* Por Evelina Hoisel *

Sempre que tento atingir um limite, ele se afasta, situando-se noutro lugar.

(Evando Nascimento, Retrato desnatural)

Aproprio-me da expressão de Silviano Santiago, no ensaio “Uma literatura anfíbia”, incluído na coletânea O cosmopolitismo do pobre. Originalmente, o texto foi uma palestra lida em homenagem ao escritor José Saramago, em abril de 2002, nos Estados Unidos, delineando algumas reflexões sobre o caráter anfíbio, isto é, ambivalente, híbrido, da literatura brasileira no século XX, resultante de uma “dupla e antípoda tônica ideológica”: inicialmente, a nossa literatura dramatiza a necessidade do resgate dos miseráveis a fim de elevá-los à condição de seres humanos. Por outro lado, procura realizar uma análise da burguesia econômica nos seus desacertos e injustiças seculares.

Interessa a Silviano chamar a atenção para a mescla entre arte e política no texto de escritores do século XX no Brasil, referindo-se à inserção ocorrida na esfera literária de discussões de cunho político e socioeconômico-educacional, explicitando que a “atividade artística do escritor não se descola de sua influência política”. Essa contaminação entre arte e política, diz Silviano, é a “forma literária pela qual a lucidez se afirma duplamente”, pois a “forma literária anfíbia requer a lucidez do criador e também a do leitor”. Apesar de Santiago não citar os nomes de escritores, sabemos que, entre tantas outras referências, ele está falando de sua própria literatura.

Recorro ao termo “anfíbio”, utilizado por Santiago, não para tratar das relações entre arte e política, ou literatura e política, mas pela sua capacidade para definir o híbrido, a mescla, a ambivalência constitutiva dos textos de escritores ficcionistas, teóricos, críticos e ainda exercem ou exerceram a atividade docente – os intelectuais múltiplos. Anfíbio define simultaneamente a condição de pertencimento a uma determinada ordem discursiva (como a de ficcionista, por exemplo) – o viver dentro anfíbio – e também a condição de estar fora, de ser outro, de transitar por outros territórios – habitar o entrelugar de sua própria constituição de sujeito polivalente, estabelecendo mesclas, hibridismos, contaminações. Anfíbio, como desdobramento do entrelugar, é a marca daquele constituído pelas trocas, pela multiplicidade, pela diversidade de registros, valores, temporalidades e espacialidades.

Evando Nascimento, também um escritor múltiplo, em Retrato desnatural (diários – 2004 a 2007), estampa em um dos fragmentos que se disseminam pelas páginas do seu diário ficcional a seguinte definição poética: “anfíbio e/ou biodiverso/ ou/e/ anfibiodiverso/ anfibiuniversos/ bí/fidos/ deglutição (negativa)”. Esses versos antecedem o verbete sobre antropofagia ainda como devoradora de uma cultura da violência, quando na verdade o que interessa “é aproximar os supostos contrários”, pôr “em contato o diverso e o diverso para fazer vir o + diverso, o multiverso ou o anfibiodiverso”.

A condição de anfíbio que aparece explicitamente nomeada nos dois exemplos trazidos como deflagradores das reflexões sobre a literatura como espaço da crítica constitui-se então como uma metáfora conceitual que possibilita pensar o próprio estatuto da literatura contemporânea, como quer Silviano Santiago no seu ensaio “Uma literatura anfíbia” e, consequentemente, a condição de escritor contemporâneo como anfíbio, diverso, múltiplo, biodiverso, anfibiuniversos, como denomina Evando Nascimento. Em uma entrevista concedida a Eucanaã Ferraz, Antonio Carlos Secchin e Renato Cordeiro Gomes, originalmente publicada no Jornal Metamorfose (2006) e publicada posteriormente na Coleção Encontros – Silviano Santiago, Santiago afirma que o homem de letras deve ser como um jogador de futebol, polivalente, e explica:

Gosto do adjetivo polivalente porque ele se decompõe em duas unidades que servem para interpretar as facetas complementares de quem se arrisca a ser múltiplo: poli e valente. Há que ser valente para ser poli. […] Na cobertura do espaço literário, no ataque e na defesa é preciso que o escritor (jogador) polivalente tenha noção muito precisa dos adversários e dos companheiros de equipe.

