* Por Rafael Amorim *

Cortar o amor pela raiz.

Pois, como sabemos ou devemos ao menos manter em nosso horizonte, a palavra amor vem sendo transfigurada (há pelo menos alguns séculos, que tal?) pelo interesse de dominar e/ou eliminar corpos que a reivindicam sob outras performances.

É a poeta Tatiana Nascimento que também nos lembra: “c chama “amor à pátria” / o que é racismo / c chama “amor a deus” / o que é fundamentalismo / c chama “amor pela família” / o que é sexismo homofóbico […] esse seu “amor pela Palavra” / na real é só um caso histórico de má-tradução.”

O que encontramos em Facas (Folhas de Relva Edições), livro recém-publicado de Rodrigo de Roure, é um apontamento de outros caminhos para as más traduções que corromperam e ainda corrompem a capacidade de nos relacionarmos deste lado do mundo. Aqui, um texto a partir dos trânsitos históricos entre a América Latina e a Europa, trazendo para o seu centro a urgência de abolir o que nos é colonial na ideia de amor.

Tratando-se “uma ficção / agora / pelas escamas da rua / do Rio”, Rodrigo escreve “contra as impropriedades dos boulevards” que simulam em nós o Velho Mundo. O Rio de Janeiro descrito em Facas é uma ferida. Nele, suas ruas, monumentos e marcos arquitetônicos não nos deixam esquecer que ali existiu o principal porto negreiro das Américas durante o Século XVIII. Portanto, para que o amor sitiado pelo passado se transforme em outra coisa, o Rio da ficção roureana é uma cidade que troca de pele com frequência.

Também à sombra dos processos que transformariam, mais tarde, o Rio de Janeiro de Pereira Passos e suas dinâmicas citadinas numa Paris dos Trópicos, Rodrigo nos apresenta duas personagens que servem como alegorias aos seus territórios de origem. Ao Sul, o narrador-personagem, suburbano, que guarda em seu íntimo a sensação de reconhecer em seu corpo uma cidade que “já nasceu marcada, / vilipendiada.” Acima do Equador, o estrangeiro Aurélien, amando tudo que o faz lembrar o seu “igual de sardas azuis, olhos e espelhos azuis.” Esse, nos é apresentado na orelha do livro, desafiando o autor:

“acho que suas palavras falam de um espanto e um amor aí mesmo – por seus selvagens, suas vielas, seu Exu.”

Por isso, o amor a Aurélien, semelhante ao amor de Amaro por Aleixo em O Bom-Crioulo (1895), livro de Adolfo Caminha, torna-se cólera. Aqui, a ira é somada ao desejo por reparação. Acontece que iniciar o corte é também buscar pela raiz do problema e se armar para enfrentá-lo. A faca alegórica manuseada por Rodrigo traça o modo como a História será contada, desta vez pelo lado de cá das fronteiras. Como quem devolve, junto dos boulevards, a palavra amor grifada, rasurada e reescrita.

À medida em que a leitura avança, Aurélien, mesmo amado, começa a desfigurar-se, exposto por quem o amou. Aurélien, que na paisagem estrangeira não passa de “um velho sobrado, um barraco para os imigrantes.” Aurélien: um mundo “cinza noir, sem despachos nas esquinas”, evidenciando a relação suburbana que não se concentra apenas no subúrbio Carioca, mas, em larga escala, nos subúrbios às margens do dito berço da civilização.

Versos como “escrevo em guerra” e “tu é meu livro de cabeceira” marcam o escrever por meio do conflito. O protagonista de Facas abre seu romance dedicando palavras ao mensageiro entre mundos – os novos e o antigo –, como quem pede proteção pela incursão em território hostil.

Rememoramos as palavras de Abdias do Nascimento a Exu: “transporta-me nas asas da / tua mobilidade expansiva […] à catarse das / impurezas culturais / exorcizaremos a domesticação / do gesto e outras / impostas a nosso povo negro.”

Nos vemos no meio dessa mobilidade expansiva ao depararmos com uma escrita vertiginosa, um texto cheio de escamas e muitos caminhos. Uma escrita-encruzilhada que coloca à mesa, junto da devoção ao sentimento nutrido por Aurélien, o desconforto que é amá-lo e enxergar nele as armadilhas de um sujeito-território em sua “posição político-discursiva de centralidade”, como é trazido pelas palavras de Luiz Felipe Andrade Silva no posfácio de Facas. Aurélien torna-se, além de livro de cabeceira, manual de guerra para que seja possível conhecer melhor seu algoz-amante e talhá-lo a carne exposta no decorrer das páginas.

Facas é um livro que pede passagem há dezessete anos. Rodrigo de Roure o escreve entre 2005 e 2022, no trânsito entre o país-subúrbio e o Velho Mundo. Sim, leva tempo até saber o que fazer do amor. Se mantê-lo ou cortá-lo. Como cultivá-lo sem as pragas desse “inferno insolente que teu mundo [Aurélien] nos deu de presente.”

A matriz colonial escreveu a História e nos delegou o lugar do selvagem, do exótico, do outro. Por isso, Rodrigo assegura: “Aqui não é um país, aqui não é matriz”. Mas, há uma outra escondida nas escamas. Pelo menos “uma janela, uma lâmpada acesa.” Uma matriz das encruzilhadas, feitiços e encantarias. Matriz que retira da palavra amor (e de qualquer outra palavra) sua condição onisciente e indivisível, sem comprometer a raiz dos amores que ainda germinarão sob esta terra.

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Facas, de Rodreigo de Roure (Folhas de Relva Edições, 116 págs.)

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Rafael Amorim é poeta, pesquisador e artista visual. Autor de como tratar paisagens feridas, matrimônio e santíssimo.

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