*Por Whisner Fraga*

Alê Motta é experiente em narrativas concisas. Autora de dois livros de microcontos,
Interrompidos e Velhos, ambos lançados pela editora Reformatório, traz a linguagem
clara e direta para a novela Minha cabeça dói, publicada pela Faria e Silva, em 2024.

Considerando estes tempos de superabundância de publicações, para o leitor é
interessante ter em mãos um livro enxuto, fino. Afinal, hoje em dia, como apostar em
um calhamaço de quatrocentas, quinhentas páginas? O desafio é maior ainda se o
autor do referido cartapácio não for consagrado ou pelo menos dono de uma rede
social movimentada ou de uma lista de contatos invejável.

Otávio é o narrador-personagem de Minha cabeça dói e conta ao leitor a sua versão
dos fatos, usando a memória como suporte. Aos dezessete anos relata um grave
acidente sofrido aos onze, durante um passeio de carro com o pai, que o abandona
entre os destroços. Partindo desta cena, o livro apresenta o pai alcoólatra, inconsequente, a mãe superprotetora, que não mede esforços para tentar apagar as
cicatrizes do rosto e do espírito do filho, a melhor amiga, Lia, sempre a um fio de se
tornar uma namorada.

A narrativa é construída por meio de frases, parágrafos e capítulos curtos. Somente o
essencial é revelado. Com uma linguagem bate-estaca, Alê Motta leva o minimalismo
às últimas consequências, atordoando em cada sentença. É justamente o que a
história pede, essa acidez, essa economia, essas tragédias.

Otávio opta pela ironia, pelo sarcasmo, como forma de sobreviver a uma sociedade
que não compreende mais, a cabeça gira e volta sempre no mesmo ponto: o que este
pai violento, insensato poderia ter propiciado a ele se não sumisse covardemente após
abandoná-lo entre chapas retorcidas? Haveria alguma possibilidade de mudança, ele
poderia, após a tragédia, ter se redimido, se arrependido e se tornar, de fato, um pai?

Alê Motta, com uma linguagem direta e coloquial, mostra apenas o indispensável, às
vezes nem isso. O leitor tem um mundo inteiro a ser construído por meio das
insinuações, das informações objetivas e lacônicas, sem descrições longas, sem
diálogos rebuscados, sem rodeios, sem divagações, o que condiz perfeitamente com o
repertório discursivo de um jovem de dezessete anos. Ponto para a autora em um
quesito bastante perigoso.

Em busca deste pai imaginário, desejado, Otávio ganha um padrasto, um sujeito
disciplinado, bem sucedido, exigente e rico. Inserido nesta nova família, mas sem se
sentir parte dela, o narrador se torna o antípoda deste modelo comportado de lar,
enquanto teme se subjugar ao poder dos genes e se tornar um fracassado.

A história árida e a vida nada condescendente encapsuladas numa linguagem
adequada, também áspera, direta: não poderia haver escolha melhor. As pausas, as
lacunas do texto ecoam o imprevisível, o exato não consegue abranger tudo o que
precisa ser contado. Os estilhaços que compõem os personagens amplificam a solidão
que cada um deve domar, em uma teia de exílios voluntários coexistindo em um
mesmo espaço. O estilo de Alê Motta pretende representar essa fauna de desiguais, conhecida como família, cujos membros precisam se relacionar com o mínimo de civiilidade e ser bem sucedidos nesta empreitada.

Há algo abrupto nesta ficção de Alê Motta, alguma coisa embrionária e,
paradoxalmente, ao mesmo tempo, pronta, em seu caráter experimental. Uma forma
inédita de narrar, um tom singular, quase sem paralelos na literatura brasileira. O leitor,
portanto, pode se incomodar com a natureza rude do relato, mas deve seguir, superar
esse desconforto inicial que o novo carrega. Ao fim, perceberá que tudo se encaixa,
suporte e trama, como sempre acontece com os bons livros.

*

Whisner Fraga é professor e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, tendo
contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. Escreve para o coletivo “Crônica do
dia” e mantém o canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que resenha obras de
escritores contemporâneos. É editor na Sinete.

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