Por Ana Lima Cecilio *

Todo mundo lembra (ou devia lembrar) do conto “Singular ocorrência”, do Machado. É um conto estranhíssimo, cheio de coisas não ditas, de contradições, de acontecimentos suspensos. E tem o final mais perfeito que poderia ter, porque é quase um resumo de grande parte dos contos do Machado: “Enfim, cousas”. Não explica nada, mas é o reconhecimento do imponderável – esse deus machadiano – regendo tudo. Não foi por isso, entretanto, que lembrei desse conto essa semana. Foi por causa da lama.

No conto, dois amigos conversam numa praça e olham uma mulher já madura e ainda linda saindo da igreja. Sabe quem é? Quer uma história? E um conta ao outro que a mulher, nem casada, nem solteira, “não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará”. Acontece que a dama – que tem o festivo apelido de Marocas –, viveu uma grande, sincera, voluptuosa e afetiva história de amor com um amigo do narrador, o Andrade. Viveram muito bem, amasiados, por anos, na maior confiança e estabilidade de um longevo caso extraconjugal do século 19, até que um dia, por uma coincidência – eis o Deus do Acaso! – o Andrade descobre uma traição de Marocas. Injustificada, vil, torpe, baixa, leviana. O narrador e o Andrade buscam em vão uma explicação para a singular ocorrência. E o primeiro ousa sugerir, evocando o poeta francês Augier: será a nostalgie de la boue? Augier no seu poema mais famoso, e menos prosaicamente que essa paráfrase, conta que um pato, mesmo vivendo entre cisnes, não resiste a chafurdar na lama de vez em quando, porque sente saudades dela, da infância de pato – ou, explicando a metáfora, de ter vivido na baixeza, antes do glamour dos cisnes. Daí a nostalgia da lama. E daí vem uma crise daquelas, choros, ameaças de morte, fuga, até que: nada. Um cai nos braços do outro, choram, e ninguém nunca mais toca no assunto. Que foi? “São cousas.”

Quem foi criança nos anos oitenta com certeza ficou impressionado com as terríveis fotos de Serra Pelada, a montanha sangrando lama sem dar ouro, aquele retrato da exploração final de tudo, homens-formigas que pareciam estátuas de barro, o Brasil sugado até a última gota de água suja. Lama: terra e água – numa mistura em que nem uma nem outra servem. As fotos do vazamento da Vale são ainda mais angustiantes, porque é um sangue envenenado escorrendo em tudo, nos rios, no mar, no Sul da Bahia, no azul, no verde esperança da bandeira, encenando dramaticamente o agora abjeto logo da Vale. A lama da Vale é pior, muito pior, que a lama do garimpo seco de ouro. É veneno. E, se a lama do garimpo é a morte do sonho dos garimpeiros (e, em si mesma, também esperança), a lama da Vale é só destruição e morte.

Na literatura brasileira, o garimpo sempre foi um personagem meio apagado, se pensarmos na grandeza das metáforas que dele se desdobram. Tem o sertanista mineiro Bernardo Guimarães com O garimpeiro – livro que li no colegial obrigada pela minha octogenária professora de literatura, e do qual não guardo as melhores recordações; tem o imortal de fardão e, apesar disso, quase anônimo Herberto Sales com Cascalho, sobre o garimpo na Chapada Diamantina; tem o hortifrútico Zé Mauro Meu-pé-de-laranja-lima Vasconcelos com um livro chamado Banana brava, aparentemente fruto (ops) de uma viagem com os irmãos Villas-Boas. E, atualmente, temos o espetacular Tempo de espalhar pedras, do Estevão Azevedo, nas listas dos finalistas do Prêmio Oceanos e do Prêmio São Paulo. Estevão, mais recentemente, leva a metáfora do garimpo a seu esgarçamento mais eficiente, no que ela tem de cruel, de esperança lavada, de futuro seco – numa linguagem, diga-se, nada seca, mas caudalosa e transparente, como o Rio Doce que a Vale assassinou.

Já a lama aparece mais. Na música brasileira, fez bonito: é o único substantivo repetido em “Águas de março”, esse poema todo enumeração de substantivos sucessivos e surpreendentes. Mauro Duarte, na voz transparente (sem lama) de Clara Nunes, dava a real ambiguidade da concepção da vida: “por isso não adianta estar no mais alto degrau da fama/ com a moral toda enterrada na lama”. Mais otimista, Chico Buarque ia levando com “toda Brahma, com toda lama” – mas não sei se ele ainda leva o deboísmo tão longe. E outro Chico, o Science, edificou seu incrível, ainda que breve, edifício no mangue, da lama ao caos, desentranhando dali a vida que Josué de Castro já tinha muito bem visto. Lama, em Pernambuco, também é começo. Problema é que vai dar em caos.

