* Por Nilma Lacerda *

Na tela de meu computador, o São Francisco desce. O Atlântico espera por ele, no abraço enganoso de quem toma para si as águas, as canções barranqueiras, as figuras de proa, a dor dos vapores parados, as barrigas de vermes das crianças nuas, a terra sem osso a rolar na indiferença pública e na cobiça privada, os folguedos, a serpente do tempo mordendo a cauda e estes bordados, estes bordados que me vêm de Pirapora, na sabedoria e revolta das mulheres incumbidas de adoçar o mundo na força de agulhas, fios e cores.

Vivido em Pirapora em 7 de janeiro de 2001, quando foram tomadas as notas e realizado um primeiro esboço. Redação final em junho, preparando texto em comemoração aos 500 anos do encontro do rio São Francisco por Américo Vespúcio.

Em Pirapora, na casa de esquina de Antônia Dumont e Demóstenes Vargas, as janelas abertas não negam o perfume interior aos passageiros dos ônibus interestaduais que cruzam a rua para chegar à rodoviária. Satisfaço a curiosidade antiga de saber como é, por inteiro, o espaço vislumbrado em retalhos pelo olhar curioso de quem passa lá fora. Estou agora dentro da casa, sei os móveis, os quadros nas paredes, a porta sempre aberta, a mesa no alpendre, e sou espiada talvez, eu, que sempre espiei. A casa está em silêncio, a garotada dorme ou foi para a rua, a mesa renovou-se para o café da tarde, o sol ilumina a parede da casa em frente, ressalta as flores do mamoeiro mais além. Na sala da frente dona Antônia cisma, na grande copa que serve às refeições eu escrevo, e num dos quartos Ângela se recupera da folia de ontem em que os Santos Reis trouxeram a bandeira, a alegria, a força da solidariedade e a dureza dos limites.

Pirapora me chamou para um fim de ano diferente, em que esta festa de Santos Reis, organizada por Ângela Dumont, Imperadeira do grupo chefiado por Barracão, é o ponto alto. Ela fez a promessa, arrecadou roupas, comidas, bebida, violinhas. Concentrou em torno de si densa energia, festiva e ancestral. Na manhã de Reis, os sacos de arroz, de feijão, o óleo e as batatas, o porco que não vi matarem na Fazenda Mangueira entram pela porta da sala, vão para a cozinha dos fundos. Chegam as cozinheiras, logo a comida cheira pela casa, cresce dentro das panelas e tigelas; a mesa de café e pães de queijo vira um campo florido, na primavera ofertada pelo papel crepom, que toma ainda o presépio e as janelas. Excitada, a casa vive a expectativa de um reinado de fé e folia. “Evêm eles!”, o grito irrompe no final da tarde. Os palhaços evêm na frente e entram, investigando a devoção para a festa poder acontecer. A casa é devota, é generosa e está limpa de herodes. A folia entra para adorar o Menino Deus. Têm início os cantos, as rezas, a bandeira levantada. A devoção é grande, e mesmo Demóstenes, que não é homem de rezas, está na sala e parece acompanhar compungido o ofício.

Este caldo de meu país, lido e observado tantas vezes, mas apreendido de relance em Bom Jesus da Lapa, na viagem pelo São Francisco, faz-se da religiosidade tradicional – um dos elementos responsáveis pelo atraso e violência da sociedade brasileira – e de suas reinvenções renitentes. Acabadas as orações que caracterizam a peregrinação e chegada dos Santos Reis do Oriente à manjedoura em que Jesus nasceu, é servida uma rodada de refrigerante, vinho, doces, balas. A festa com distribuição de comida vai acontecer no bairro de periferia onde vive a maior parte dos foliões: a família reconhece ser impossível fazê-lo aqui, na rua, junto à própria casa. A preocupação com a segurança é uma constante, Redelvim, seu Demóstenes, Duda procuram se assegurar de que o pedido de policiamento foi feito, não vá a festa virar guerra. A comunidade em que residem é barra pesada, diz Ângela, alto o índice de gravidez na adolescência.

Recebidos no centro comunitário como se fôramos nós os reis, os melhores lugares, os melhores pratos e talheres, somos o preâmbulo da festa. Não ficamos muito tempo, avisados da hora certa de ir embora. O pau comeu pouco depois de nossa saída, soubemos mais tarde, e me pergunto se alguma coisa aconteceu com Iara, seus catorze anos, sua gravidez.

Essa não é uma festa da Igreja oficial, é resistência, aglutinação social. Um trabalho político consistente pode ser concebido nesses núcleos, um trabalho de leitura e escrita – poderia sonhar -, e ainda não sonho. Comovida, aprendiz, minha pele é de conta de rosário, ranço de nariz de criança, tafetá barato e lantejoula. Devolvo à mãe o bebê que segurei no colo para que pudesse rezar sossegada, me levanto para ir ver bem de perto a bandeira. O bordado à mão é tosco, o tafetá é azul escuro, a bandeira tem franjas, tem brancos e dourados. Tem recados:

Santos Reis

 Te peço que ilumine todos os meus caminhos da minha família te que quase ilumine uma conversa entre eu e meu namorado. Amém.

Me ilumina Santos Reis que este ano de 2001 não seja tão ruim daquele de 2000. Resolve todos os meus problemas. Amém.

Em Pirapora, parece, os Santos Reis mais leem que escutam.

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil

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