Por Thiago Roney *

Sozinho, encolhido no canto do quarto, eu soluçava de tanto chorar. Andava por esses dias com raiva do mundo. Triste com o que estava acontecendo com o papai. Por não fazer nada para ajudá-lo, fiquei aborrecido até com a mamãe. Tão chateado estava com ela que ficava calado quando falava comigo. Quanto ao papai, coitado, eu não suportava vê-lo na cama daquele jeito. Chorava, chorava, chorava e saía correndo para o meu quarto aos soluços. Desejava que o mundo fosse, assim, feito a nossa casa, em cima do rio, para que um dia, como hoje, eu pudesse empurrá-lo pro fundo do Negro para ele se afogar e sumir de vez. “Isso é por papai, seu mundo filho da mãe”, diria. Mas não era o mundo todo que eu queria que fosse como nossa casa. Por exemplo, o mundo daqui, do Lipe, do Carlinhos e do Zizico, meus amigos do São Raimundo, que não tinham nada a ver com isso, não queria que sumisse. Mas o mundo de lá, do Polo, do Distrito, para onde levam o papai e os pais dos meninos todos os dias num ônibus com ar-condicionado. Era esse mundo que eu queria que fosse uma palafita.

“Julinho, Julinho… abre a porta pra mamãe, os homi da loja chegaram com a nossa LCD.” Com poucas lágrimas, mas ainda com os olhos inchados, fui com raiva abrir a porta. Os gritos dos carros lá fora entraram em casa com tudo, quando os homens carregaram a nossa nova televisão até a sala. O barulho era devido ao caminhão da loja estar empatando a passagem dos carros para a ponte rumo ao centro de Manaus. Depois que eles foram embora, não demorou muito e mamãe chamou as amigas chatas do bairro, até a mãe fofoqueira do Zizico, para assistir à novela na LCD. Estranha felicidade a de mamãe: mostrar para as invejosas da rua, como dizia ela mesma, as coisas novas compradas para a casa. As velhas chatas começaram a comentar, ao olharem a nossa nova televisão, quando iriam comprar uma também. “Depois de pagar minhas dívidas com os bancos, comprarei a minha”, disse a mãe do Carlinhos. Mamãe conseguia comprar tudo porque não tinha dívidas, pois pagava com um cartão como fez com a TV. Um cartão de plástico. Pensava que só existia dinheiro de papel, mas não, tem esse, assim, de plástico que chamam de cartão. Ela comprou até um celular pra mim com esse dinheiro. Mas, mesmo assim, continuei com raiva dela. Não adiantava tentar me fazer feliz com essas coisas, enquanto papai está lá na cama doente sem poder ir trabalhar. Não entendo. Como mamãe pode ficar rindo para a LCD com a mesma alegria de quando via o papai chegar do trabalho à noite? Estava ficando cada vez mais aborrecido com ela. Mamãe era quem me consolava quando estava triste, chorando, como há instantes. Mas hoje não me deu a mínima atenção, estava hipnotizada pelas cores daquela tela. Vou ficar de mal com ela por um bom tempo. Preocupado, fui tentar ver como estava o papai. Ao chegar perto do quarto, ouvi uns gemidos: “ai, caralho.” Quando abri um pouco a porta, vi-o com um alicate grande na mão batendo na sola do pé e gritando “ai, caralho, essa porra dói”. Meu Deus, a dor que o papai sentia era tão forte que ele estava batendo nela. Coitado. Quando vi o sangue escorrendo, não aguentei, saí correndo pro meu quarto chorando. Chorei, chorei, chorei até soluçar. Foi quando, enfim, mamãe veio ao meu encontro perguntar o que tinha acontecido. Então, engoli o choro e fiz cara de mau. Cruzei os braços e não falei nada. Estava com raiva, muita raiva da mamãe, sobretudo, do mundo. Do mundo de lá, do Distrito. “Trabalho no Distrito”, dizia papai, quando não falava Polo. Continuei mudo. Como pode o mundo e mamãe não fazerem nada para ajudar o papai? Ainda mais naquele estado, tendo de bater na dor até sangrar? “Não vai responder nada mesmo, Júlio da Silva Costa?”, mamãe perguntou, dizendo meu nome completo. Quando fazia isso era sinal de que estava brava comigo. Eu estava achando era bom que ela ficasse com raiva. Onde já se viu não ajudar o papai? Mantive minha cara de mau, mas curvei meu olhar pra baixo com certo medo. “Vai logo, menino besta, antes que eu te dê umas porradas, o Carlinhos tá lá na frente te chamando”, ela disse rapidamente querendo voltar à sala para não perder a novela. Saí voado do quarto para me encontrar com o Carlinhos e falar sobre a dor do papai e a minha raiva do mundo.