Estão aí estabelecidas algumas vertentes com um desdobramento importante para as questões tecidas a partir da atuação do escritor múltiplo, anfíbio, polivalente, que produz uma literatura também anfíbia, híbrida, na qual as fronteiras da ficção e da crítica, da ficção e da teoria, da ficção e do discurso pedagógico se esboroam e são produzidas ficções críticas, espaço indecidível que é ficção e é crítica, é ficção e é ensaio e/ou é crítica e ficção e/ou ensaio e ficção. No texto citado acima, Santiago insere-se em uma linhagem de escritores que afirmaram a importância do poeta-crítico. Como poetas da

modernidade, os “mestres” a quem Silviano se refere iniciam um movimento de ruptura das fronteiras discursivas, acentuado com o transcorrer do século XX e início do século XXI, tornando o espaço literário cada vez mais híbrido, mesclado, indecidível, constituído por múltiplas marcas, estabelecendo-se como texto anfíbio: ficções críticas.

[…] se tivesse que me definir, diria que sou ficcionista-ensaísta ou ensaísta-ficcionista, creio que a inversão não muda em nada nos respectivos e combinados papéis. ou muda. jamais me consideraria poeta, dramaturgo, nem mesmo romancista ou contista. não tenho talento para nem provavelmente tento desenvolver. diviso frequentemente pedaços de narrativa no que faço, mas que nunca chegam a se inserir num todo, como é o caso do romance. nem têm um sentido completo em si mesmas, como é o caso do conto. partido seria o meu estilo, contendo gota a gota o cotidiano, pois diria também que sou diarista, nada mais. […] vivo do que escrevo cotidianamente, tais os jornalistas, mas com outros fins. quais? (NASCIMENTO, 2008, p. 226. Grifos do autor).

Esse trecho do livro de Evando Nascimento, Retrato desnatural (diários – 2004 a 2007), demarca o estatuto do escritor e, consequentemente, da escrita literária na contemporaneidade ou pós-modernidade. Retrato desnatural é o primeiro livro de ficção desse intelectual, também teórico, crítico, professor da UFJF, tradutor de Derrida. A expressão “diria que sou ficcionista-ensaísta ou ensaísta-ficcionista” define a sua dupla e simultânea condição de ficcionista e ensaísta na própria escrita de Retrato desnatural, caracterizando o seu estilo ao declarar “partido seria o meu estilo”.

Ser ensaísta-ficcionista ou ficcionista-ensaísta não diz respeito apenas à dupla situação de Evando Nascimento de ser ficcionista e de exercer também as atividades de crítico e de teórico da literatura e da cultura. Esta duplicidade se insere na escrita de Retrato desnatural, possibilitando a construção de um estilo partido, isto é, fragmentado e fragmentário, espaço flutuante de dispersão, em que o leitor é convidado a percorrer uma escrita em constantes entrecruzamentos, espécie de hipertexto com muitos links que podem ser acessados aleatoriamente e são, concomitantemente, literatura e crítica, ficção e ensaio: ficção crítica.

Se o ensaio rompe com as fronteiras entre literatura e ciência, uma vez que rasura o rigor formal do texto científico do artigo, contaminando-se com a liberdade criativa da ficção, temos em Retrato desnatural exercícios de opinião – poética, estética, ética, política, cultural – sem fundamento único, uma poética da decomposição, expressão que encontro em um artigo de Evando Nascimento (2001) ao analisar o conto de Clarice Lispector “Os desastres de Sofia”, e da qual eu também me aproprio para definir os labirintos abismais da escrita performativa do próprio Nascimento, que escreve e reescreve os seus pensamentos em consonância com dois autores coirmãos de escrita: Montaigne e Pascal. Estes autores podem ser lidos a partir de qualquer ponto do livro e dos diversos extratos dos seus textos que não compõem uma totalidade, a despeito da complexidade que nenhum exegeta esvazia (NASCIMENTO, 2008).

Encontro também em Retrato desnatural um fragmento denominado de “decomposição (reticências)” que confirma a decomposição como procedimento de composição da própria arte. Já na epígrafe do fragmento declara-se: “estou decompondo/ tom jobim, quando lhe/ perguntavam se/ andava  compondo”. Assim, compor é decompor e neste movimento de associações prismáticas do pensamento já se insere o viés crítico do texto ficcional de Retrato desnatural, a se configurar como um gênero inclassificável, indecidível.

