É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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* Por Marta Barbosa Stephens *

Para Maria Eduarda

Foi como um raio sem trovão, só o clarão de cegar, uma chama, um vento frio, como se sente sobre um cavalo veloz, um balanço indo bem alto, um sopro. Quando se percebeu de novo, Duda estava correndo em direção a um campo verde e ensolarado, com muitas árvores, folhas e flores coloridas. Ao se dar conta da nova paisagem, ela reduziu o passo, não entendeu porque corria se já não tinha pressa. Era uma menina e ao seu redor o mundo era colorido e paciente.

Duda parou de correr, mas sua respiração continuou ofegante. Não era só o corpo se recuperando, era outra coisa. Estava nervosa, sobressaltada, ferida, sabia de tudo isso, mas não via sangue, nem via dor. Ao redor só um campo tão colorido e nítido que podia ser uma pintura, mas uma pintura que suavemente se movia.

As flores também balançavam ao vento, mas eram as folhas que pareciam dançar, seguindo uma coreografia insistente, pendendo-se ora para um lado, ora para outro. As palmeiras imperiais tinham folhagem densa de um verde aceso como neon, mas caules minúsculos, talvez um quinto do tamanho dos de uma palmeira imperial de praças de poder, onde Duda pensou já ter estado alguma vez. Aquelas palmeirinhas eram engraçadas. Pareciam sorrir para Duda.

Bem verdade, nada ao redor era exatamente familiar. Pelo colorido e pelo tamanho das pétalas, as rosas nem pareciam reais. Mas eram. Ou ao menos cheiravam como se fossem. Duda se deteve em frente a uma das roseiras de rosas gigantes para sentir aquele cheiro adocicado de morte com os olhos fechados, pendendo os braços para trás, leve como se dela se desprendessem pétalas. Duda sabia que as rosas são as rainhas do jardim, as magnificentes, as únicas inalcançáveis.

Mas a flor que Duda amava mesmo era a de lavanda. Apenas em lembrar, quando reabriu os olhos, ela viu crescer diante dos seus pés um enorme campo de alfazema. Seguiu então movida pelo perfume, pressionando delicadamente a ponta dos dedos às flores pelo prazer de ter aquele cheiro impregnado à pele. Foi quando pensou na sua mãe, e sentiu o perfume de talco e pó compacto, algo doce, algo seco. Duda entendeu que nunca mais abraçaria sua mãe de novo.

Resignada, parou ali e deixou-se cair sobre os joelhos, estava pronta para chorar, mas nesse momento percebeu que à sombra dos pés de lavanda algo se movia coletivamente, marcando o solo com círculos. Se ainda fosse a mesma menina de agora há pouco, entenderia tratar-se de um coletivo de formigas construindo seus fortes. Mas diante do inexplicável, decidiu aproximar-se ainda mais deitando de bruços no chão de terra, apoiando o rosto nos punhos cruzados e concentrando o olhar no que não conseguiu nominar. Era sim um coletivo, mas não de formigas. De perto, bem de perto mesmo, Duda pôde enxergar um baile. Mini pessoinhas a bailar alegremente, vestidas em seus melhores costumes, brindando e celebrando sem se dar conta que poderiam todos ser esmagados por um único pé de Duda, ainda que acidentalmente. A menina relembrou a mãe, e de novo quis chorar, mas diante da alegria sublime daquelas criaturinhas insignificantes e ingênuas, ela sorriu.

A essa altura, Duda começou a sentir-se parte daquele baile. Deitada agora com as costas no chão, olhar voltado para o céu, ainda a sentir a festança ao seu lado e toda a lavanda perfumada em volta, ela pensou que poderia viver ali.

Por um segundo, pensou pertencer aquele lugar, seja lá onde estivesse. Mas bem nesse momento, com o fôlego enfim recomposto, ela viu no céu uma mensagem. Duda pensou que fosse uma mensagem aquele mover apressado das nuvens, a tinta branca na tela azul, e esperou pelo formato que fizesse sentido. Mas nada parecia coerente por muito tempo. Os desenhos não se concluíam, estavam em permanente movimento, e quando enfim pensou ver um urso gigante de olhar melancólico, o vento soprou mais forte e o que pareciam orelhas agora eram ondas do mar, que já então pareciam repetir o formato de enormes falésias, estalactites e estalagmites, um pássaro de longas asas, um caminhão, o perfil de uma linda mulher, um gigante sentado, um cavalo cavalgando, um disco voador, e já nada mais compreensível. Duda desistiu de tentar entender.

Levantou com calma e escondeu a face entre as palmas das mãos, na esperança que ao erguer o rosto tudo estivesse normal. Não estava. Mas ao menos ela pôde localizar-se melhor. Notou-se no alto de uma montanha com vista para o muito longe. Um pouco abaixo, viu ondas espumando na areia. A visão de uma praia e o cheiro de mar acalmaram Duda. Finalmente ela sabia o que esperar. Enfim sentiu-se em uma outra vida que não essa.

* Maria Eduarda Alves da Conceição, 13 anos, foi baleada e morta no dia 30 de março de 2017, dentro da Escola Municipal Daniel Piza, no Rio de Janeiro. Maria Eduarda de Barros, 9 anos, foi baleada e morta no dia 18 de julho de 2008, em Recife. Maria Eduarda Cavalcanti Romano, de 14 anos, foi baleada e ficou tetraplégica em março de 2008, no Rio de Janeiro.

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Marta Barbosa Stephens é escritora e crítica literária. É autora de Voo luminoso de alma sonhadora, além de Desamores da portuguesa (lançamento previsto para 2018)

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