– Carlinhos, tu não sabe, mano, papai ficou uns dez dias lá em casa sem ir trabalhar. Não conseguia andar direito. Estava com a perna com gesso, sabe? Aquela massa branca como da goma de tapioca, só que dura. Papai quase perdeu o pé. Foi a máquina lá do mundo do Distrito, aqueles troços que colocam coisas e saem outras coisas, como papai um dia falou, acho que foi isso. Não sei o que aconteceu, acho que os homens de lá, que o papai não gosta, colocaram ele onde botam as coisas, porque ele saiu outra coisa nesses dias. A perna com goma de tapioca e pé todo ferido. Chorei que só quando vi. Sabe Carlinhos, se o mundo do Polo estivesse aqui, na beira do rio, e fosse uma palafita, eu afundava o mundo dos homens que o papai não gosta de tanta raiva que fiquei. Passou os dez dias e papai voltou a trabalhar. Mas no início dessa semana, não foi de novo, acho que por causa da dor. Ele pegou o alicate de mexer no carro, agora há pouco, e bateu com tudo no seu pé até sangrar. Acho que a dor é tão forte que ele bate na filha da mãe. Ainda tá lá em casa com o pé ensanguentado. Coitado, tendo de bater na dor com o alicate de tão doída, mano. Nem os remédios acabam com ela, eu acho. – Carlinhos fez uma cara de assustado e disse:

– Caramba, Julinho. Tô com pena do seu pai, mano. Olha só, pede pra ele passar azeite na perna, vovó fala que é bom pra essas coisas.

– O pior é que a mamãe não faz nada, Carlinhos. Tá em casa agora com sua mãe assistindo à novela na nossa nova TV. Tu viu?

– Vi, mano, muito doida a televisão, deve ser boa pra jogar videogame, né? – ele respondeu com brilhos nos olhos.

– Deve sim, Carlinhos, mas não consigo pensar nisso agora. Fiquei conversando mais um pouco com Carlinhos, depois voltei para casa. Só tinha vontade de chorar. Passei pela sala fazendo cara de mau. A mãe de Carlinhos perguntou pra mamãe o que eu tinha. Ela não soube responder. No meu quarto, triste, agachado no canto da cama, comecei a chorar. Não sabia o que fazer. Como poderia ajudar o papai? Até que depois de um tempo me lembrei do azeite. Enxuguei as lágrimas e decidi ir ao quarto dele para lhe falar do remédio que a avó do Carlinhos usava. Mas quando abri a porta do quarto não encontrei ninguém. Então saí chorando atrás da mamãe na sala. Perguntei, soluçando, onde estava o papai, se os homens do mundo de lá tinham pegado ele. Ela se assustou ao me ver chorando daquele jeito, mas quando ouviu minha pergunta, sorriu e respondeu:

– Deixa de besteira, Julinho, teu pai não foi pro Distrito, não. Foi ao pronto socorro rapidinho – quando ouvi isso, pus-me a chorar mais.

– O que foi, menino? Para de chorar! Teu pai não tem nada, não; deve ter ido apenas pegar um remédio. Só isso. Vai já voltar – mamãe falou, enquanto acenava para eu sair da frente da televisão.