No movimento de decomposição – de desleitura? – rompem-se as fronteiras entre os diversos gêneros discursivos, literários e não literários. A força dessa ruptura transborda os limites da literatura, misturando formas distintas, sejam elas literárias ou não. Tudo fica contaminado pela ficção, é e não é ficção. Por esta via, pode-se entender o trecho inicial do fragmento “canteiro (obras)”:

o diário seria mesmo o gênero dos gêneros, onde cabem cópias, notícias, reportagens, entrevistas ao vivo, densos relatos – toda uma resenha do chamado dia a dia, que cotidianamente assalta, mas nunca da vida inteira. exerço, pois, uma auto-observação do entorno. digo as maiores verdades como disfarce de segredos inconfessáveis (NASCIMENTO, 2008, p. 159. Grifos do autor).

E logo em seguida, no fragmento “ócio”, continua:

ócio: vale não fetichizar nenhum gênero, vale não desprezar nenhum gênero. eis a dobradiça que nos liga à quase impossível tarefa de amar a poesia sem idolatria, o romance sem adoração, a peça, o ensaio sem idealizações. os gêneros são como peças de dominó, para serem jogados, decantados, recombinados, transmutados. fixar-se em gênero pode ser momentaneamente importante. prender-se em definitivo a um só é mortal (NASCIMENTO, 2008, p. 159. Grifos do autor).

Temos assim um projeto de escrita ficcional e ensaística em prosa e verso, é diário ficcional e tudo mais: poesia, prosa poética, romance, microensaios, bioficção, verbetes de dicionário, carta, reportagem, e-mail, blog, resíduos, “pedaços”, “restos” de informações, observações do entorno e pensamentos em constantes deslizamentos. No espaço literário, o viés crítico em relação ao já constituído se faz não apenas pelo diálogo com os mestres do passado ou com os seus contemporâneos, mas decompondo-se a escrita em fragmentos performativos, em processos sempre abertos e dobradiços, pois os registros não se esgotam em uma súmula totalizadora da representação clássica, porém transbordam (os registros) nas múltiplas entradas e saídas – nos links – desse hipertexto inclassificável, mas é também literatura, espaço efetivamente democrático e lugar onde tudo pode ser dito, conforme lições de Jacques Derrida. Como crítico e intérprete de seu tempo, em Retrato desnatural, Nascimento não se limita a ler apenas textos literários. Seu interesse vai além, e a escrita dobradiça de seu livro é inspirada no “zoo ilógico” (NASCIMENTO, 2008, p. 27) das esculturas de Lygia Clark, nas formas geométricas articuláveis de Bichos, “com suas cediças dobraduras”, um organismo vivo, uma obra atuante, manipulável e que se desdobra na interação do receptor-espectador-leitor. Essa escrita dobradiça parece ser uma das marcas das ficções críticas de escritores anfíbios, pois ela aparece também em textos de Silviano Santiago, como no romance Stella Manhattan ou em O falso mentiroso: memórias em que o narrador protagonista desdobra a sua história e se desdobra na sua narrativa a partir do ponto de vista pelo qual ela é dramatizada. Entre as possibilidades para se compreender a presença desse procedimento nos textos referidos, destaca-se a inscrição do “narrador dobradiça” por trás da escrita, um narrador ficcional e “real”, poeta e cronista, romancista e ensaísta, que transita no espaço textual deixando-se capturar por uma “anfibiologia”, isto é: “hibridismos, místicas mestiçagens, pálidas androginias” […] “pluribiologia”, como se declara no fragmento “águas (fortes)” (NASCIMENTO, 2008, p. 91), em nova referência a Lygia Clark, considerada madrinha e matriz do zoo pessoal e ilógico do a(u)tor.

Retrato desnatural compõe-se – ou se decompõe – em seis partes ou seções. A primeira intitula-se “escrevendo no escuro”. Trata-se de um conjunto de poemas e na epígrafe que abre essa parte o a(u)tor declara ter sido “imperativamente necessário/ escrever na primeira pessoa, mas/sem ingenuidades, com todos os disfarces” (NASCIMENTO, 2008, p. 11). Aqui o sujeito aciona os seus arquivos, seus fichários de informações/ interpretações, resultantes de vivências, de impressões e de observações do cotidiano, dramatizadas por um sujeito que é simultaneamente a(u)tor.

