* Por Luiz Antonio de Assis Brasil *

Se você morre de amores por sua história, pense um pouco

Como acontece a todos os ficcionistas com certa experiência, sou procurado por pessoas que me trazem uma boa história, seja como sugestão para meu próximo romance, seja porque elas próprias querem escrevê-la e, de alguma forma, acham importante a minha opinião.

Thiago — com h, como ele sempre esclarece —, meu ex-aluno da Oficina de Criação Literária, jovem com invejável quantidade e qualidade de leituras, além de nível cultural superior à média, tinha na gaveta um livro de contos, dos quais eu havia lido alguns e achado bons. Procurou-me porque estava com uma história na cabeça, mas tinha dúvidas se ia funcionar como romance. Gostei disso, porque ouvir os outros sobre nossos projetos literários não significa humildade, mas, sim, inteligência: Flaubert fazia isso com seus escritos. Louis Bouilhet, crítico refinado e atento, era seu leitor prévio e também conselheiro em todas as dúvidas da escrita. Flaubert escutava-o como a um oráculo.

Thiago me contou sua história, levando nisso uns vinte minutos. Ela envolvia complexas relações entre estudantes de pós-graduação em letras e tinha como personagem central um jovem, Vladimir — Thiago tem ascendência eslava, daí o nome —, provindo de uma pequena cidade. Não lembro os pormenores, mas se tratava de uma narrativa cheia de ação. Um capítulo se passava num bar noturno invadido por assaltantes, outro num hospital — e o caso de amor daí surgido terminava entre mil amarguras no campus universitário. Perguntei se o relato se inspirava numa experiência real. Sim, ele mesmo tinha vivido aquilo. Fiquei alerta, porque vi nisso o prenúncio de um problema: na mão de iniciantes, a transformação de pessoas reais em personagens é empreitada temerária (estudaremos isso no próximo capítulo). O ponto que agora nos interessa é que Thiago estava empolgado apenas com a história. E trabalhara com aplicação: previra todos os acontecimentos, os espaços, a cronologia, e me expôs um esboço de organização e de divisão em capítulos. Só precisava decidir se escreveria em terceira ou primeira pessoa. Ante o meu silêncio, resolveu ser direto:

— Diga com sinceridade: pode dar um bom romance?

Enquanto procurava o que dizer, dei a resposta que nem todos estão preparados para escutar:

— Depende. — E propus: — Vamos conversar amanhã? — O que ele, dobrando a ansiedade, aceitou.

Eu experimentava uma sensação que conheço muito bem e me leva sempre a um sentimento antagônico: por um lado, estava satisfeito porque Thiago tinha organizado sua história, uma providência que o punha a salvo das improvisações, sempre fatais para quem está começando. Por outro, me preocupava que ele se esquecesse de algo fundamental: uma boa história não resulta, por si mesma, num bom romance.

Há romances “sem história”?

Uma história interessante ajuda, mas não é indispensável. Prova disso é que existem narrativas sem reviravoltas ou eventos espantosos e que, no entanto, se consagraram. Podemos achar facilmente exemplos em clássicos da literatura internacional e brasileira, como se vê nas novelas Um coração singelo (1877), de Flaubert, Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, e Crime e castigo (1866), de Dostoiévski. Nas três, não se verificam muitos incidentes agitados ou cenas feéricas, mudanças de cenário, nem mistérios a serem decifrados. No caso de Um coração singelo, trata-se de uma empregada doméstica e sua vidinha. Felicidade nos é apresentada assim, ao final do primeiro capítulo:

Ela [Felicidade] se levantava logo ao alvorecer, para não perder a missa, e trabalhava sem descanso até à noite; depois, terminado o jantar, a louça em ordem e a porta bem fechada, escondia a acha de lenha sob as cinzas e adormecia em frente à lareira, com o rosário na mão. Ninguém se mostrava mais obstinado no regatear. Quanto ao asseio, o polimento de suas caçarolas deixava desesperadas as outras criadas. Poupada, ela comia devagar, e com o dedo juntava, na mesa, as migalhas do seu pão — um pão de quase seis quilos, cozido só para ela, e que durava vinte dias.

