forma x matéria, essência x fato, esquema x conteúdo, sujeito x objeto, para si x em si, espírito x natureza, res cogitans x res extensa etc. etc.

[2] “É próprio de uma filosofia do entendimento só pretender tomar por tema aquilo que obtém por um processo de purificação” (A natureza, 2000, p 206.)

[3] Merleau-Ponty continua: “A pintura não é abstrata, dizia Klee, mas absoluta (i.e. radical), reencontrando uma posição do ser incompreensível para a ciência e o cotidiano, i.e, já estar pressuposta em toda ‘explicação’” (Notes.., 1996, p. 58).

 

[4] Conversation avec Cézanne, Paris, ed. Macula, 1978, citado por Michel Haar no artigo “Peinture, perception, afféctivité”. In M. Richir & E. Tassin ,1992, p. 112.

[5] Idem, p. 112.

[6] Cf. C. Greenberg, Arte e Cultura, 1996, pp.69-72.

[7] Devo a indicação do livro de Greenberg, citado na nota anterior, bem como a compreensão do legado de Cézanne ao cubismo, às aulas do Professor Rodrigo Naves.

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Paula Mousinho Martins é formada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1986) e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994). É professor associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: fenomenologia, filosofia da mente, hermenêutica e linguagem.

 

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Imagem: ‘A montanha Santa Vitória’, 1897, óleo sobre tela, 65 x 81cm

 

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