Depois da segunda seção, o texto se desdobra em “2. pedaços” “3. interversões”, “4. respirações”, “5. microensaios”, “6. restos”. Se “reescrever dá uma lucidez que desnorteia” (NASCIMENTO, 2008, p. 81), o processo de leitura e releitura, escrita e reescrita expande-se pelos fragmentos das diversas seções dessa escrita sem limites, e temas já dramatizados retornam em incessantes jogos cênicos, movimentações que flagram micro-observações distintas sobre um mesmo assunto, um mesmo objeto estético e um mesmo autor, como as referências à obra de Lygia Clark, Marcel Duchamp, Hélio Oiticica, Arlindo Daibert, Mário de Andrade, Augusto dos Anjos, Octavio Paz, ou sobre a antropofagia e as vanguardas artísticas do século XX, os conceitos de “arte” e “anti-arte”, questões a respeito à crítica literária e cultural, à identidade nacional, às diversas linguagens artísticas, como o cinema e as artes plásticas, e à própria língua portuguesa. Enquanto crítico literário e cultural, é notável o conhecimento desse a(u)tor das diversas literaturas e culturas, como a cultura americana, a francesa, a grega, bem como a cultura brasileira, a baiana, a carioca, assinalando as marcas da cultura na qual está “inserido”, ao demarcar o seu lugar na literatura e na cultura brasileiras, como no trecho do microensaio das páginas 254 e 255, ao qual retornarei mais adiante.

No processo de decomposição-composição através do fragmentário e da dispersão, Evando Nascimento privilegia a potência do micro: “pedaços” e “restos”, vestígios de observações, de percepções, de rastros do lido e do escrito são convocados no sentido de praticar microinterversões (NASCIMENTO, 2008, pp. 246 e ss) no tecido literário e cultural, pois “não há projeto social sem […] reinvenção de valores”, alertando, todavia: “– não através de quebra mas por suave deslizamento”. A irrupção da força de uma microfísica do poder é deflagrada pela ação visceral e radical das microinterversões no sentido de abalar o banal e o já constituído. De acordo com o dicionário, interversões é modificação, transtorno da ordem habitual, “interversão” das palavras em uma frase. Para Nascimento (2008, p. 115), a palavra “intervenção […] ainda contém um sentido policialesco que incomoda muito. daí interversão que seria um modo de intervir sem ‘intervir’, de agir sem interagir no sentido banal e programado que a ação do verbo passou a ter, atuando então segundo outras forças”.

Assim, a seção microensaios amplia a possibilidade de microinterversão da escrita de Retrato desnatural. No verbete “ensaio (experiência)” declara-se que “estes (micro)ensaios propõem simples exercícios de opinião, sem a marca doutrinadora do gênero. ninguém precisa concordar, nem há exatamente liberalismo. antes talvez caiba sair da reatividade para a menos usual prática da reexperimentação” (2008, p. 251). Como foi registrado anteriormente, o ensaio quebra as fronteiras entre literatura e ficção, uma vez que no ensaio “pulsa também um certo desejo (sempre incompleto enquanto realização) de transgredir os lugares demarcados para cada tipo específico de saber. O ensaio, muitas vezes, se quer ficção. A ficção, muitas vezes, se quer também ensaio” (SANTOS, 1989, p. 33).

Seria possível afirmar que nessa seção mais se torna visível o viés crítico da ficção de Evando Nascimento? Por que a advertência do a(u)tor “ao leitor incauto, não muito afeito a ideias em literatura”, na abertura desse conjunto de textos, recomendando “saltar estas páginas e ir direto à próxima seção”, uma vez que as partes são autônomas?

Embora essa escrita sem fronteiras adote procedimentos de  repetição na diferença para redistribuir os movimentos  do pensamento crítico do a(u)tor, são os microensaios que estampam com mais intensidade a sua face de crítico da literatura e da cultura. A configuração dos textos dessa seção não abandona o estilo partido das demais, entretanto adere com mais evidência a uma linguagem discursiva e argumentativa, expondo a presença do a(u)tor como crítico da literatura e da cultura no tecido textual. Entre os vários fragmentos que compõem a seção, elejo uma carta dirigida a um “amabilíssimo crítico”, interpelado ironicamente pelo a(u)tor, no sentido de elucidar o seu (entre)lugar no século XXI.