Em todas as estações do ano usava um lenço de chita preso às costas por um alfinete, uma touca a ocultar-lhe os cabelos, meias cinzentas, um saiote vermelho, e por cima da blusa um avental com babador como as enfermeiras de hospital.

Seu rosto era magro e sua voz aguda. Aos vinte e cinco anos, parecia ter quarenta. Dos cinquenta em diante já não demonstrava nenhuma idade; — e, sempre silenciosa, o talhe certo e gestos comedidos, parecia uma mulher de madeira, que funcionasse automaticamente.

O que o leitor espera que aconteça nessa novela senão uma historinha sem grandes lances? Pois é justo o que acontece. As ações externas, visíveis, contadas de maneira objetiva, não entusiasmariam a ninguém, e a morte de Felicidade, embora constitua uma das cenas mais belas de toda a literatura do Ocidente, não tem nenhum drama excepcional. Em suas últimas palavras pergunta por Lulu, outrora seu papagaio de estimação, agora já morto e empalhado. Tudo muito simples, corriqueiro até, mas, nas entrelinhas, nos revela uma interioridade colonizada pela sublimação erótica e pelos devaneios afetivos, algo capaz de nos dominar até a raiz da emoção quando nos apercebemos de tudo o que acontece com aquela alma anódina — apenas na aparência. Mas imagine que você tem um sobrinho adolescente e deseja incentivá-lo a ler Flaubert. Se não quiser receber de volta um olhar congelado, não use a estratégia de resumir para ele os eventos de Um coração singelo.

No caso de Brás Cubas, os acontecimentos são tão ralos que temos de prestar muita atenção se quisermos reter algo na memória. Como diz o próprio Brás, “um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia”.  Nem tragédia, nem comédia. Nascido na elite social, faz viagens de estudos para a Europa, nunca se casa, mantém alguns tolos relacionamentos sentimentais, dedica-se sem paixão à vida política e termina envolvido com a criação falhada do Emplasto Brás Cubas, panaceia destinada a curar a humanidade. Até sua morte é patética: sucumbe de uma banal pneumonia ao ficar exposto à chuva. Se pedirmos a um leitor de Machado que descreva a história dessa novela, poucos se lembrarão de todos os eventos, permanecendo nas grandes linhas biográficas de Brás Cubas. Mas ninguém esquece sua personalidade, nem a ironia e o desencanto que existem nas suas célebres frases: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis” e, ao final, “Não tive fi lhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

E quanto a Crime e castigo? Tente lembrar em minúcia os acontecimentos narrados nesse calhamaço de centenas de páginas; passado o impressionante episódio do assassinato, é inevitável que nos percamos no labirinto de nomes de pessoas, de repartições policiais, de autoridades de todos os níveis, de amigos e inimigos, e nas intricadas movimentações das tantas personagens que assombram o texto. Aliás, alguns eventos são reiterados e, quanto aos espaços, Dostoiévski ora os descreve até o mais ínfimo detalhe, ora deixa-nos sem saber bem onde estamos. Mas da psique de Raskólhnikov e de seu tormento, sua angústia a debater-se com a culpa, disso todos sabem, pois é a essência dessa novela, que se consagra como uma obra-prima da literatura russa, capaz de nos impressionar até hoje.

Se nessas três narrativas perdemos o fi o da meada da sucessão dos fatos, seus personagens dominantes, entretanto, marcam-nos de modo indelével, e isso já desde o título: Um coração singelo é o coração de Felicidade; Memórias póstumas de Brás Cubas é explícito ao referir- -se ao personagem central; Crime e castigo tem como alvo o dilema moral de Raskólhnikov. A lista das obras literárias que levam no título o nome de seus personagens centrais encheria as páginas deste livro: Tom Jones, Quincas Borba, Iracema, Clarissa, Sargento Getúlio, Madame Bovary, Gabriela, cravo e canela, O grande Gatsby, Tonio Kröger, Os irmãos Karamázov, Macunaíma — e tantos outros. Em Os sofrimentos do jovem Werther (1774), Goethe vai mais longe; não apenas anuncia que o herói se chama Werther, mas também que a história gira em torno de seus sofrimentos. Tudo isso é significativo, não?

