* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

Tenho acompanhado nos últimos tempos as notícias e discussões sobre as formas de inteligência artificial (IA) que tem surgido, em especial, as que foram desenvolvidas para a linguagem humana. Confesso que não me furto de ficar ansioso e assustado como essas ferramentas que estão surgindo e como estão sendo incorporadas no cotidiano de forma muito natural por todos nós, sem muita crítica e com uma imagem opaca. Explico melhor. Essas ferramentas são programas que realizam funções de linguagem muito sofisticadas e refinadas do ser humano que é pensar, ler e escrever. Funções que não encontramos em outros animais na natureza e que são uma das principais marcadoras que nos destacam para a racionalidade. Ao mesmo tempo que tento entender sobre as IAs, eu estou lendo um livro da escritora Clarice Lispector [1920-1977] – “A maçã no escuro” [1961] – e não consigo não pensar uma relação sobre. Há uma relação íntima, que percebo, entre as IAs e Clarice Lispector.

A literatura de Lispector é um dos bens mais preciosos da cultura brasileira e da língua portuguesa. A escrita de Clarice é muitas vezes hermética e poética beirando ao mistério. O que atrai com força pessoas leitoras e com a mesma força repele outras. Não são textos simples que permitem fazer leitura inocente e de qualquer maneira. Mesmo para mim que me considero um leitor mais experiente em literatura, em diversos momentos da leitura de um texto como esse me exige mais atenção e percepções que demandam investigações mais profundas. Nesses textos há sempre uma metáfora para imaginar, uma poética para decifrar, uma imagem para construir ou uma palavra para conhecer que não havia sido apresentado antes. A leitura desse tipo de texto é um desafio cognitivo e, em muitas vezes, se impõe como um projeto de autoconhecimento pela experiência da linguagem. Eu vou mais além, um texto de Clarice exige uma entrega ao mistério filosófico que a autora nos draga em um jogo intenso de intertextualidade que exige um nível de abstração mental para conceitos muitas vezes nada claros. Essas habilidades na leitura não se adquirem de um dia para o outro. São frutos de anos de experiência e desafios com a linguagem escrita que ainda não estão totalmente completos e que levam uma vida inteira. Foram anos de desenvolvimento dessas habilidades na escola, universidade e experiências do cotidiano. A beleza disso tudo é observar por todo esse processo de vida o ganho que se vai tendo no labirinto da linguagem humana e se tornando humano. Acessar as interpretações ou dizerem de uma pessoa autora é altamente significativo – e não digo em aspectos acadêmicos, mas no acesso a humanidade do outro, naquilo que ele tem de mais precioso que é dizer algo a alguém. É comunicação de gente para gente. Tem coisa mais humana que isso?

Ler um livro de Clarice Lispector e poder ter essa experiência com a linguagem é se sentir plenamente humano. E se sentir dessa maneira dá muito trabalho. Isso exige: 1) concentração – que anda roubada pela velocidade e avalanche de informações das redes sociais – 2) tempo – que anda subtraído pelo excesso de demandas e impede o relaxamento – 3) empatia – que anda desaparecida e não nos permite ter contato com o que o outro pensa – 4) imaginação – que anda envergonhada em se sentir boba diante do deslumbramento. Tudo tem que ser concreto e prático para virar produto – 5) engajamento político – desaparecido no campo da leitura de que o acesso as palavras não pode ser um privilegio para poucos, mas um direito à vida.

O atalho dos programas das IAs são atrativos para “facilitar o dia a dia”, mas o alerta é que nos vão privar aos poucos de ser humanos. Vamos entregar a nossa capacidade de pensar aos robôs. Será que a adesão aos IAs nos farão perder o que nos separa dos outros animais – que é a capacidade de ter uma linguagem estruturada? Ou em alguns anos não seremos apenas um amontado de carne sem a capacidade das palavras? Ou seja, ler um texto dessa envergadura literária vai exigir muita humanidade e ela está sendo substituída por robôs que irão pensar, ler e escrever por nós. Não sei se estou sendo radical demais, mas os programas das IAs que escrevem por nós não é apenas mais uma vertente do que já existe. Eu acredito que tem o potencial de substituir uma habilidade humana.

Eu ainda “gasto” meu tempo me debatendo nas dificuldades de “A maçã no escuro”. É um prazer, em verdade, que tenho visto que muitos perderam e que pessimista enxergo que muitos outros serão sequestrados pelos novos aplicativos. Ser humano pela linguagem é a herança que me chegou e será a única que deixarei no mundo. Daqui um tempo a experiência de ler um livro como “A maçã no escuro” será como provar do fruto proibido, como uma maçã pecaminosa de uma árvore do Éden, que conterá o segredo de toda humanidade: a capacidade de pensar.

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em teoria literária. Université Bretagne Occidental, Brest, França. Contato: danielmanzoni@gmail.com

 

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