Em terra

É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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* Por João Anzanello Carrascoza *

O menino, até ontem, brincava, sem saber que seria seu último dia de ver os amigos, de dizer à mãe antes de dormir, tenho medo do escuro, de fazer a lição de casa, de andar pelas ruelas da Rocinha – aquele trecho do mundo que era todo o seu mundo, mas não o mundo que ele, um dia, almejava fechar com a dupla e estreita fresta dos olhos. Era o que a sua mãe dizia, esmagada pelo pranto, era o que ela contava aos parentes à beira da cova, se é que não contava para si mesma, na tentativa de se dissuadir da verdade de que seu filho, tão novo, se fora definitivamente; ela o chamava de “o meu menino”, no entrecortar dos soluços, no repetir o gesto de secar as lágrimas com o dorso da mão, ele dizia que o seu menino nascera numa segunda-feira chuvosa, mas podia ter sido num sábado de sol, pouco importava, ela não lembrava daquele dia senão pelo que aquele dia registrara em seu corpo, o ritmo das contrações, ela pronta para expelir a nova vida, que também se preparava para sair de seu cálido conforto; o seu menino nascera em maio, mas tanto fazia para o mundo, esse mundo do qual ele já se despedira, tanto fazia se fosse em outubro, se fosse num dia santo, porque ao mundo pouco importa se mais um homem vem habitá-lo, o mundo está à disposição para que os vivos dele se sirvam, embora esse desfrute seja também a sua própria ruína, no ato de consumir, seja o que for, somos consumidos pelo tempo – o tempo não é voraz, nem piedoso, o tempo é indiferente em seu passar; mas, como um rio, o tempo se suja com o barro de quem nele se banha, o tempo se conspurca em seu próprio fluxo, o tempo é um líquido que, ao deslizar por um corpo, resulta noutro (tempo); ela dizia, o meu menino nasceu às duas da manhã, podia ter sido às seis da tarde, às onze da noite, mas sendo às duas da manhã esse foi o horário que se fincou na carne da sua consciência, às duas da manhã foi quando a história de seu menino, fora de seu ventre, se iniciou; ela dizia que o seu menino não era diferente de nenhum outro, mas era o seu menino e, sendo o seu menino, não havia ninguém igual a ele para ela, ele era o meu menino, e não importa se eu tenho mais dois filhos, um filho não substitui o outro, o sofrimento novo não ameniza o antigo, uma alegria não sufoca uma dor, pode (quando muito) mascarar a sua face, uma vida não se paga com outra, nem uma morte aceita substitutos; o meu menino teve de se esforçar, como todos para se habituar à vida, o meu menino teve de aprender as coisas mais banais, o meu menino, ela dizia, o meu menino aprendeu a sugar os meus mamilos, a acostumar o seu intestino com leite, o meu menino, quantas cólicas ele sentiu, quanta aflição não provou quando os dentes rasgaram a sua gengiva, o meu menino acordava à noite ensopado de urina, o meu menino sujo de fezes, experimentando a acidez das frutas, o gosto insosso das sopas, o meu menino reconhecendo, aos poucos, o sal e o açúcar, vomitando a bile, regurgitando a carne mal mastigada; o meu menino, ela dizia, como todos, para permanecer aqui, levou no braço as picadas das vacinas e, mesmo assim, juntou no corpo franzino uma coleção de doenças, caxumba, sarampo, catapora, o meu menino aprendeu a ter os bons e os maus sentimentos, o meu menino, para aceitar a vida, se submeteu a tudo que ela exige, o desejo e a frustração, a tristeza e o contentamento, a coragem e o medo; o meu menino, ela dizia, eu ainda tenho nos ouvidos os seus choros de bebê, quase dois anos de choro eu tenho guardados, essa música que cada criatura nos primeiros meses de existência entoa impiedosamente para aos pais, o meu menino, ela dizia, desenhava em seu caderno escolar na calçada de casa, quando a bala perdida o encontrou, a bala que poderia ter se metido num muro, ricocheteado nos paralelepípedos, se abrigado no tronco de uma árvore, a bala que veio do revólver de um dos policiais, ou daqueles que eles perseguiam, a bala ali, queimando-o por dentro, e o meu menino sem saber o que se passava, e eu diante do fogão cozinhando o feijão, eu cantarolando, feliz, enquanto o sol se batia na janela, eu toda ignorante, sem imaginar que não estava vivendo um momento de harmonia, sem cogitar que a família contabilizava uma baixa inesperada; a mãe dizia, eles o levaram às pressas para o Hospital Miguel Couto, mas o meu menino se foi, a bala despedaçou seu pulmão, o meu menino, ela dizia, com seus olhos castanhos, comuns, mas para mim tão bonitos, os cabelos encaracolados que o pai lhe deu, o meu menino agora junto ao avô que ele mal conheceu, os dois aqui, meu pai e meu filho; ela dizia, se eu ainda acreditasse em outra vida, em outro mundo, mas não há nada além da morte, ela dizia, se eu fosse uma mulher com fé, mesmo se para ludibriar a mim mesma, talvez eu tivesse esperança de reencontrar o meu menino, mas eu não verei mais o meu menino à mesa, rindo da careta do irmão, eu só posso ter o meu menino em sonhos, mas os sonhos são o que jamais vamos viver, os sonhos são como bolhas de sabão, mesmo os mais resistentes explodem, os sonhos são desenhos que o nosso desejo faz para enganar nossos olhos, os sonhos mentem, ela dizia; eu só posso agora ter o meu menino na memória, mas a memória vive de falhar, a memória se engana, primeiro sem querer, e, depois, por senso de sobrevivência, a memória subverte os fatos, exagera-os, para nos consolar, a memória, antes de nos encaminhar para a demência, ela dizia, tenta nos distrair, contando uma história que não é a nossa, a verdadeira; o meu menino, ela dizia, o meu menino está agora nessa cova, com o avô, e em mim, na altura do meu peito, pode afundar a sua mão aqui, a sua mão me sairá pelas costas, não há mais nada que palpite sob a minha blusa, no lugar do coração há um rombo por onde a vida, daqui em diante, vai me atravessar rumo ao fim, esse vazio é o corredor por onde a minha dor vai se alargar, essa cavidade vai arrebentar (está arrebentando) meu futuro; quanta saudade eu já tenho do meu menino, ela dizia, e, para continuar viva, vou ter de me esquecer dele, vou ter de empurrá-lo para o fundo da inconsciência, só poderei deixá-lo subir à superfície de vez em quando, não há como viver se o rosto dele se tornar uma lembrança maior que todas as minhas perdas juntas, não há como viver se demorar o dia em que, ao longo das vinte e quatro horas, a imagem dele, como um bolha de sabão, não explodir de repente em minhas lembranças.

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João Anzanello Carrascoza é escritor, autor de Trilogia do adeus, entre outros

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