Se você leu um ótimo romance há dez anos, logo recordará, com força e vivacidade, do personagem central e do conflito, mas irá amaldiçoar a própria memória, pois não consegue se lembrar da sequência dos eventos. Deixe a memória em paz e agradeça-lhe, porque ela gravou o que de fato interessa.

Tal como acontece no cinema, em que muitos espectadores fixam-se no ator/atriz central e são capazes de ir até o inferno para vê-los em outra atuação, assim também é o personagem de ficção na literatura: ele valerá pela qualidade de sua consistência. Já se disse de Ricardo Darín, Tom Hanks e Judi Dench que eles conseguem salvar qualquer história ruim. Basta entrarem em cena.

Tenho certeza, contudo, de que você começou a ler vários romances que abandonou depois de vinte páginas, e uma das causas deve ser a desconfiança: “Não acredito em nada disso que estou lendo, nada faz sentido”.

Alto lá! Não é do romance que você duvida, é o personagem que não convence. Ao contrário, nas narrativas de Flaubert, Machado de Assis e Dostoiévski, são os inesquecíveis Felicidade, Brás Cubas e Raskólhnikov que transformam as histórias em alta literatura e, portanto, fazem com que essas obras permaneçam conosco durante muitos anos após a leitura. Veja bem, em Um coração singelo, Crime e castigo e Memórias póstumas de Brás Cubas, não queremos conhecer, em minúcias, o final. O que se deseja é saber o que acontecerá com esses personagens que nos cativaram. Mais do que as reviravoltas do enredo, o que deixa marcas duradouras no leitor é o acesso à vida do personagem, às suas debilidades e carências.

E os romances de perder o fôlego?

Impossível ignorar, porém, certos livros compostos de pura ação — e só ação, só história — e que até nos fazem passar momentos divertidos debaixo de um guarda-sol de praia, mas dos quais nunca mais nos lembraremos. Inserem-se aí as dezenas de romances de Paul Féval que vitimaram a pobre Luísa, de O primo Basílio (1878), bem como tantos outros, inclusive de ficcionistas ainda vivos — sim, esses mesmos em que você está pensando —, que duram uma temporada e no ano seguinte são substituídos. Esses romances impressionam? Sim, por alguns minutos e exclamações murmuradas, antes que sejamos atraídos por um bom mergulho no mar para refrescar a cabeça. E seus personagens são profundos? Sabemos a resposta: eles têm a profundidade de um holograma. Mas e se fossem de fato profundos? Nesse caso, seria um bom motivo para dar um grande prêmio ao autor, que conseguiu a proeza de unir ações incessantes com personagens convincentes, como acontece em O tambor (1959), de Günter Grass — que, a propósito, ganhou o Nobel.

E vamos logo dar o crédito a quem merece, isto é, ao personagem

Thiago retornou — talvez tenha dormido mal, mas não era essa minha intenção —, e eu não lhe disse que deveria jogar no lixo seu projeto de romance. Ao contrário, afirmei que ele tinha uma boa história para contar, e não menti. Gostou de escutar. Afinal, estava seduzido por sua capacidade de inventá-la, gastava seu cérebro nisso. Não precisar descartá-la era mesmo uma boa notícia. Suavizei ainda mais o problema: quando ele escrevesse o romance, poderia utilizar a maioria dos eventos previstos. Bastaria tomar uma providência: mudar a perspectiva, jogando luz sobre o personagem. Para isso, pedi que esquecesse um pouco a história e pensasse no personagem que iria provocá-la. Ele, já noutro mood, perguntou:

— Mas como “provocar”? Tem aquele momento em que Vladimir está no bar e os assaltantes entram, dão um tiro no proprietário e começam a roubar todo mundo. Vladimir não provocou nada disso.

Logo intuí: eu tinha dado um salto muito grande ao usar, a seco, o verbo “provocar”. Era preciso desenvolver um raciocínio com pitadas surrealistas, mas que fazem sentido em se tratando de ficção.