Na literatura, como na vida, a lama é profícua.

Para Cruz e Souza, é o destino da “humana e trágica miséria”: “O baixo mundo que troveja e brama/ só nos mostra a caveira e só a lama, / Ah! só a lama e movimentos lassos” (curiosamente, também é a única palavra que se repete). Talvez menos dramático e certamente mais assertivo, chafurdando com gosto na materialidade absoluta da lama, João Cabral descreve o seu rio “cão sem plumas”, pobre, trágico, trôpego: Na paisagem do rio/ difícil é saber/ onde começa o rio;/ onde a lama/ começa do rio;/ onde a terra/ começa da lama;/ onde o homem,/ onde a pele/ começa da lama;/ onde começa o homem/ naquele homem”. E de repente a lama somos nós, a lama se faz carne e pele, se faz humana, nascendo e voltando a ela, deixando o pó de lado nessa origem do mundo quente, úmida,  nordestina.

Para ficar no Nordeste, Jorge Amado descreve sua Ilha das Cobras, em São Jorge dos Ilhéus: “Chovia tanto no inverno, se juntava ali tanta água, que nem os verões mais violentos conseguiam secar a lama por completo. Sempre restavam poças por onde atolar os pés”. Não tem sol que seque nossa lama cotidiana.

Macunaíma, em seu périplo, come a carne da perna do Currupira. Este, ferocíssimo, segue o herói chamando a própria carne: “Carne de minha perna! Carne de minha perna!”. A carne, de dentro da barriga de Macunaíma, responde ao dono (“O quêêê? O quêêê?”) e assim Currupira não perde o moleque de vista. Para se livrar do caguete, “Macunaíma chegou perto de uma poça, bebeu água de lama e vomitou a carne”. Currupira perdeu sua pista, o heróis sem nenhum caráter fugiu. A lama, pois, também salva.

Mas a mais bonita, talvez, seja a lama do Bandeira. Vai inteira aqui a primeira parte da pérola que é “Nova poética”:

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.

Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.

Vai um sujeito,

Saí um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:

É a vida

O poema deve ser como a nódoa no brim:

Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.”

A lama do Bandeira é a vida sujando os castelos de marfins da poesia parnasiana. Mais perto da gente, é o que joga na cara de nossa literatice o desconforto, o sujo, o fora do lugar, o ruído de vida real. A poesia sórdida. A literatura sórdida.

Lembrei–me dessas lamas esses dias. É claro que tem lama no Monteiro Lobato, no José de Alencar, no Plínio Marcos, na Hilda Hilst (lama, e lésbica: “Nós duas nos vapores/ Lobotômicas líricas, e a gaivagem/ se transforma em galarim, e é translúcida/ A lama e é extremoso o Nada.”), na Clarice – tão limpa do mundo real, tem lá sua imensa poça de lama metafísica – pra nem falar no Zé Lins do Rego, no Graciliano, do Raduan, do Milton Hatoum. Duvido que a lama não seja um tema da literatura contemporânea, em todas as  diversas possibilidades de desdobramento dessa metáfora. Duvido. Mais recente, me lembro do livro de poemas do André Dahmer, que infelizmente ainda não li, Minha alma anagrama de lama. Pois é. Da lama vieste, à lama voltarás.

Aonde eu quero chegar com essa metáfora? Lugar nenhum – ou por outra, nessa imensa, informe e despropositada lama que são os textões da internet, o meu incluído, claro. Engraçado que agora, organizando a esmo essas citações, me dá a sensação de que arrisco uma torpe justificativa para as fotos mais miseráveis do mundo, para esse desastre sem igual, para esse assassinato, esse crime, essa sordidez, como se nós estivéssemos habituados à lama, com saudade da lama; ou como se eu estivesse apostando na tentativa de um resgate improvável de uma serra pelada qualquer, tipo “sou brasileiro não desisto nunca”, eia, sus, vamos sobreviver à lama, da lama, pela lama. Não, não vamos. Não quero, nem posso ser otimista. Para o desastre que a Vale causou, nem o vômito de mil macunaímas, nem os verões violentos do Jorge Amado, nem a bela e sórdida poesia do Bandeira. Não, a lama não “são cousas”.

15-02-2013-00-02-01-deslizamento-terra-2

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Ana Lima Cecilio é editora do selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, para o qual editou Balzac, Proust, Beckett, Adolfo Bioy Casares, Hilda Hilst, Monteiro Lobato, entre outros.  É parte do conselho editorial da São Paulo Review

 

 

 

 

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