A carta dramatiza um debate entre o escritor e o crítico e, por meio desse diálogo, são discutidas as questões da contemporaneidade artística: as noções de modernidade e de pós-modernidade, a relação do escritor com a tradição, a tradição do novo, a construção de uma genealogia, a afirmação da singularidade como marca de um indivíduo. Esses temas são mobilizados no sentido de promover uma distinção entre “pertencer”, palavra que teria sido utilizada pelo crítico para situar o a(u)tor na modernidade, e “participar”, mais apropriada, segundo o próprio a(u)tor, para compreender o seu (entre)lugar na cena artística dos séculos XX e XXI. A palavra “pertence” fixaria e estancaria os fluxos provenientes das múltiplas linhagens – “mães-pais culturais” – que circulam pelas bordas do Retrato desnatural. Já a palavra participa, grafada em itálico na carta, possibilita entender melhor a redistribuição dos fluxos migratórios da escrita, afirmando simultaneamente o pertencimento e o não pertencimento do a(u)tor à produção literária e cultural do século XXI, confirmando a sua constituição de escritor anfíbio. A ironia contida na carta e a consistência argumentativa das questões críticas e teóricas desenvolvidas traçam as tensas relações entre o escritor e o crítico. Este aspecto pode ser percebido desde o trecho inicial da carta:

sim, amabilíssimo crítico, o senhor tem toda razão, o que escrevo participa da modernidade estética, ética, política, cognitiva, e o que mais desejar. participa mas não “pertence”, talvez. porque nasci no século ora findo e cresci ouvindo, tocando, aspirando, vendo, comendo, bebendo e admirando o que a modernidade inventou, do mais suposto vulgar ao mais delirante sublime (NASCIMENTO, 2008, p. 254).

No desenvolvimento da carta, fica evidente o conhecimento do a(u)tor das diversas vertentes das teorias-críticas contemporâneas, dramatizadas no sentido de pensar a indagação: “como criar sem romper nem se alinhar?” Uma possibilidade para essa saída é a afirmação de uma “singularidade inexemplar”, apontada como modo de diferir, de divergir, em um contexto no qual tudo está dito:

Independentemente de todo cortejo de possibilidades de diálogo sem simples ruptura com a modernidade, o que importaria hoje seria o singular, a experiência vivida que se deixasse contaminar pelas letras e traços mas ao mesmo tempo lhes fosse irredutível (NASCIMENTO, 2008, p. 255).

Singularidade confirmada aqui como característica das ficções críticas de Evando Nascimento no âmbito dos escritores acometidos pelo mal de docente, o qual, como já comentado anteriormente, é uma expressão de Silviano Santiago (2004a) para definir essa impossibilidade que tem o escritor contemporâneo, que é simultaneamente teórico, crítico e docente, de despregar-se de seus múltiplos perfis, suas várias funções, produzindo uma ficção que exibe constantemente as marcas do teórico, do crítico, do docente e se constitui como uma ficção crítica.

A afirmação de Evando Nascimento, por sua vez, é um convite para se pensarem os impasses de uma reflexão quando ela se confronta com uma pluralidade de singularidades com intensidades variadas, e elas são agrupadas para constituir um determinado corpus de estudo. Sendo possível construir um corpus com esses escritores polivalentes para redesenhar as linhas de fuga as quais sustentam os seus diversificados percursos textuais, é importante considerar também que cada assinatura representa um projeto intelectual expondo o próprio traçado enquanto singularidade e tem repercussões distintas em relação aos demais projetos.

Como pensar, por exemplo, Poesia sobre poesia, de Affonso Romano de Sant’Anna, em relação às considerações aqui desenvolvidas? E O falso mentiroso, Viagem ao México e Em liberdade, de Silviano Santiago? E cantos delituosos e Meu amigo Marcel Proust, de Judith Grossmann? E poesia, pois é poesia, de Décio Pignatari? E as Galáxias, de Haroldo de Campos? E as escrituras expandidas de Roberto Corrêa dos Santos? E a dramaturgia de Cleise Furtado Mendes? E a produção de tantos outros escritores inseridos nas universidades, muitos deles tendo frequentado os cursos de criação literária que hoje integram os currículos de Letras? Quais os limites e deslimites dessa anfibiologia?

Os desafios são muitos, pois essas singularidades parecem querer afirmar cada vez mais o seu caráter de inexemplaridade,  solicitando um leitor capaz de flagrar as circunvoluções  de uma escrita em incessantes atravessamentos de fronteiras.

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Evelina Hoisel é professora titular de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi diretora do Instituto de Letras da UFBA e coordenadora da Pós-Graduação (PPGLL), presidente da Associação Brasileira de Literatura Brasileira (Abralic) e da Academia de Letras da Bahia. É pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e autora dos livros Supercaos: os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas; Grande sertão: Veredas – uma escritura biográfica, entre outros. Possui vários ensaios publicados em coletâneas e periódicos. O texto acima compõe o livro Teoria, crítica e criação literária: o escritor e seus múltiplos (Editora Civilização Brasileira, 207 págs.)

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