— Sim — eu disse —, concordo que Vladimir não “provocou” o assalto. Porém observe: foram características de sua personalidade que o levaram àquele bar e não a outro que não foi assaltado e no qual Caroline não estava. E mais: depois do roubo, não é verdade que ele tenta reanimar Caroline, em estado de choque? E que dali surge o caso de amor entre eles? Então a postura dele naquela situação extrema foi decisiva para o surgimento do namoro. Ou seja, no fundo, são a personalidade e as atitudes de Vladimir que “provocam” a história.

— Mas o assalto… — Thiago ficou pensativo e não completou a frase.

E continuei:

— Claro, da maneira como você organizou sua história, se não houver o assalto não há a história de amor.

— Isso — Thiago disse.

— Pois bem, você precisa dar a impressão de que o assalto teria de acontecer naquele bar, naquela hora, com aquela violência, mesmo que Vladimir e Caroline não tivessem feito qualquer coisa objetiva para isso.

Achei que era um bom momento para relembrar alguns dos tópicos que tínhamos visto nas aulas, a começar pela assertiva: é o personagem, quando bem construído, que dá sentido a tudo que acontece na história. O que pretendo afirmar com isso?

A narrativa deve convencer o leitor de um fato: tudo o que ali está é porque o personagem, pelo simples fato de existir, faz com que as coisas aconteçam. Não, o personagem não tem poderes mágicos ou de super-herói. No entanto, é como se atraísse os acontecimentos narrados. Ou seja, os eventos de uma história estão enraizados nele, inclusive os fatos incontroláveis, como um raio que destrói uma casa ou a morte de um potentado na China, para pegarmos a ideia de Eça de Queirós na novela O mandarim (1880). Soa estranho, não? Mais parece um ensinamento esotérico. Mas não é.

Clarice Lispector nos mostra que fatos aleatórios podem ser provocados

No final de A hora da estrela (1977), acontece um fato que conhecemos bem: Macabéa, depois da consulta com a cartomante que lhe prediz sorte no amor com um homem loiro, sai à rua e é atropelada por uma Mercedes dirigida por um estrangeiro chamado Hans. Nenhum dos meus alunos achou estranha a morte da infeliz Macabéa, “afinal, ela só poderia terminar desse jeito”, ou: “ela provocava todas as tragédias”. Na prosa de Clarice, o acidente, portanto, deixa de ser uma casualidade para se transformar em algo natural, possível ou ainda mais: numa exigência da história. Depois de terminada a leitura, a sensação que fica, mesmo que inconsciente, é de que nada mais poderíamos esperar de um personagem sobre o qual é dito o seguinte: Maca, porém, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de parca palavra. E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada, até pensava que era feliz. Não se tratava de uma idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas. E também não prestava atenção em si mesma: ela não sabia. Macabéa não sabia, mas nós, leitores, sabíamos: ela só poderia morrer atropelada, e por uma Mercedes. No momento da leitura, esse trecho nos surpreende, mas, ao mesmo tempo, ficamos com a impressão de que esse acidente era inevitável. Quem provoca essa inversão estonteante é o personagem literário, quando bem construído. Tanto Macabéa parece atrair essa morte acidental que, logo após o atropelamento, “ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota, pois o carro era de alto luxo”. Se tivesse sido criada por um diletante, essa morte resultaria numa coincidência forçada e, pior, grotesca, posta ali apenas para matar o personagem e, desse modo, resolver uma novela cuja escrita, naquelas alturas, talvez já estivesse problemática.

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O trecho acima faz parte do livro Escrever ficção (Companhia das Letras), do escritor e professor Luiz Antonio de Assis Brasil, que registrou no volume sua experiência ao longo de 34 anos ininterruptos de trabalho com a Oficina de Criação Literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e também no programa de pós-graduação em escrita criativa na mesma universidade. O livro contou com a colaboração de seu ex-aluno, o escritor e professor de escrita criativa Luís Roberto Amabile.

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Imagem ilustrativa: Cena do filme “A hora da estrela”, adaptação de Suzana Amaral para a obra de Clarice Lispector

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