Chorando, fui correndo para o quarto. Como podia mamãe sorrir daquele jeito enquanto papai estava no hospital? Acho que essa nova televisão está deixando-a maluca. Tudo isso por causa do Polo. O mundo de lá é mesmo um filho da mãe. Se o Distrito fosse uma palafita como nossa casa, eu juro que ia chamar o Lipe, o Zizico e o Carlinhos agora mesmo para afundá-lo no meio do rio Negro. Mas não podia fazer nada. Depois de muito chorar, comecei a rezar. Prometi a Deus que não iria mais fazer cara de mau pra mamãe e nem olhar a irmã do Zizico pelada se papai voltasse bem do hospital. E ainda perguntei a Ele por que o mundo de lá existia. Mas, como sempre, não respondeu nada.

A escuridão da noite, misturada com o negro do rio, indicava que já era tarde. Mamãe já estava assistindo à segunda novela depois de ter feito miojo com salsicha para o jantar. Enquanto papai não voltasse, estava decidido não comer. Senti um frio na barriga. Comecei a chorar novamente, quando, de repente, ouvi o barulho dos passos dele no assoalho. O ranger das tábuas pareciam ser os únicos solidários com minha angústia naquela casa. Papai entrou mancando, observei de longe. “Será que ele vai perder a perna”, pensei. Depois, ouvi mamãe dizendo a ele que eu estava chorando feito um bebê recém-nascido por causa de sua ausência. Na hora me deu uma raiva. Quis ir lá gritar com mamãe, mas fiquei calado. Papai devia estar furioso com sua indiferença. Quando percebi que vinha atrás de mim, fui para o quarto. Papai abriu a porta e me viu encolhido no chão com os olhos vermelhos de tanto chorar. Antes que ele começasse a falar alguma coisa, fui logo desabafando:

– Pai, juro, se o mundo de lá do Distrito fosse, assim, uma palafita eu ia afundar ele, pra nunca mais fazer mal algum com o senhor – depois que eu disse, ele sorriu e, não sei por que, abraçou-me.

– Oh, meu filho, não chore. Estou bem – ele disse, acariciando minha cabeça.

– Por que então o senhor estava no pronto socorro? Era por causa da dor? Vi o senhor batendo nela com o alicate. Estava sentindo no pé, né? Dói muito, pai? – perguntei, soluçando. Papai soltou um sorriso maior.

– Julinho, meu filho, pare com isso, estou bem, vá jantar, vá… – disse, beijando minha testa.

Papai foi para a sala novamente. Fiquei sem entender o motivo do sorriso. Será que ele está realmente bem? Mas por que então foi ao hospital? Acho que não quer falar tudo, para não me fazer chorar. Ele começou a conversar com a mamãe. Então resolvi ir para cozinha jantar somente para ouvir a conversa dos dois.

– Mário, o que tu foi fazer no pronto socorro? Tua perna já não estava boa? – mamãe perguntou.

– Sim, mas fui lá só pegar um atestado, não quero ir pra merda do Distrito amanhã, nem depois. Aquilo é um inferno. Peguei três dias, minha nega. Agora só na semana que vem. – papai disse sorrindo.

– Sério? Como conseguiu?

– Furei com um alicate a sola do pé que tinha acidentado.

– Seu pilantra! – mamãe disse sorrindo.

Papai chamou o mundo do Distrito de inferno, de merda. Sabia que o mundo de lá não prestava. Eu estava certo. Depois que ouvi aquilo de sua própria boca, não pensei duas vezes, deixei o prato com miojo na mesa e fui, imediatamente, ao quarto do papai atrás da caixa de ferramentas. Comecei a procurar um alicate. Eu sabia que ele tinha dois. Procurei, procurei até que encontrei. Fiz questão de guardá-lo numa caixa debaixo da minha cama. Como o mundo do Distrito não é uma palafita, eu precisava me prevenir para quando fosse adulto como papai. Tinha, de alguma maneira, de guardar a arma que me salvaria no futuro de todos os males de lá, daquele mundo do outro lado do centro, o mundo do Polo Industrial de Manaus.

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Thiago Roney é escritor de Manaus

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