É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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* Por Martha Batalha *

Ela era do tipo que só comia a pontinha dos aspargos.

Ele era do tipo que nunca tinha comido aspargos.

– Mas eu só compro quando está em promoção no supermercado Zona Sul – ela tentou consertar.

Ele nunca tinha entrado no Zona Sul.

Conheceram-se na Lapa, um lugar que ela gostava de ir porque ali o Rio pulsava, como disse para ele, imitando com a mão fechada as batidas do coração. Ele gostava de ir à Lapa porque tinha mulher boa e a cerveja era barata. Como naquela noite, em que só podia comprar duas latinhas e a passagem, e bebia tranquilo no boteco quando ela apareceu com as amigas, todas com tanto dinheiro que podiam usar calça jeans furada.

– É moda, ela explicou, dando um gole na cerveja dele.

É babaquice, ele não disse para ela.

Uma semana depois os pais dela viajaram para o sítio em Itaipava. Ele pegou o trem até a central e o ônibus até a Gávea. O porteiro não quis deixar entrar, ela insistiu pelo interfone.

Não foram ao cinema, não saíram para comer pizza, não caminharam na praia. Foi bom.

Tô namorando um cara que mora na Penha e toma vinho de caneca – ela disse gargalhando para a amiga.

– Tô namorando uma garota que usa piercing de brilhante no umbigo. Cara, que umbigo – Ele explicou ao amigo.

Ele provou aspargos e achou que era um brócolis metido à besta. Ela repetiu a porção de tripa do boteco no Méier. Falavam-se todos os dias e não se deixavam nos fins de semana, a não ser quando ele precisava ir embora mais cedo, para ajudar a tia a fazer os empadões que vendia nos corredores da Uerj.

Apresentaram-se os pais. O dela disse tudo bem? sem tirar os olhos do jornal. A mãe tentou sorrir. Depois sozinha com a filha evocou diferenças culturais: não vai dar certo. A mãe dele também não sorriu, por cansaço ou pragmatismo. O pai ele não via desde os 5 anos.

Os amigos dele agora o chamavam de bacana. As amigas dela queriam saber se os negros eram mesmo imensos. Ela fingiu achar graça. Só muito tempo depois é que entendeu a razão de seu desconforto. Entendeu que seria abuso perguntar sobre a potência dos homens das outras, enquanto a cor de seu namorado permitia certas intimidades.

Quando o namoro terminou restaram as cenas. Depois elas se diluíram, como os círculos de fumaça que ele fazia ao fumar, e que também foram esquecidos. Ela andando flutuante pelas ruas do Leblon, as pernas recém-depiladas escondidas sob o vestido da Farm, dizendo confiante que não era clichê ou coxinha. Ele com raiva depois de ler a Vejinha Rio, dizendo que fazia muito mais do que o cara da foto, entrevistado porque era rico e vendia açaí orgânico. As conversas sobre luta de classes no balcão da padaria Rio-Lisboa, ela conhecendo a Central do Brasil e sendo a única a sorrir no vagão abarrotado do trem. O suco gelado de caju no Mercadão de Madureira, a noite de forró na feira de São Cristóvão, passar a mão que não estava entrelaçada com a dela pelas lombadas dos livros da Livraria da Travessa.

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Ele foi o primeiro da família a ter diploma universitário. Pensou sem ser matemático, mas só conseguiu emprego como caixa de uma Casa do Pão de Queijo.

Ela se formou em Direito e queria mudar o mundo. Trabalhou com licitações, depois fez um curso de Belas Artes na Casa do Saber e hoje é decoradora de interiores. Passou uns tempos deprimida, lia manchetes e se angustiava. Era só assalto, violência, corrupção, e sempre mais uma vítima de bala perdida. Pensava sempre nele. O tiroteio na avenida Brasil, o arrastão na Penha, será que ele viu, estava lá, se protegeu? A menina que morreu com a bala no rosto podia ser sua sobrinha, talvez sua filha. Todas as meninas que morriam poderiam ser sua filha. Combinava os olhos das crianças com os do ex-namorado, tinha certezas, pesadelos, palpitações.

Era inevitável, um dia seria atingido. Ele morava no mundo de caos e barbárie depois do túnel, onde aconteciam as violências que chegavam para ela já inofensivas nas notícias do jornal. Ou apareciam organizadas na voz segura e olhos maquiados da apresentadora de TV. Ela estaria para sempre segura, e mesmo assim, ou talvez por isso, se atormentava. Não é mais possível, o Rio está inabitável, é preciso agir, não é justo, é preciso agir. Fez terapia, tomou Rivotril, tentou alguns meses de ioga.

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Ela se casou com um colega da PUC. Engravidou este ano e agora acha que o mundo não é tão ruim. Vai para Nova York fazer o enxoval do neném.

Ele não quer ter mais filhos. Organizou os documentos e tirou foto de terno, mas teve o visto negado pelo consulado americano. Se tivesse conseguido estaria no mesmo voo Rio-Nova York. Para nunca mais voltar.

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Martha Batalha é autora de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. Seu segundo romance, Areia Branca, será publicado no início de 2018 pela Companhia das Letras.

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